sábado, 30 de maio de 2015

Luvas





O termo “corrupção” está na ordem do dia. Hoje atira-se o insulto “és um corrupto” quase como há quarenta anos se atirava “és um fascista” para alguém de quem se não gostava e no decurso de uma discussão acesa. Quem sabe, até se na sequência de toque entre automóveis em hora de ponta.
Mas a corrupção é coisa antiga. Muito antiga. E discreta, muito discreta. Aliás, estou em crer que muitos que usam o termo nem sabem, ao certo, o que significa corrupção. E ela está instalada entre nós com alicerces sólidos, fazendo parte do quotidiano.
Será o caso dos agentes de segurança que almoçam regularmente naquele restaurante a preços bem baixos e que não autuam os carros dos demais clientes que estacionam em frente da porta.
Será o caso daquele fiscal de obras que vai de férias para um bom hotel depois de ter ignorado uma irregularidade numa urbanização em construção.
Será o caso daquele político eleito que, depois de ter tomado decisões sobre concursos públicos e de ter deixado o cargo, vai trabalhar numa das empresas que concorreu.
Há inúmeros casos de corrupção.
Mas há formas de corrupção, bem mais profundas e enraizadas, que estão à vista de todos e que são bem mais graves. E que abrangem toda a sociedade.
Aquelas em que não há pessoas que individualmente corrompam ou se deixem corromper, mas que em é o próprio Estado que é corrompido pelo sistema privado. Com foros de benefícios para a sociedade, mas que são ilusórios.
Vejamos um exemplo.

Na última década assistimos a um transformar radical da forma como os cidadãos se relacionam com o Estado. As finanças, a justiça, a saúde, a educação, tudo quanto é serviços do Estado alterou os seus canais de comunicação do papel para o digital.
Dirão muitos que é evolução da tecnologia, que é a simplificação dos processos, que é a transparência do que acontece. Será verdade.
Mas também é verdade que isso implica que cada cidadão tenha, para além dos conhecimentos na utilização da TIS, o respectivo equipamento. E alinha de comunicação.
Por outras palavras, passou a ser quase que obrigatório que cada cidadão possua um computador e um contrato com uma empresa de comunicação.
O que levanta, de imediato, uma pergunta: Porque é que para comunicar com o Estado, o gestor da coisa pública, se tem que pagar a privados? Ou, mais abstracto, porque é que se depende de intermediários privados para lidar com o Estado?
Dirão alguns, mais conhecedores destas coisas, que não será bem assim, já que os sistemas que não os electrónicos continuam a funcionar para quem não os tenha ou os queira usar. Não é bem verdade!
Começa, desde logo, por ser bem mais moroso e complicado o acesso à coisa pública. A diminuição de funcionários, horários de atendimentos, locais de atendimento. E, mesmo presencialmente, somos remetidos para formulários on-line ou esclarecimentos on-line.
E mesmo alguns serviços transformaram-se na exclusividade das tecnologias de informação. Os empresários, comércio ou serviços, passaram a ter a obrigatoriedade de emitir facturas electrónicas. E a fazer declarações de impostos por via electrónica. O que significa que para exercerem o seu mister e estarem de acordo com as regras do fisco, têm que possuir equipamento, comprado por si, e têm que possuir um contrato com uma empresa de comunicações, através do qual cumprem a lei. Ou seja: a lei obriga a contratos com privados.
Mesmo dentro do próprio Estado a corrupção institucional instalou-se.
Todo o sistema electrónico de comunicações dentro do Estado depende de um sistema operativo. Privado. Para o qual há que pagar licenças de utilização, naturalmente. A uma só empresa, que fabrica e distribui. E isto apesar de existirem sistemas operativos gratuitos e igualmente seguros e eficazes.
O Estado ficou contratualmente refém de uma só empresa de software que, com isso, arrecada milhões. Muitos milhões.
Mas, indo ainda mais longe, o Estado está a transferir a gestão e localização dos seus arquivos electrónicos para a chamada “nuvem”. Numa corrida à modernização dos sistemas e redução de custos. Acontece que essa nuvem está a cargo de uma empresa, uma só empresa. Privada, naturalmente. Uma vez mais, a própria gestão da coisa pública fica dependente de privados, com contratos chorudos e em exclusividade.

Tudo isto é corrupção institucional.
Não há caras ou nomes a quem se possam chamar de corrompidos ou corruptores, mas são instituições que ficam a dominar o Estado, em situação de exclusividade e com lucros absurdos.
Para fazer aquilo que é função estatal e que pode e deve ser feito pelo Estado.

Claro que a estes exemplos se podem acrescentar a recém aprovada lei que permite a privatização da natureza vital – a água. Tal como a progressiva privatização da educação e da saúde, ao arrepio óbvio e transparente da lei fundamental.

É por isto, e outros “trocos” de milhões de euros e vidas, que fico a olhar com ar de pena quando me falam em casos de luvas pagas a este e àquele, no subornos e nos jeitinhos feitos desta ou daquela forma, e deixam de parte a grande, a enorme corrupção que grassa no Estado, que de tão grande que é quase ninguém se apercebe. 

By me

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