sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Cumplicidades




Quando o vi, não estava assim nem aqui.

Sentado a poucos metros, fumava um cigarrito sem máscara. Cumprimentámo-nos à distância, enquanto eu fazia o mesmo.

Mas, talvez por eu o ter a descoberto, fiquei com vontade de meter o nariz e encetar uma converseta. E aproximei-me.

Depois de um bom dia, que fica sempre bem, fiz-lhe a pergunta: “Já nos conhecemos há muito, por aqui. Há quanto anos usa este mesmo local nesta época?”

“Já faço isto há uns vinte anos. Mas aqui, no natal, desde 2009 ou 2010”.

O sotaque não deixou dúvidas: era natural de algures do leste europeu. E questionei-o também nisso.

“Sou romeno, mas já cá vivo há muito.” O vocabulário era perfeito.

Acabou o cigarro e levantou-se, que ali sentado, na conversa, o dia não rende. E colocou a máscara, tal como as luvas, que encobrem mãos bem tatuadas.

Foi então que percebi o que me incomodara: só parte da cara estava pintada, a metade superior. Ao colocar a máscara, quase nada de pele se vê.

Está certo! Não apenas gasta menos tinta, como esta com a humidade da respiração e sob o pano, deve ser bem incómoda, mais que o resto.

Pedi-lhe por uma fotografia, que acedeu. Felizmente, a sua posição habitual, voltado para a porta do centro comercial, permitiu-me a luz que mais gosto: vinda do lado de lá do assunto.

Feito registo, uma das raras verticais que faço, escolhi algumas das moedas maiores que tinha no bolso e deitei-as na caixa, à sua frente. No fim de contas, ele está a trabalhar e deve ser pago por quem usufrui desse trabalho.

Afastei-me com um aceno de cabeça, que os sorrisos ficaram tapados pelas máscaras, ao que respondeu com uma ligeira vénia e um tirar de chapéu.

Espero vê-lo, no ano que vem, sem máscaras de permeio.


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Datas




Uma daquelas coisas que me intriga:
Porque raio ninguém me desejou ontem um bom 31 de Dezembro?
Ou será que só contam as datas assinaladas no calendário, tão arbitrárias como quaisquer outras, tornando os demais dias anónimos?
Só para que conste, no Iraque, antiga Pérsia, celebra-se o ano novo com o equinócio da Primavera.

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quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Velhos são os trapos!




Um destes dias tropecei num artigo de um site que se dedica a publicar elogios a objectivas e câmaras. Costumo ler o que por lá aparece, ainda que não pense em mudar de marca (sou Pentaxiano).

Este artigo em particular falava, espantado, em como um fotógrafo faz espantosos retratos com uma câmara com mais de dez anos de fabrico e que já nem se encontra à venda.

Apeteceu-me fazer uma crítica mordaz, mas não havia onde. Fica por aqui.

Por um lado, os retratos mostrados eram todos feitos com uma perspectiva muito próxima. É difícil não obter imagens impactantes desta forma.

Em seguida, todas as imagens eram em preto e branco, com a gama tonal completa e contrastada. Uma vez mais, sabendo dominar um editor de imagem, também assim se obtêem imagens fortes se a luz estiver a nosso favor, natural ou trabalhada.

Por fim, e foi o que me incomodou, pouco importa a idade do material e se está ou não disponível no mercado. As técnicas usadas por Nadar, por exemplo, são mais que arcaicas e não retiram um pingo de qualidade ao seu trabalho. Tal como Weegee ou Ansel Adams. Uma press câmera com visor directo, ou uma 18x24, chapa a chapa, são técnicas lentas, complexas de operar e processar, pesadas e nada discretas. No entanto, os seus instantâneos ou paisagens são de tirar a respiração, mesmo que impressos numa revista ou livro de mediana ou até fraca qualidade.

Não é o pincel, a maceta, a caneta ou a câmara que fazem o artista ou a obra de arte. É o domínio da técnica em uso e o saber materializar aquilo que a alma sente. E isso é para poucos.

 

Nota adicional: esta imagem tem o título “Até ao próximo episódio”. Foi feita com uma vetusta Olympus 3030z, de 3,3 mp, que regista em cartões SM. Fabricada no ano 2000, até os cartões de memória já saíram de mercado. No entanto, tenho orgulho em a ter feito, mais ainda se considerarmos que se encontrava no interior de uma caixa de madeira e a exposição e foco foram feitos em total automatismo. Faz parte do meu projecto “Old Fashion”, há muito terminado.


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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Lágrimas de uma amiga




Um olhar menos atento dirá que se trata de uma galhada de um pinheiro, escorrendo gotas de chuva.

No entanto, estando alerta e em sintonia com a árvore, podemos ficar a saber que se tratam de lágrimas de árvore, cuja raiz foi adoecendo até ao momento final, em que tombou morta.

Quando a encontrei, e já ali estava há uns dias, fiz-lhe um afago. No tronco, a que tantas vezes me encostei, nas folhas que nunca alcancei mas que tantas vezes me protegeram do sol impiedoso.

Enquanto fotógrafo (á-lá-minuta, repórter, caçador de imagens, taxidermista do tempo, escrevinhador de luz ou apenas recortador do universo) não poderia fazer um registo de uma amiga morta.

Apenas guardei com a minha câmara aquilo que me deixou na mão: as suas lágrimas.


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Votos




Ouvi um montão de gente a desejar um “feliz natal”.

E oiço um montão de gente a desejar um “bom ano”.

Não seria muito mais interessante (e produtivo, e generoso, e auspicioso) se desejassem antes um “feliz ano”?

É que, caramba, se houver felicidade tudo o resto não apenas estará incluído como, mesmo que não esteja, será pouco relevante a sua ausência.

Assim, e para todos vós, um feliz ano, bem como os que se lhe seguirem.


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domingo, 26 de dezembro de 2021

Depois da festa

 



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Manhã de natal




Este ano acordei tarde na manhã de natal. A noite fora longa e não me apeteceu o sacrifício de uma quase directa para ir ver o acordar da cidade.

Por isso, quando cheguei ao centro ela já estava enérgica. Já se contavam por dezenas os que passeavam, algumas esplanadas já tinham clientes para um pequeno-almoço ao ar livre e os sem abrigo já tinham zarpado para outras paragens, por vontade própria ou por incitamento policial.

Claro que vi aquilo que contava: mais que muitas mãos dadas. Creio que o 25 de dezembro rivaliza com o 14 de fevereiro neste aspecto. A única diferença é que agora não são maioritariamente jovens. São casais de todas as idades, ainda que a maioria acima dos quarenta, que se passeiam por uma cidade quase vazia e de mão dada. E, tónica comum, são forasteiros. Casais que aqui vieram passar a quadra natalícia e que, em acordando e não querendo desperdiçar tempo num quarto de hotel, vieram para a rua. Muitos acompanhados pela prole, infantil ou juvenil.

Com a desertificação do centro da cidade, são cada vez menos os que acorrem ao chamamento das igrejas. Mas os que vão fazem questão de o fazer com roupas de circunstância, mais de circunstância que nos regulares domingos ou dias santos.

Tal como me foi fácil de identificar as habitações onde o natal não é festa maior, se festa de todo. Bastava olhar e ver em que janelas se tentava secar roupa em dia de chuvinha miudinha.

De igual forma, mas mais em ambiente de jardim, assisti a uma tradição de fazer crescer sorrisos em qualquer rosto: a exibição e/ou partilha por parte dos pequenotes das prendas recém recebidas. Bolas, patins, bicicletas... aquilo que não dependa de electricidade nem de wi-fi. A mais estranha, mas estranha mesmo, foi um petiz, com uns sete ou oito anitos, todo satisfeito com uma detector de metais de brincar mas funcional. Pergunto-me que conversas acontecerão naquela família.

Uma tradição muito minha não cumpri: o almoço de natal. Durante anos este aconteceu num restaurante alfacinha, daqueles que nunca fecham nem neste dia. Ainda que nele se tenha que abrir um pouco os cordões à bolsa, a refeição merece e um dia não são dias. Mas não me apeceu ter que mostrar certificados disto e daquilo, que os tempos que correm impõem, para poder comer. Regressei a casa, ao conforto familiar e ao almoço tardio que me esperava.

E sim, no bairro onde moro não há roupa a secar à janela neste dia, mas também não há varandas e varandins com balaustradas em ferro forjado nem fachadas cobertas de azulejos.


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sábado, 25 de dezembro de 2021

Epitáfio




Fotografar um velório? Não me parece ser das coisas mais comuns ou apetecíveis. Pelo menos por cá, que culturas há que o fazem, com o maior respeito pelos defuntos e familiares.

Exactamente por isso, no lugar de fotografar a defunta, preferi fotografar os parentes, que não arredaram pé de junto dela. Umas mantendo o viço do verde, outras mostrando que o tempo deixa marcas.

Quanto à tombada, trata-se uma conífera, com talvez mais de cinco metros de tronco despido de galhos e bem mais do dobro com galhada com folhas permanentes verdes na forma de agulhas. Na ponta das quais se juntam as águas da chuva sob a forma de gotas que se debatem com o dilema de ali ficarem, penduradas, ou deixarem-se cair quando engordadas.

Enquanto erecta, marcava presença com a sua magnificência no meio de um dos terreiros da jardim da estrela. As suas raízes de superfície foram, ao longo dos anos, deformando o tapete betuminoso e rosado com que revestiram as zonas pedonais. Forte obstáculo para aprendizes de caminhar ou utilizadores de bengalas ou muletas, desafio aliciante para os utilizadores de bicicletas, trotinetas ou skates, que usavam os declives como forma de se afastarem do chão durante um ou dois segundos, demonstrando assim a sua perícia e gerando a adrenalina necessária à prática desportiva.

No seu tombar, deixou bem funda a sua raiz vertical própria da espécie, bem como as de superfície. Partiu-se, muito simplesmente, pertinho do canteiro de pedra que circundava o tronco. E não sei se provocou vítimas humanas, mas estou em crer que não, ou o sensacionalismo informativo teria falado disso. Que uma decana árvore morrer de pé, mesmo que tenha propiciado incontaveis horas de sombra amena na canícula, não é motivo de relato.

Tal como não é motivo de trabalho de escribas o ter a copa, ao tombar, destruído parte de um canteiro de rosas da Galileia, oferta da embaixada Israelita há anos e não sei porque motivo. Mas com direito a placa alusiva ao facto.

A morte faz parte da vida, humanos ou não, animais ou vegetais. Os jardineiros municipais terão um pesado trabalho pela frente, ao darem destino a esta frondosa árvore. Para já, limitaram-se a cercar o seu corpo com uma fita vermelho e branca, como se ninguém se apercebesse da sua presença e corresse o risco de nela tropeçar.

Pro mim, que soube do facto pelas redes sociais, fui lá despedir-me dela, que muito me protegeu enquanto ali fui o fotógrafo À-Lá-Minuta. E da minha presença no local fica o registo dos parentes que se aguentam a pé firme. Que não fotografo velórios ou funerais. Muito menos de amigos.


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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Parabéns a você




O texto abaixo, tal como a fotografia, datam de 2008, dezembro.

Pergunto-me que terá acontecido aos intervenientes.

 

Estava atrasado para o trabalho.

Quem quer que me conheça sabe que isso me incomoda de sobre maneira. Prefiro, de longe, chegar antes e esperar a chegar atrasado, onde quer que seja. Manias!

Em qualquer dos casos, o atraso só aconteceria se esperasse pelo autocarro que, a dar fé no aviso luminoso, demoraria ainda uns bons 30 minutos. A alternativa, como noutras situações semelhantes, seria apanhar um táxi. Não é barato, mas prefiro isso e ficar tranquilo.

O primeiro que vi e que sinalizei fez-me que não com a mão. Olhei melhor e tinha registo de Oeiras, fora de Lisboa, e não poderia tomar passageiros aqui onde estava.

O segundo bem que viu o meu braço esticado, sinal inequívoco para parar o carro. Mas fez que não me havia visto, talvez assustado com o meu ar meio pai-natal, meio Fidel, meio Taliban, que é assim que tenho sido classificado na rua, ao passar. Nada que me surpreenda ou incomode, excepto nestas circunstancias.

O terceiro era de Lisboa e transportava quem quer que fosse, aspecto, idade ou apelido. E bastava olhar para o carro para ver que já tinha transportado mais do que poderia contar. Aliás, fui eu mesmo que receei entrar nele, que nada me garantia que conseguisse levar a bom porto o trajecto que lhe pedisse.

Entrei, que cliente com pressa não pode ser esquisito, mas meti conversa com quem ia ao volante. Em boa verdade, não preciso de um pretexto para isso, que tagarelar com taxistas é sempre um prazer e uma lição para o dia.

Mas sempre lhe perguntei, depois de indicar para onde queria ir, que idade teria a viatura.

O sorriso que senti mas não vi, que não lhe chegava à nuca, foi delicioso:

“Faz amanhã 25 anos que andamos juntos, eu e ele!”

Era um pouquinho mais novo do que supunha. E alimentei a conversa com um elogio ao estado de conservação do táxi, por fora e por dentro.

“É verdade que sim. Tantas horas por dia aqui dentro, é como que uma segunda casa. E tem que estar como eu gosto dela. Sabe, ele já não anda muito. Ali nos “cabos ávila” queixa-se e vai a passo. Mas eu também não vou depressa, que na cidade não posso e a idade já não o pede.”

E foi acrescentando que já tinha 70 anos, que a reforma de um taxista é pequenina e que havia de ir ganhando a vida ali enquanto pudesse. Até porque a mulher estava doente e o dinheiro sempre fazia falta.

“Em qualquer dos casos”, rematou, “se eu parar de andar aqui já não sei o que fazer na vida. Enquanto puder, e à minha velocidade e a daqui do meu parceiro, havemos de continuar na cidade!”

 

Apesar do transito e da velocidade do vetusto carro e motorista, cheguei a tempo ao trabalho.

E com a secreta esperança de, se chegar a esta idade, ainda ter uma ou duas das minhas fieis câmaras de hoje.

Parabéns ao Mercedes 240D e ao seu motorista!

 

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Tradições




Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.

Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.

E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.


Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:

Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.

A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.

Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.

Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.

E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.

O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!

O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.

Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!

Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.

 

Texto: by José Vilhena

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O avião




O tipo de ofício que tenho proporciona estas situações, que os horários são demasiado malucos e instáveis:
Uma ocasião uma colega viu-se na contingência de ter que levar a filha para o trabalho.
Coitada da pequena, que frequenta o 4º ano, lá se ía entretendo como podia, sem atrapalhar o que ali se faz. E a dado passo, talvez que as minhas barbas tenham sido um incentivo, veio perguntar-me se haveria papel disponível para escrever ou desenhar.
Claro que havia e indiquei-lhe onde. E ficámos um nico de conversa na qual acabei por lhe contar a história do Joãozinho e do seu barco. Contá-la-ei aqui noutra ocasião.
Mas, na sequência disto, acabámos por falar de aviões de papel, de como fazer e quais os modelos.
Enquanto eu lhe mostrava um deles, dobrando e vincando a folha com afinco e rigor, qual engenheiro aeronáutico, lembrei-me de tantos produtores de imagem, estática ou animada, que tanta questão fazem em “dobrar” a imagem a meio com o horizonte, ou de lhes aplicar regras matemáticas exactas, como o número de ouro, ou ainda algoritmos digitais aplicados às cores e luzes, deixando de parte o equilíbrio, a harmonia subjectiva, a criatividade, o expressar da alma.

Se a estética se resumisse a fórmulas e regras, há muito que os computadores teriam produzido obras-primas igualáveis apenas por outros computadores.

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segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Extra dry




Azeitonas descaroçadas imersas em Martini tinto durante, pelo menos, um mês; gin, puro; duas gotas, não mais, de Grenadine (não havendo, licor de Groselha serve); servido sem gelo mas, se se preferir, com o gin refrescado em frigorífico.

 

É conceito meu, mas não exclusivo, que uma boa fotografia pode ou não respeitar os académicos códigos de comunicação. Pode ou não respeitar as regras de composição. Pode ou não estar nítida, exposta à luz de acordo com os fabricantes ou ter as cores “no ponto certo”.

Mas se não falar comigo, se em olhando para ela nada me disser, não será uma boa fotografia.

Fotografia, para além do registo é comunicação. Comunicação com os outros, comunicação com o próprio. Se isto não acontecer, entendo que não é boa, que falhou em toda a linha.


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sábado, 18 de dezembro de 2021

Aventuras e desventuras de um migrante fotográfico



 

Hoje está Lua Cheia. Bem visível da minha janela. Nada como aproveitar e dar uso à minha nova câmara.

Mas, para levar as coisas tão longe quanto possível, montei-lhe a minha Novoflex 600mm f/8. Para quem queira saber um pouco mais sobre o que isto, sugiro uma voltinha na net. Mas sempre acrescento que é uma focal longa e não uma teleobjectiva, que tem um formato estranho e ameaçador e que o sistema de foco foi concebido para ser rápido. Na época, finais dos anos 50, inícios dos anos 60 do séc. XX.

A imagem que aqui vêdes foi aumentada, na pós-produção, uma três vezes, já que para ter esta escala de reprodução em FF teria que ter uma objectiva com mais do dobro de distância focal. Coisa que não tenho.

Se reparardes bem, ou se puderdes reparar, vereis um leve rebordo ciano no lado superior e outro, igualmente leve mas magenta, no rebordo inferior. Deve-se isto à qualidade das lentes usadas, à ausência de tratamentos de superfície e à sua organização dentro da objectiva. Nada que atrapalhe demais, se considerares que esta imagem pode ser reduzida a preto e branco, o modo mais normal de fotografar no seu tempo. Tal como, no seu tempo, a resolução média de uma película de média qualidade, ISO 100, era de 5,5 megapixels, nada que se compare com os sensores de hoje.

Sempre acrescento que o ajuste de exposição foi feito por cálculo, já que a medição TTL é inútil em imagens como a original: ISO 400, 1/400”, f/16, a tal regra clássica.

Não estou nem um pouco desapontado com o resultado, pese embora o tal rebordo fosse dispensável.


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Mensagens




Uma das vantagens de não usar palavras, e por vezes em as usando, é que fica a quem recebe a interpretação da mensagem. Se existir alguma.

E quem divulga o que quer que seja decide se a mensagem é explícita, implícita ou nem uma coisa nem outra.

Fica ao vosso critério a conclusão do que isto representa, apesar de eu saber muito bem em que pensava e o que sentia ao fazê-la e agora ao vê-la.

Divirtam-se.


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sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Consumo informativo


 


O que surgiu primeiro: o ovo ou a galinha?

O que é mais importante: a informação que os media querem vender ou a informação que o público quer consumir?

Os media procuram vender. Mais unidades e em mais quantidade que os seus concorrentes. Logo, vão atrás dos “gostos” do público.

O público usa a informação como forma de exorcizar os seus males, satisfazendo-se com o sucesso dos seus heróis e minimizando os seus males com a grandeza dos males dos outros.

Mas o público não quer ser informado em profundidade sobre as vitórias dos heróis. Porque sabe que cada vitória é consequência de muitas derrotas, e de derrotas está ele cheio no dia-a-dia.

E o público não quer saber das origens e consequências dos males dos outros, com receio de neles encontrar os seus próprios males, aqueles que o atrapalham e incomodam, e de poder antever o dia seguinte.

E como ninguém é herói todos os dias, o herói de hoje é o esquecido de amanhã, que novos heróis serão descobertos pelos media. Que se não tiverem novos heróis a apresentar, venderão menos e terão menos lucros, que ter lucro é o seu objectivo.

E como falar dos males em profundidade é remexer em feridas dolorosas, há que evitar essas dores, que ninguém compra produtos que provoquem dores agudas e prolongadas, e ter lucro é o seu objectivo.

 

A missão do comunicador contemporâneo (seja ele de texto, som, imagem ou ideias) é encontrar todos os dias novos heróis, novos males, que ajudem na facturação da empresa onde trabalham. Como esta facturação depende, em boa medida, da facturação da concorrência, há que ir mais longe, há que ser mais apelativo, há que mostrar ao público que os novos males que se mostram são mais maus e mais distantes, que os novos heróis que se exibem são mais dignos e mais credíveis.

Deixou de ser importante fazer, como nos juramentos de tribunal dos filmes americanos, “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.” Na concorrência dos media, apenas a “a verdade” tem algum peso (e não muito!). “Toda a verdade” deixou de ser importante, porque incómoda para o público e cara na produção. Já o “Nada mais que a verdade” depende dos conceitos éticos de quem produz, nem sempre os mais recomendáveis.

Assim, a relação entre os media e o público tornou-se (e é!) uma relação simplista em que um vende e o outro compra produtos para aliviar consciências e incómodos quotidianos. Tal como a botica vende pomadas para o lumbago e pensos para os calos.

A missão do jornalista ou do técnico de comunicação deixou de ser (se alguma vez foi) intervencionista na sociedade para ser a de fabricante de notícias, com a conta certa de dor e prazer no público para o manter como consumidor fiel.

E o público deixou de querer (se alguma vez quis) estar alerta sobre o que o cerca, restringindo-se ao seu pequeno mundo doméstico e familiar. Procura na informação os paliativos para as suas maleitas, não se preocupando com as suas causas nem com o prevenir de novas.

Alguns há, honra lhes seja feita, que não se encaixam neste consumismo informativo. Pessoas há que procuram saber mais e mais fundo, comunicadores há que procuram contar e explicar tudo sobre cada tema e sobre todos os temas. Mas como estas atitudes são cada vez em menor número, este circuito produtor/consumidor é cada vez mais marginal, talvez condenado à extinção.

 

Está em nós (produtores) e em nós (consumidores), não permitir que esta estupidificação no conhecimento do mundo que nos rodeia grasse como uma epidemia fatal!

 

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Montra com história




E porque o Natal se aproxima a passos largos e com ele a época das prendinhas, aqui fica uma histórinha, velha de mais de cinquenta anos, que nada tem a ver com natais ou prendinhas.

Frequentava o então 2º ano do ciclo preparatório, hoje conhecido por 6º ano. Os tempos eram outros e não havia cá mi-mi-mis: a partir da 4ª classe, por vezes antes, ir para a escola era tarefa de cada um, fazendo-se o trajecto sózinho a pé ou de autocarro. Que isso de ir acompanhado no carro dos pais ou em transporte escolar era coisa de abastados, e nós não o éramos.

Entre a paragem do autocarro e a escola havia, numa esquina, uma papelaria e tabacaria. Vendia cadernos, folhas para os cadernos, lápis, borrachas, jornais, tabacos, fósforos e brinquedos.

O material escolar compravamo-lo na papelaria da escola: não só era mais barato como as capas dos cadernos onde colocávamos as folhas tinham que ser compradas lá, porque continham o nome e o logotipo da escola. As folhas, pautadas, quadriculadas ou lisas, tinham aquelas duas riscas verticais vermelhas, uma de cada lado, que em circunstâcia alguma estávamos autorizados a ultrapassar.

Os cigarros não me recordo de lá ter comprado, ainda que fosse por essa altura que lhes comecei a dar uso. Talvez fósforos, caixas pequenas de quarenta, que as carteiras eram mais caras.

Já os brinquedos... esses eram apenas cobiçados nas montras, que só pelo Natal ou pelos anos tínhamos direito a novos. Eventualmente, se a passagem de ano fosse algo que valesse comemorar... mas não era, que passar era o que se esperava que acontecesse.

Acontece que numa ocasião a montra foi mudada. E, lá na ponta e a meia altura, foi colocada uma pistola. Nem sequer era de fulminantes, as que mais cobiçávamos. Nem sequer era trabalhada com relevos no seu plástico brilhante e metalizado, a imitar as dos heróis da banda desenhada. Era uma pistolinha desproporcionada, de coronha curta e branca e cano longo.

Apaixonei-me por essa pistola. Ainda não tinha bem idade para me apaixonar por raparigas, mas a vida é feita de paixões e calhou ser aquela pistola.

Bem que pedi por ela em casa. Nem pensar. Não era Natal, eu não fazia anos e nada justificava uma prenda fora de tempo. Nem sequer, se bem recordo, as minhas notas da escola. E o preço, dezasete escudos e cinquenta centavos, era uma exorbitância para um capricho.

Mas não desisti! Passei a sair do autocarro umas paragens antes para que o bilhete fosse mais barato (nem se sonhava então com passes sociais ou escolares), passei a saltar os lanches ou a encurtá-los e, ao fim de uns meses acabei por comprar a bela da pistola que ía namorar na montra todos os dias, sempre com medo que outro apaixonado a levasse.

Claro que tive que explicar em casa a sua posse, que a minha muito parca semanada não a justificava. Não me ralharam os sacrifícios e creio terem feito bem, que foi o brinquedo que mais durou na minha mão, tendo perdido a conta aos índios e bandidos que com ela matei. Recordo que pelos meus vinte e tal anos, numa mudança de casa e no fundo de uma caixa, ainda havia o que sobrava dela.

A papelaria e tabacaria ainda existe no mesmo local. Não sei se com o mesmo nome e, muito provavelmente, com outros donos e empregados. Mas com a mesma montra lateral, incuindo a tal do lá fundo. E se ainda se exibem alguns poucos brinquedos (que estes serão muitos e sem vidro a proteger nos super e hipermercados e a preços muito mais acessíveis, mesmo nos tempos que correm) vemos também, onde em tempos brilhou a minha paixão, lenços descartáveis, pantufas, detergentes, papel higénico, desodorizantes e guardanapos.

O que acaba por ter graça no meio de tudo isto, é o ter sido junto a esta mesma montra, quase meio século depois, que aguentei a pé firme, e por muito tempo, por aquilo que viria a ser uma outra paixão, essa ainda viva e a ser vivida. Mas isso são outras histórias.


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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Partilhas




Várias vezes, no meu projecto fotográfico “À-Là-Minuta” tive discussões quase estúpidas:

Eu a querer entregar as fotografias que fazia de graça, de borla, a custo zero, sem pagamento; e os fotografados a insistirem que não, que queriam pagar, que nada na vida se faz sem dinheiro, que não há coisas grátis…

Claro que há coisas de borla!

As coisas boas da vida não têm preço!

Ouvir um pássaro a festejar a chegada do sol é de borla e delicioso!

Também não se paga por ver uma criança a correr atrás de um pombo, num jogo tão antigo e bonito quanto os pombos e as crianças!

Assim como a partilha! Não a dádiva, que é a troca de posse de algo entre pessoas. A partilha!

O fazer com que algo, material ou não, não tenha dono ou registo, que seja usado por quem dele necessita, sem que se escreva no livro do deve e haver. Partilha: aquilo que acontece com os fluidos nos vasos comunicantes. Partilha: o nivelar a existência pela satisfação de todos, sem preconceitos ou interesses escondidos. Partilha: o ter a satisfação de saber o outro satisfeito.

Também isto não se faz a troco de dinheiro ou do que quer que seja, mesmo que envolva dinheiro. Coisas, afectos, tempo!


Quando não, trata-se de dádiva, de esmola, de caridade, de negócio, de investimento material ou emocional. E isso, raios me partam, não faço!


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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Panelas de natal




Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.

Usemo-las e contemos histórias ou estórias apropriadas.


Panelas de Natal


A tradição familiar dizia que o Menino Jesus descia pela chaminé para pôr prendas no sapatinho.

Assim, depois do jantar, a cozinha era imaculadamente arranjada, o fogão forrado com papeis “bonitos” e os sapatos colocados em cima deles.

Na manhã de Natal os pequenos, depois de toda a família acordada, eram autorizados a entrar na cozinha onde, para deslumbre total, lá estavam os presentes. Poucos, que os sapatos eram muitos, mas apetecidos e apreciados.

O mais velho dos quatro foi, naturalmente, o primeiro a ser informado da verdadeira história e a ser incluído na cerimónia da colocação das prendas.Depois do fogão decorado e dos mais pequenos terem recolhido à cama, foi a sua vez de colocar as suas prendas para toda a família, indo então deitar-se, que não podia ver as que lhe eram destinadas antes dos outros acordarem.

Acordou ele a meio da noite, com vontade de urinar e dirigiu-se à casa de banho. Mas logo lhe passou a vontade. Com receio que furasse o bloqueio de acesso à cozinha, tinham atado uma cadeira com tachos e panelas ao puxador da porta de seu quarto. Quando a abriu, tudo se espalhou pelo chão, acordando a casa por inteiro.

Não me recordo ao certo qual ou quais as prendas que recebi nesse ano. Mas tenho a vaga ideia de ter sido um famoso Renault 16 do “Tour” que esventrei e em cujo interior coloquei um pesado imã de bicicleta. Com ele, ganhava todas as provas de todo o terreno que na rua se faziam.

Ainda hoje, quando a família se reúne, ninguém me acredita que, então, apenas queria ir à casa de banho.


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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Quebrando regras




Ontem à noite, em querendo publicar um texto que tinha na cabeça, mas não tendo como fotografar, considerando o onde estava, acabei por ir buscar uma imagem de arquivo. Esta e este texto:

Há muitos, muitos anos, disse-me alguém:

"Os deuses perdoam, os burros esquecem. Aproxima-te de quem preferires."

Sei que não sou deus (ou talvez seja) e acho que não sou burro (ou talvez seja).

É nesta dualidade que vivo.”

 

Um colega de ofício, vendo-o, comentou comigo, que o momento assim o permitia:

“Este é aquele tipo de iluminação que não se usa (ou talvez use)!”

Em boa verdade, ele tem razão. Haverá que saber o que se deve usar (e este deve tem tanto que se lhe diga...), tal como o que não se deve usar (e este não deve tem tanto que se lhe diga...), para que se possa usar o que não se deve usar com sucesso.

Fazendo um paralelismo, todas as revoluções são ilegais até que têm sucesso.

Regra geral a luz que usamos para fotografar, quer se trate de luz natural, quer se trate de luz desenhada e executada por nós, tem por objectivo mostrar o assunto com o conforto visual suficiente para que não atrapalhe a observação da imagem. Nem revele ou oculte aquilo que queremos revelado ou ocultado. As rugas e as papadas sob o queixo evitam-se ou ocultam-se a menos que esse seja um factor importante na história a contar. Os olhares mostram-se ou evidenciam-se, para a objectiva ou para um qualquer outro ponto dentro ou fora do enquadramento, porque os “olhos dizem mais do que a boca se atreve”.

Negar isto, fazer o seu oposto com critério e propositadamente, sabendo o seu resultado, pode ser a melhor forma de contarmos o que queremos. Explícita ou implicitamente.

O conforto visual de uma imagem não é uma regra sacro-santa.

Já o queremos provocar uma emoção em quem vê o resultado do nosso trabalho, seja qual for a emoção que queremos provocar, é algo que devemos procurar a todo o custo. Mesmo quebrando as “regras”.


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segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O respeito pelos originais e a falta dele




Recordo o motivo pelo qual, há mais de uma vintena de anos, comprei um leitor de DVD’s: composição de imagem!

Um dos filmes que marcaram a minha vida, talvez pela circunstância em que o vi pela primeira vez, foi o “West Side Story”, algures em 1975. O enredo, a música, a coreografia, a direcção de fotografia, tudo isso faz dele um mais que excelente filme.

Os anos foram passando, muitos, e fui montando a minha própria videoteca, em VHS. Uns comprados, outros nem tanto. E muito antes de haver televisão por cabo.

Uma noite foi difundido esse filme, numa estação nacional. Não gostei! A televisão então funcionava em formato 3 por 4 e o filme era em Panavision. Este formato, muito mais próximo daquilo de que eu gostava, era cortado pelo 3 por 4, deixando as partes laterais do enquadramento de fora. O que, sendo um “crime”, poderia deixar a maioria do público indiferente se ignorassem certos aspectos. Como a coreografia ter explorado cada pedacinho do formato cinematográfico e, ocasionalmente, o televisor ficar a negro, com os personagens fora de visão.

Procurei por tudo quanto era sítio uma cópia do filme integral e nada. Até que encontrei num exemplar em DVD. Não tinha leitor, mas tratei de comprar um e deliciei-me com o que vi!

 

Vem isto a propósito de duas coisas:

Por um lado, não sei se me apetece ver a nova versão do filme. Por muito mestre que Spilberg seja a realizar filmes, a minha memória vai ser “conspurcada” com esta, tanto na forma de contar a história como na forma de a mostrar visualmente. E já nem quero falar na sonoridade das vozes.

Por outro aldo, a dificuldade que tenho em que os laboratórios de fotografia aceitem imprimir imagens que não respeitem as proporções/padrão do papel e dos aparelhos que possuem. Eu, que gosto de fotografias assumidamente horizontais e longe do formato das películas e sensores, não aceito que as cortem e digo-o ao encomendar o trabalho. E, por resposta, oiço quase sempre: “Ah, e tal, mas assim vai ficar com margens brancas em cima e em baixo.”

Pois que fiquem com margens, que tratarei (ou não) de as retirar. Mas não será um qualquer técnico de impressão, ou um automatismo irracional, que irão truncar aquilo que quis de uma determinada forma, pensada e executada para assim ser mostrada.

A menos que haja uma enorme cumplicidade entre fotógrafo e impressor (incluindo os paginadores da imprensa), o trabalho original não pode nem deve ser adulterado apenas porque apetece ou não respeita padrões.

E aqui incluo as impressões a duas páginas, tão comuns em livros e revistas. A linha de união das páginas, tal como a diferença de curvatura entre ambas, altera de sobremaneira a forma como lemos as imagens, truncando-as, alterando-lhes a relevância dos centros de interesse, criando novas linhas de fuga ou outras... embirro solenemente com os que assim publicam imagens.

A adulteração de um original só deve acontecer depois de consultado o seu criador, por muito mau que o original seja!

E é por isso também que fico de cabelos em pé quando vejo reportagens televisivas sobre exposições (pintura, escultura, fotografia) em que os jornalistas mostram pedaços das obras, com movimentos de câmara sobre elas, levando o público a ter o olhar conduzido pela reportagem e não respeitando a condução do olhar definida pelo autor da obra através das linhas criadas, dos contrastes existentes, da perspectiva escolhida.

Voltando ao início, não creio que vá ver a nova versão do “West Side Story”.


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domingo, 12 de dezembro de 2021

Aventuras e desventuras de um migrante fotográfico




Há uns anos chegou-me às mãos uma objectiva por via postal.

Não a comprei, não a recebi como oferenda mas tão só como empréstimo. Temporário.

Tratava-se de uma 28mm, uma clássica grande angular. Da baratinhas. Demos-lhe o nome de “Traveling 28”. Eu explico:

Eramos membros de um grupo on-line de fotografia, ali reunidos por usarmos e gostarmos de câmaras e demais equipamento Pentax.

Um dia, alguém sugeriu que todos fotografássemos com a mesma objectiva. Não cada um com a sua, mas o mesmo objecto, que percorreria o mundo, ficando uns quinze dias nas mão de cada um, que se encarregaria de a enviar para o seguinte na lista de interessados. Se a memória me não falha, essa objectiva percorreu os cinco continentes.

Na altura eu fotografava, em digital, com uma Pentax K100D, formato APS-C e fiz o que havia para fazer com ela, tal como os demais.

Agora, com uma FF, o ângulo de visão é outro. Nada que não tenha noutras objectivas compatíveis com FF ou o seu equivalente em APS-C. Mas uma coisa é fotografar com uma zoom, em que acabamos por “dar um jeito” com ela para obtermos a composição que queremos, outra coisa é uma objectiva de distância focal fixa (primária, como lhe chamam) e ser obrigado a jogar com o que vemos pelo visor e com os pés.

Gosto de fazer esse exercício de quando em vez, nem que seja como desafio pessoal. Desta feita saí com uma 28mm, uma objectiva de que nunca gostei muito. Tem um ângulo de captação simpático, mas nem suficientemente apertado para o que gosto de fazer, nem suficientemente largo para “outros voos”.

Esta foi uma das que fiz, a que chamei “Túnel with a rear view”. Tenho que insistir nela, para que me não seja tão difícil o seu uso.


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Não é bonito




E é bonito ter feito esta fotografia? Não! Nada bonito, mesmo.

No entanto, foi uma tentação a que não resisti.

Esta janela, despudoradamente descoberta, bem como outras duas da mesma casa, rasgadas ao alto como os tectos, mostravam o interior de duas salas de uma mesma casa. Casa velha, talvez com um século, abeirada de uma via estreita mas com algum movimento e à distância de uma pedrada de um jardim frondoso e acolhedor, onde no quiosque que a esta hora estava apinhado de gente nas mesas a ler ou conversar, o balcão exibia um isqueiro pendurado por um cordel. Disse-me o dono que a quantidade de gente que ali vai pedir lume é incrível, bem de acordo com o bom negócio que faz em o tempo estando bom.

Mas antes de lá chegar fiquei parado no meio do passeio, fumando o mewu cigarro e olhando para as janelas. Primeiro com os olhos, depois com a objectiva.

Não estava eu preparado para fotografar sob a mais que fraca influência das parcas e escassas luminárias públicas desta rua. Acredito que quem aqui mora ou caminhe gostasse de ver melhor os eventuais buracos na já bem velha calçada por onde se caminha. Mas a rua não seria a mesma e, quiçá, não me teria atraído o contraste do exterior com o interior. Mesmo sem tripé, e recorrendo à minha corrente de autoclismo, tentei dar um ar da minha graça, levando bem longe a capacidade do sensor da câmara no seu distinguir entre luzes e sombras.

Desta minha intrusão na intimidade de um lar que me é desconhecido e que assim ficará para todos os que isto virem, peço desculpa.

Mas não resisti a sorrir ao olhar para uma janela, depois outra, uma terceira em dobrando a esquina. E em todas verificar o mesmo:

Sem grandes pompas e com um certo ar de modernidade, as paredes estavam cobertas de livros. Uns mais encadernados e clássicos, outros desirmanados e de tamanhos vários, numa das paredes a estante notoriamente desarrumada, indicando um uso frequente…

Nesta casa, onde mora não sei quem nem quantos, gosta-se de livros! 

E isso foi motivo para, num início de noite fria (ou mesmo que o não fosse), fazer um registo indiscreto.

 

Digamos que fotografia e livros resulta num casamento quase perfeito e bonito. Ao contrário desta imagem.

 

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sábado, 11 de dezembro de 2021

Liberdade




Liberdade querida e suspirada,
Que o despotismo acérrimo condena,
Liberdade, a meus olhos mais serena
Que o sereno clarão da madrugada!

Atende à minha voz, que geme e brada
Por ver-te e gozar-te a face amena
Liberdade gentil, desterra a pena
Em que esta alma infeliz jaz sepultada!

Vem, ó deusa imortal, vem, maravilha,
Vem, ó consolação da Humanidade,
Cujo semblante mais que os astros brilha!

Vem! Solta-me o grilhão da adversidade!
Dos céus descende, pois dos céus é filha,
Mãe dos prazeres, doce Liberdade!

Bocage

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Tempo e imagem




O que a seguir contarei nada tem de novo. Nem o pensamento de per si nem o eu o deixar por estas coisas das webs. Mas útil será deixá-lo outra vez.

Para os que já o leram voltarem a pensar nele, para os que nunca tal haviam cogitado terem um outro assunto para ponderarem.

Falo do tempo de observação de uma fotografia e de como isso influi na fotografia contemporânea.

Quem quer que vá a uma exposição fotográfica usará de, talvez, trinta segundos para ver cada obra à sua frente. Nalguns casos, se muito agradar, mais tempo. O tamanho, o local, a pré-disposição para ver fotografias, tudo isto levará a estes valores temporais.

Quem vir um livro ou revista contendo fotografias usará, possivelmente, uns dez segundos com cada uma. Dependerá das condições em que acede a elas (em casa, num comboio, numa biblioteca, na sala de espera de um médico...). E dependerá do tema e do interesse nele e no autor. Tal como dependerá da pressão existente para a tarefa que se lhe seguir: sair na próxima paragem, ser o próximo a ser atendido, a hora de fecho do local...

Quem vir fotografias num site ou grupo on-line sobre fotografia usará, sendo optimista e em média, uns dois a três segundos com elas. Se agradarem, se o tema for interessante, se o autor nos merecer alguma atenção... as mais das vezes menos que esse tempo. Porque, quando não, haverá sempre mais uns milhares ou milhões de fotografias para ver há que ser rápido.

Acontece que a maioria das pessoas que fazem fotografia, quer como ofício quer pelo mero prazer de o fazer, querem alguma resposta do público. Quer seja pelo número de visitantes na galeria, quer seja pela tiragem do livro ou revista, quer seja pelas críticas dos especialistas, quer seja pelos likes deixados na rede.

Mas uma fotografia de leitura mais elaborada, que exija mais tempo ou tamanho para ser entendida ou apreciada, não recebe comentários ou likes on line. Porque, ao usar de tão pouco tempo de observação, o público nem se apercebe do conteúdo no seu todo, perdendo muitas vezes o prazer da observação.

Assim, quem publica nas redes em busca de reconhecimento ou como forma de comunicação acaba por aprender que isso só sucede se as imagens forem minimalistas. Na quantidade de elementos visíveis, na simplificação das linhas implícitas ou explícitas, nos contrastes luminosos (neste caso pela variedade de calibrações dos sistemas reprodutores de imagem).

E todas essas pessoas que procuram o agrado ou feed-back do seu trabalho acabam por simplificar as imagens que produzem, que as subtilezas fotográficas não colhem likes.

O consumo e produção fotográfica na e para a web acaba por redundar em fotografias fracotas, más mesmo em muitos caso. Ou, pelo menos, muito menos elaboradas do que os seus autores poderiam ou sabem fazer.

O digital na fotografia, tanto na produção como na divulgação, veio permitir que muitos acedessem a tal “arte” com muito mais facilidade, permitindo o surgir de excelentes fotógrafos.

Mas também veio estupidificar a produção e consumo fotográfico, fazendo da simplificação a tónica dominante.

Pergunto, sem ironias, quantos de vós se deterão a observar esta fotografia no seu todo e nos seus detalhes. “Two ways of life”, de Oscar Gustav Rejlander, 1857.


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Uma história de natal




Há muito, muito tempo, numa terra muito, muito longe, o sr. Pilim e a srª Narta tiveram um filho. Carinhosamente deram-lhe o nome de Dinheirinho.

Sabendo do acontecimento e exultantes com a boa nova, de imediato três magos de reinos distantes se dispuseram a venerar e ofertar. Vinham eles do reino do Fisco, do reino da Banca e do reino do Comércio.

Ajoelhando-se à chegada, logo lhe entregaram o que traziam: um cartão de crédito, um cartão de cliente e um cartão de contribuinte. E disseram-lhe:

“Aqui tendes as nossas oferendas. Acreditamos que com elas sereis maior e mais poderoso. Usai-as como entenderdes.”

E assim aconteceu: o recém-nascido cresceu, a sua palavra e influência espalhou-se pelos quatro cantos do mundo e tornou-se omnipotente, omnipresente e omnisciente.

Os magos, por sua vez, deram graças pelo seu desenvolvimento e trataram de erguer, em tudo quanto é lugar, templos de veneração: Repartições de Finanças, Instituições de Crédito e Centros Comerciais.

E hoje, todos acorrem aos locais de culto em datas como esta, fazendo as suas preces e doando as suas oferendas, num ritual sempre acarinhado pelos sacerdotes.


Contada esta fábula, tenho que ir ali ao balcão agradecer com uma oferenda este bolo e bica e seguir depois para fazer uma promessa por uns cigarritos que gastarei. Alguém aí tem lume?


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