quarta-feira, 31 de outubro de 2018

“Sabões e detergentes”




Ensaio de Roland Bartes, escrito no final do decénio ’50 do séc. XX

“O primeiro Congresso Mundial dos Detergentes (Paris, Setembro 1954) permitiu ao mundo abandonar-se à euforia do Omo: os produtos detergentes não só não exercem qualquer acção nociva sobre a pele como talvez possam, mesmo, salvar os mineiros da silicose. Ora estes produtos são desde há alguns anos objecto de uma publicidade tão maciça, que fazem hoje parte dessa zona da vida quotidianos dos franceses sobre a qual as várias psicanálises, se se mantivessem actualizadas, deveriam concentrar um pouco o seu olhar. Poder-se-ia então opor à psicanálise dos líquidos purificados (Javel), a dos pós (Lux, Persil) ou detergentes (Rai, Paic, Crio, Omo). As relações entre o remédio e o mal, entre o produto e a sujidade são muito diferentes num caso e noutro caso.
Por exemplo, as águas de Javel foram sempre sentidas como uma espécie de fogo líquido, cuja acção deve ser cuidadosamente calculada, sem o que o próprio objecto é atingido, “queimado”; a lenda implícita deste género de produtos assenta na ideia de uma modificação violenta, abrasadora da matéria; os agentes são de natureza química ou mutilante: o produto “mata” a sujidade. Pelo contrário, os pós são elementos separadores: a sua função ideal é a de libertar o objecto da sua imperfeição circunstancial: “expulsa-se” a sujidade sem a matar; na imagística do Omo, a sujidade é um inimigo minúsculo e negro, que foge a toda a pressa da bela roupa pura, perante a simples ameaça do julgamento do Omo. Os cloros e os amoníacos são sem dúvida nenhuma os delegados  de uma espécie de fogo total, redentor mas cego; os pós são pelo contrário selectivos, empurram, conduzem a sujidade através da trama do objecto, exercem uma função de polícia, não de guerra. Esta distinção tem os seus correspondentes etnográficos: o líquido prolonga o gesto da lavadeira que bate a roupa, enquanto os pós substituem a da dona de casa, torcendo e esfregando a roupa na pia inclinada.
Mas, no próprio domínio dos pós, é preciso opor ainda à publicidade psicológica a publicidade psicanalítica (emprego esta palavra sem lhe atribuir uma significação de escola particular). Por exemplo, a Brancura Persil tira o seu prestígio da evidência de um resultado; põe-se em movimento a vaidade, a aparência social, propondo a comparação de dois objectos, de que um é mais branco que o outro. A publicidade Omo indica também o efeito do produto (sob uma forma aliás superlativa), mas revela sobretudo o processo da sua acção; arrasta assim o consumidor para uma espécie de vivência da substância, torna-o cúmplice de uma libertação e não já somente beneficiário de um resultado: a matéria é aqui provida de estados-valores.
Omo utiliza dois deles bastante novos no domínio dos detergentes: o profundo e o espumoso. Dizer que Omo limpa em profundidade (veja-se o entremez de Cinemá-Publicité) é supor que a roupa é profunda, o que nunca se tinha pensado, e que é incontestavelmente valorizá-la, estabelecê-la como um objecto de lisonja para essas obscuras vagas de envolvimento e de carícia que existem em todo o corpo humano. Quanto à espuma, a sua significação de luxo é bem conhecida: antes de mais, ela tem uma aparência de inutilidade; depois, a sua proliferação abundante, fácil, quase infinita, deixa supor que há na substância donde procede um germe vigoroso, uma essência de saúde e de poder, uma grande riqueza de elementos activos dentro de um pequeno volume originário; enfim, ela lisonjeia no consumidor uma imaginação aérea da matéria, um modo de contacto ao mesmo tempo ligeiro e vertical, possuindo como uma felicidade tanto no domínio gustativo (fois-gras, acompanhamentos, vinhos), como no do vestuário (musselines, tules) e no dos sabões (vedeta a tomar banho). A espuma pode mesmo ser o signo de uma certa espiritualidade, na medida em que se reputa que o espírito pode tirar tudo do nada, uma grande superfície de efeitos de um pequeno volume de causas (os cremes têm toda uma outra psicanálise de natureza calmante: serve para abolir as rugas, a dor, o fogo, etc.). O importante é ter sabido disfarçar a função abrasadora do detergente sob a imagem deliciosa de uma substância simultaneamente  profunda e aérea, que pode reger a ordem molecular do tecido sem o atacar. Euforia que não deve, aliás, fazer-nos esquecer que há uma plano onde Persil e Omo são algo como isto: o plano do trust anglo-holandês Unilever.”

Após ler isto, pergunto-me o que escreveria ele sobre pastas de dentes e as suas riscar perfeitamente paralelas ao sair do respectivo tubo.


Imagem by me

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Números e democracia




Encontrei na net o gráfico que ocupa a metade esquerda da imagem.
Consultei os resultados em Portugal, fui fazer contas e criei o gráfico da metade direita da imagem.
Cada um tire as suas conclusões.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Ficção ou antecipação?




George Orwell descreveu, na sua obra-prima “1984”, uma sociedade totalitária.
Ao que consta, baseou-a nas sociedades alemãs, russas e britânicas do pré e  pós-guerra, já que a escreveu em 1948.
Um dos aspectos descritos era o incentivo à denúncia de tudo o que fosse fora dos costumes e ditames governamentais. Recordo, e não o leio ou vejo há anos, que os jovens estavam obrigatoriamente inscritos em organizações infanto-juvenis, ao género dos pioneiros ou escoteiros, onde eram catequisados nas leis e morais estatais. E onde lhes era dito que a denúncia era um dever, mesmo que incluísse pais ou irmãos.
Infelizmente esta obra literária, mais tarde adaptada a cinema, mais que visionária acaba por vir a tornar-se realidade aqui e ali. E o “aqui e ali” é já no país-irmão, onde uma deputada incentiva os estudantes a infringir a lei que proíbe o uso de registo de imagens no interior das escolas para que se denuncie os professores que de algum modo propagandeiem ideias ou ideais contrárias ou não alinhadas com o novel presidente e seu apaniguados.
O totalitarismo (de direita, de esquerda, de cima ou de baixo) é sempre perigoso.
Infelizmente, “A democracia é o pior sistema que existe se excluirmos todos os outros!” E o que aconteceu no Brasil, e continuará a acontecer, é o resultado da Democracia. Mas de uma democracia desinformada, que vive de emoções fortes e reagindo ao imediato e a propaganda demagógica, sem ponderar consequências a médio ou longo prazo.
Não podemos ignorar o “efeito borboleta”. E uns bater de asas nas américas, outros na europa, outros na ásia, outros ainda na áfrica acabará, p’la certa, por criar um tufão incontornável e apocalíptico.



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terça-feira, 23 de outubro de 2018

Direitos e exemplos


“Os portugueses estão fartos que se preocupem tanto com os direitos dos delinquentes”, leio aqui e ali.
É curioso que a ausência de direitos dos delinquentes era uma das características dos regimes liderados por Franco, por Hitler, por Mussolini, por Mao, por Stalin, por Salazar…
Teremos sempre gente cujo exemplo queremos seguir. Estes acima referidos não estão, garantidamente, na minha lista!



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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Chulos e companhia




Lentamente, o sistema vai-se impondo, impedindo a privacidade de cada um.
Porque raio terão os cidadãos que ter uma conta bancária para aceder aos serviços de farmácia.
Ou a qualquer outro serviço.
São os registos que ficam das transacções em entidades privadas, são os bancos a ganharem dinheiro com os negócios que faço…
Chamar chulice a isto não me parece demasiado.



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Notícias falsas




Há por aí muita gente chocada com a questão das notícias falsas. Tanto nos EUA, como no Brasil e até mesmo Portugal, a dar fé num artigo de jornal.
Trata-se de notícias, criadas por jornalistas ou não jornalistas, postas a circular nas redes sociais ou mesmo na comunicação social, com objectivos bem claros de condicionar a opinião pública neste ou naquele sentido.
Confesso que não entendo tanto choque ou espanto.
Numa das mais arrepiantes obras da literatura mundial – 1984 – George Orwell descreveu o ofício do principal personagem como sendo o corrigir os arquivos dos jornais para que não entrassem em conflito com a realidade e as notícias presentes. Por exemplo, se a inflação num dado momento fosse de 2,5%, haveria que alterar as notícias publicadas com previsões no ano anterior, que anteviam 2,0%. Nunca o passado poderia contradizer o presente.
Bem que gostaria de ler o que este autor escreveria se vivesse hoje, em plena era das tecnologias de informação e das redes sociais.

A literatura, mais que forma de expressão pessoal do autor ou deleite do leitor, é também um aviso aos vindoiros. E obras há que deveriam ser de leitura ou conhecimento seriamente recomendado no ensino básico ou secundário.



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domingo, 21 de outubro de 2018

Tradições




Dentro de dias teremos o primeiro de Novembro.
Por cá, as lojas estão já inundadas com artigos para a celebração do halloween: máscaras, falsas abóboras, cabeleiras, caveiras e outra coisas que tais.
Nesse dia, por sinal o dia de todos os santos, veremos o misturar de tradições portuguesas com as importadas, com estas a ganhar terreno.
O “pão por deus”, tradição que, ao que sei, tem umas centenas de anos e ganhou importância no que se seguiu ao terramoto de 1755, vai caindo em desuso: porque o que é anglófono é que é bom, porque as tradições de pais e avós não prestam que são dos cotas, porque o medos de crianças de porta em porta é grande e nunca se sabe o que poderá acontecer…
Não faço ideia do que será a minha vida laboral nesse dia. A inconstância dos meus horários dificilmente me permite antever tal coisa.
Mas se estiver por casa se e quando a canalha miúda me bater à porta, conto ter algo doce para dar. E tentar fazer mais uns registos de máscaras no patamar da escada.
Que se as tradições já não são o que eram, nem mesmo no pão por deus, as minhas fotográficas tento que sejam.
Quanto ao comércio alusivo à data… uns saquinhos de pano ou serapilheira para recolha de “donativos” seria uma boa estratégia, mesmo com caveiras estampadas: mantinham tradições e sempre se evitavam os plásticos.



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Ainda sobre o fazer-se e divulgar-se fotografias.




Dividiu-se a sociedade portuguesa sobre o publicar de fotografias de três foragidos à justiça. Algemados, no chão, com olhar de presa acossada, temendo pelo seu futuro imediato mas, ainda assim, com alguma arrogância no rosto. Para ajudar à festa, um dos detidos está em tronco nu, reforçando a ideia de mau trato ou vergonha ou submissão.
E a sociedade dividiu-se com dois argumentos:
- A populaça, sedenta de vingança e satisfeita com a captura de criminosos violentos, aplaudindo as forças policiais que em pouco tempo cumpriram a sua missão. E invectivando os detidos;
- Os que argumentam que a justiça, nas suas diversas formas institucionais, não deve humilhar ninguém e seguir os trâmites estabelecidos. E que estas fotografias, assim feitas e divulgadas, pouco ou nada respeitam o ser humano, mesmo em tratando-se de criminosos.
Vou, aqui e agora, deixar de parte a questão da eventual culpabilidade dos fotografados. E da forma como estão retratados.
Vou, antes sim, ponderar da legitimidade do registo e sua divulgação. Destas e de quaisquer outras pessoas.
Por muitas voltas que possamos dar ao assunto, é mais que óbvio que os retratados não foram questionados sobre se autorizariam ou não o registo. Ou a divulgação.
O que diferencia, então, estas fotografias de outras, em que os retratados estão em situação de não se pronunciarem? Feitas à distância e à socapa ou de surpresa e de corrida no meio da multidão. No meio de uma actividade banal, como caminhar na rua ou num enlace afectuoso e mais próximo com alguém. Ou, no outro extremo da escala, aquelas outras também feitas à sorrelfa mas consumidas até à exaustão, da execução por enforcamento de Saddam Hussain.
A actual disseminação de aparelhos de captação de imagem, estática ou animada, em que qualquer um pode possuir, usar e divulgar registos, faz com que a imagem, mais que documento, mais que registo para os vindoiros, mais que expressão pessoal, mais que arte (seja lá isso o que for), seja uma forma de competição. Em que os produtores de imagem procuram ir mais longe na sua actividade, com trabalhos mais e mais ousados, mais e mais impactantes, mais e mais aplaudidos. Mas menos e menos éticos, menos e menos respeitadores dos princípios básicos de respeito pelo próximo, menos e menos civilizados.
A civilização é algo evolutivo, ajustando comportamentos e éticas em função dos tempos, das modas e das técnicas. Temos toda a história das civilizações para o demonstrar. E é igualmente ela que nos conta – saibamos nós ouvi-la – que os picos tecnológicos são, regra geral, o início do seu declínio.
Os padrões de comportamento, quantas vezes baseados na competição por uma afirmação social, levam a que o respeito pelo individuo, pelo grupo, pelo todo, percam importância na luta desenfreada por “um lugar ao sol”.
E isto é válido nas relações comerciais, no domínio pelos meios de produção de bens, nos relacionamentos afectivos, nas relações entre povos. E na fotografia.
A “democratização” da produção da imagem material, com o seu fácil acesso, produção e divulgação, se tem a vantagem de permitir evidenciar quem tem potencialidades criativas para além das posses materiais, também permite ou incentiva a que os escrúpulos fiquem na gaveta, escondidos entre meias e likes.
Por outro lado, a facilidade com que a imagem é divulgada sem filtros éticos, faz com que o seu consumo se transforme num “vício”, em que o consumidor quer mais e mais e mais. E o procure. E o aplauda, para gaudio de quem produz.
E, nesta desenfreada procura de afirmação social por parte de quem faz fotografia (ou vídeo), pouco importa quem são os fotografados e em que circunstâncias. Tornando cada um presa fácil dos caçadores de imagens. Mesmo que não queiramos ser caçados.
E, ponderando os direitos e as liberdades de uns e de outros, resta a quem não queira ser fotografado ficar em casa, de janelas fechadas. Que os gritos de “liberdade artística” ou “liberdade de informação” sufocam e emudecem os que se recusam a ser registados.

No caso específico dos foragidos assim fotografados, estes nem tiveram possibilidade de se recusarem a tal. A diferença entre estas fotografias e as feitas no jardim zoológico aos animais na jaula é tão ténue que não a distingo.
E, no entanto, afirmamo-nos como seres superiores, com inteligência e alma.
Confesso que não vejo grande diferença entre estas fotografias, feitas em pleno século XXI, e as que foram feitas a mulheres francesas no final da 2ª guerra mundial, acusadas de colaboracionismo e relações intimas com os alemães. Ou das “street photography” dos tempos modernos.

Imagem palmada da net

Fotografia e justiça




É verdade que sim: terem mostrado aquelas fotografias daqueles três foragidos, presos daquela forma, não será o que há de mais digno.
Tratam-se, é certo, de pessoas acusadas de crimes de roubo violento contra idosos que, ao que parece, não mostravam piedade pelas vítimas. E que já possuíam um cadastro criminal “recheado”.
Mas também é certo que todo o ser humano, por mais abjecto que seja, tem que ser respeitado. A máxima “não faças aos outros o que não queres que te façam” aplica-se também neste caso. E é para evitar que a justiça seja aplicada por mãos próprias, quiçá desproporcionada, que temos códigos e leis e tribunais.
Por hediondos que possam ser os crimes de que vão acusados, deverão ter um tratamento igualitário como os demais acusados: detidos, acusados, defendidos, julgados e, sendo o caso, cumpridores de pena. Tudo o que ultrapasse isto será descer tão baixo quanto os crimes de que cometeram. A justiça, que se quer fria e imparcial, não pode pactuar com humilhações como a divulgação destas fotografias.
Nada contra, entenda-se, a forma como estavam detidos: algemados, no chão, a aguardar transporte de volta às celas de onde fugiram. As circunstâncias da sua detenção não são conhecidas com rigor. E não se pode esperar dos agentes da polícia, que lidam com criminosos violentos, “luvas de pelica” e frases como “por favor, deixe-nos detê-lo.”
Mas esta exposição pública, desta forma, não é digna de um estado de direito.

Quanto ao resto, não nos enganemos:
Volta e meia passam series documentais, rodadas noutros países, em que as detenções de criminosos são registadas e são tão ou mais violentas que estas fotografias. Tanto nas actuações das forças da lei como nas reacções dos perseguidos. E não vejo coros de público a protestar contra tais exibições televisivas. Ou os vídeos publicados on-line por jornais.
Talvez porque o “lá fora” seja muito longe.
A dignificação das forças policiais não pode passar por situações como esta. Nem o estado civilizacional em que vivemos.
Quando não, fará sentido o regresso das execuções públicas, os pelourinhos e as estacas com cabeças à entrada das cidades. “Só para avisar”.



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sábado, 20 de outubro de 2018

Feito por medida




Ele tinha emigrado para o Brasil. Por lá fez família e fortuna. E regressou com ambas.
Algures no interior, ali para os lados de Viseu, comprou terras e construiu uma quinta. Grande.
Casa senhorial, ao estilo do Brasil, o que não lhe dava grande conforto de Inverno, casas para quem com ele trabalhava, celeiros, estábulos… Nem faltou uma capela, nessa sua quinta, como era então hábito de quem tinha posses, era crente e gostava de se exibir.
E ele gostava mesmo de se exibir, pese embora o cerca de metro e meio que media.
De tal modo que a sua capela tinha a porta exactamente da sua altura. Ao que sei, tinha que tirar o chapéu, coisa normal numa igreja, para que nela não batesse.
Claro está que era o único que entrava na capela de cabeça erguida. Todos os demais, trabalhadores, familiares e visitas, tinham que se curvar onde ele entrava direito.

Esta história, que tenho por verídica por ter visto a dita quinta e capela, passou-se com um antepassado de um amigo e mestre meu. E se a sei foi porque decidimos um dia acampar no que restava daquela propriedade para tentar reproduzir as fotografias que existiam de quando a quinta era viva e vivida.
Dela restam ruínas, que os descendentes trataram de malbaratar a fortuna, repartindo terrenos e gastando à tripa forra. Ao meu amigo e mestre chegou apenas a memória contada de boca em boca, alguns registos eclesiásticos e nada mais. Nem um cêntimo. Ou mesmo a escassa altura do seu antepassado.

Não, não tenho os registos do que fizemos. As fotografias ficaram com esse meu amigo, entretanto falecido, e perdi-lhes o rasto.



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Segurança



Com certas pessoas e em certas circunstâncias, tenho sempre receio que a válvula de segurança não seja suficiente e que me salte a tampa.

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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Memórias




Uma pequena grande história, verídica mas que poderia ter sido escrita por Corín Tellado.

Quando eram jovens namoraram-se. Do modo que os costumes de então permitiam e os afectos que tinham impeliam. E tinham um projecto a dois.
Acontece que nesse entretanto ele “deu uma facadinha” no namoro. As coisas não correram bem e acabou por ter que casar com esta outra. Outros tempos, outros modos.
Mas os afectos originais mantiveram-se para além dos anos.
Quando ele enviuvou, já adiantado na idade,casou com ela que havia esperado por ele.
Conheci estes meus tios-avós já em fim de vida, era eu pequenote.
Do que recordo, entre a memória e o desejo, eram um casal velhinho, vivendo num rés-do-chão no meio da cidade, com um quintal cheio de roseiras. Felizes.



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A fotografia fofinha do dia




A minha objectiva é isso mesmo: objectiva e não subjectiva. Não tem emoções, afectos ou desafectos. É democrática e igualitária, já que na sua convergência, refracção e difracção da luz, trata tudo e todos por igual. Do mais abjecto ao mais ilustre, a todos capta e transmite com a mesma limpidez e perspectiva. Na frieza do vidro e metal, na maciez do plástico e borracha, e na suavidade do seu mecanismo, não distingue amigos de inimigos.

Já o homem por de trás da objectiva é subjectivo. Músculos e neurónios conjugam esforços no bombear do sangue e emoções fazendo sempre comparações entre bom e mau, avaliando afectos e desafectos e reagindo em conformidade. O calor das emoções aproxima-o ou afasta-o do que o circunda, amando, odiando, desprezando ou desejando pessoas, objectos ou situações.

Quando eu, Homem da objectiva, tenho que o ser por dever, entro na objectiva e tento ser uno com ela.
A tudo e todos que à sua frente se exibem ou são apanhados, são tratados por igual, tentando não conhecer amigos ou inimigos, abafando ou tentando abafar emoções endócrinas.

Mas eu, o Homem da objectiva, quando o sou quando quero e gosto, deixo e quero que a objectiva se una a mim e assuma a minha subjectividade.
Vê, transforma, refracta em sintonia com as minhas emoções, boas ou más, positivas ou negativas. Ama o que gosto, despreza o que ignoro, odeia o que me maltrata. Assume o vermelho do meu sangue ou o cinza dos meus neurónios, abrindo ou fechando a íris ao ritmo do coração.

E no espaço que medeia entre o homem da objectiva e objectiva do homem?
Como, defeco e durmo como qualquer outro animal.
E gasto uns litros de tinta a escrever umas linhas…



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Son(h)o




O sonho comanda a vida.
Já o sono comanda a noite.



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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Ecologias




Muito se vai dizendo sobre o Homem destruir a Natureza.
O aquecimento global, a extinção de espécies, a poluição, a desmatação…
Diz-se que vamos destruindo a Natureza.
Esquecem-se, esses que o dizem, que nós mesmos somos a Natureza. Fazemos parte dela, integrante, enquanto espécie nativa. Em paralelo com os elefantes, as térmitas, os coalas e os corais.
Tudo o que o Homem faz é natural, mesmo que crie e transforme objectos ou altere a atmosfera e os solos. Até mesmo a extracção de minério é coisa natural, porque o Homem é bicho natural.
Aquilo que realmente acontece é fazermos parte do desequilíbrio intrínseco da natureza (do sistema solar, do universo). Que, ele mesmo, não é nem estático nem imutável. O desaparecimento de estrelas ou mesmo galáxias, com tudo o que isso significa, é rigorosamente o que fazemos no planeta, apenas noutra escala.
Quando daqui por uns milhões de anos, e se o Homem ainda for espécie viva, não faltará quem diga que o próprio arrefecimento do sol ou a sua explosão será consequência dos nossos actos.
Aquilo que podemos dizer, e fará sentido dizermo-lo, é que gostamos do que temos e não o queremos alterar. As paisagens, o oxigénio, o nível do mar, a alimentação…
A menos que se diga que foi um erro dos deuses o extinguirem-se os dinossáurios, coisa que, ao que sabemos, não foi obra do ser humano.
Entendo o conservadorismo ecológico e as ideias que lhe estão associadas.
Mas não nos devemos esquecer que, à escala do universo, valemos coisa nenhuma e somos bem mais efémeros que o planeta em que existimos. Para trás e para a frente na linha do tempo.
Devemos estar gratos a esse desequilíbrio universal pela evolução que tivemos até aqui. E termos consciência que essa evolução nos conduzirá, inexoravelmente, ao ponto de extinção. Enquanto indivíduos e enquanto espécie. Mesmo enquanto pontos insignificantes naquilo que de pouco conhecemos e que chamamos de universo.

Apesar de tudo o acima exposto de modo resumido, continuo a gostar de salada no verão, coisa que só poderá acontecer se chover no inverno. E a ficar preocupado com o desaparecimento das abelhas devido aos incêndios e ao uso de químicos.



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Daquelas pequenas coisas que me irritam e já me fizeram sair do sério:




Estar concentrado numa tarefa – operar equipamentos, escrever, ler – e alguém que chega de novo ir interromper porque quer fazer um “aperto de mão”. Chegam mesmo a ficar parados, de mão estendida, enquanto a tal não respondemos. E refiro-me a gente que vamos continuar a ver o resto da jornada, com quem iremos ombrear em tarefas colectivas.
Caramba!
O cumprimento de quem chega é coisa boa. Não obrigatória, mas boa.
Mas interromper a concentração de alguém não o é. E eu não gosto que me façam coisas não boas. Ou más.
Por mim, que procuro não fazer aos outros aquilo que não gosto que me façam, em chegando ao trabalho e entrando numa sala onde estão colegas, de saída ou de chegada, atiro para o ar um “bom dia” ou “boa tarde” e considero todos cumprimentados. Não interrompo os afazeres de cada um e cada um responderá – ou não – de acordo com o que está a fazer. Em regra, não interrompendo coisa alguma.
Esta minha posição está em linha com o eu não telefonar a ninguém depois das dez e meia ou onze da noite. A menos que seja uma urgência desenfreada. O repouso de cada um, ou a concentração em qualquer outra tarefa a essa hora, tenho-o por quase sagrado. E eu respeito o que entendo por sagrado, fazendo cara feia quando não me respeitam.
Pequenas coisas que me norteiam e que me irritam quando quebradas.



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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Métodos




Em tempos fiz aquilo a que chamava de “trocas fotográficas”.
Baseado no conceito de troca em vez de compra e venda, propunha ao participantes aprenderem algo sobre fotografia e, em troca, darem-me o que entendiam desde que feito pelo próprio. Um método de subverter o sistema, levando a pessoas a praticá-lo e a querem praticar mais
Em regra, partia para cada uma dessas trocas com um assunto definido, para além de esclarecer as dúvidas que me apresentassem, e fazia as convocatórias para esses encontros através de posts publicados na net.
Sempre acompanhados de uma imagem que, de algum modo, se identificasse com o assunto principal das nossas conversas ou exercícios.
Esta foi uma das usadas então, em 2012. O tema era “luz” e pedia que, em troca, me entregassem uma fotografia impressa com um auto-retrato.



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Democracia




Parece que o clube de bola Barcelona não gosta de ter como colaborador fora dos relvados gente que apoia Bolsonaro nas eleições no Brasil.
Por acaso até nem gosto do candidato. E desagrada-me ver gente de bem ir na conversa desse homem.
Mas daí até afastar das funções que ocupa na organização quem o apoia…
Suponho que também afastam os apoiantes de Stalin. E de Mao. E de Trump. E de Le Pen. E de Hitler. E de Pol Pot.
Já agora: existirão alguns apoiantes de Franco entre os funcionários de clube de bola?



Imagem palmada na net

Memória




Fala-se deste e daquele político, dos seus discursos e ideias, das suas práticas e envolvimentos.
Com o passar dos tempos e a memória curta dos cidadãos, os actos acabam por cair no esquecimento. Ou quase. Claro que há jornais que não esquecem, a internet para “não deixar esquecer” e alguns que nunca esquecem.
Veio agora a lume que o cidadão Ricardo Rodrigues é suspeito de favorecimento do irmão. Não seria nada de incomum não fosse o caso de ser autarca nos Açores.
E não fosse o caso de ter sido ele, enquanto deputado e incomodado com o rumo das perguntas de uns jornalistas, ter furtado os gravadores que estavam a ser utilizados.
Claro que o caso dos gravadores remonta a 2010. E claro que, depois disso, Ricardo Rodrigues se afastou (ou foi afastado) da ribalta política nacional, tendo integrado listas numa eleição autárquica, nos Açores, em que foi eleito.
Também claro que, em tribunal, a argumentação usada em sua defesa foi suficiente para que o furto não fosse punido.
Mas a memória, pelo menos a de alguns, não se apaga. E não me espanta que um deputado nacional que protagonizou o chamado “caso dos gravadores”, seja agora suspeito de, enquanto autarca, ter favorecido um familiar num negócio lá na sua terra.
A justiça funcionará de acordo com os argumentos usados e o desfecho do caso se saberá. Ou não.



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terça-feira, 16 de outubro de 2018

Venenos televisivos




Por estranho que pareça, lamento não estar a viver na zona afectada pelo furacão este fim de semana.
Se assim fosse, faria parte daquele grande grupo de gente que está sem comunicações e energia eléctrica. E, consequentemente, não teria acesso as emissões televisivas.
E se não tivesse energia eléctrica nem pudesse ver televisão, não teria visto ontem uma jornalista (será que ainda tem carteira profissional?) num canal generalista a destilar veneno partidário e pessoal.
Bem sei que tive sempre a possibilidade de mudar de canal, de premir o botão off, de sair do lugar. Mas confesso que tive alguma curiosidade em ver o quão longe se pode chegar. Fiquei surpreendido.
Felizmente os comentários no sítio onde me encontrava passaram a incidir sobre o pingente ao pescoço, pechibeque ou não, que de uma semana para outra mudou de pistola para caveira de toiro. E, com esta futilidade, o ódio que emanava da caixa que mudou o mundo não inundou por completo o local.
Pergunto, sem sofisma, qual a credibilidade desta pessoa se num futuro voltar a apresentar ou dirigir noticiários televisivos?


Imagem? – Roubada da net

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Sociedade e sua organização




Em tempos era assim, não sei se ainda será.
Os tripulantes das traineiras que pescavam na costa portuguesa recebiam um valor base mensal e uma percentagem sobre a venda do pescado na lota.
Esta percentagem variava consoante a função a bordo, do mestre maquinista ao mestre das argolas, passando pelo mestre da embarcação.
No entanto, havia, e espero que ainda haja, quem receba uma percentagem apesar de não sair com a traineira.
Eram idosos que, fazendo parte do conjunto do navio, já não tinham o vigor necessário para a dura faina da pesca. Ficavam em terra e eram os responsáveis pela manutenção das artes, redes ou armadilhas, fazendo as reparações necessárias.
Para além da imprescindível função, tratava-se de uma forma de manter activo e útil na sociedade os mais velhos, tirando partido da sua experiência e permitindo o ganha-pão.
A solidariedade ancestral da sociedade não se baseia na “caridade” para com os mais necessitados. Não era o depósito de velhos, supostamente inúteis e arrumados longe da lufa-lufa dos afazeres.
Os mais idosos, apesar de menor vigor físico, têm uma mais-valia que os mais novos não têm: experiência. Podem ser e são tão ou mais uteis que os mais novos, evitando os erros naturais dos entusiasmos, freando os ímpetos de quem quer um “lugar ao sol” e transmitindo conhecimentos que, as mais das vezes, não se aprendem nas escolas e manuais.
E a sociedade, aos tê-los no activo adaptado às suas capacidades, evita pesos-mortos e mantém-nos integrados no tecido social, fazendo com eles, os mais velhos, não se sintam inúteis ou a mais.
Uma sociedade bem organizada tira partido de todos os seus elementos, ajustando os resultados às suas capacidades.
Como se tudo isto não bastasse, a responsabilidade dos mais novos pelos mais velhos é idêntica à dos mais velhos pelos mais novos, quando estes são incapazes de prover ao seu sustento.
E, a este respeito, recordo ainda um episódio a que assisti há anos, numa pequena praia alentejana.
A pesca fazia-se em pequenas chatas, de um ou dois pescadores, que chegavam à vez ao minúsculo areal rodeado de falésias. A lota só acontecia quando todos estavam presentes, para dar oportunidades iguais a todas as embarcações e pescadores. Os preços aconteciam perante o pescado da noite e não em função do primeiro ou do último que chegasse.
Se a sociedade moderna, industrial, de consumo e de comunicação, viciada em competição e mais-valias, aprendesse com quem é realmente solidário e dá valor a todos os elementos da sociedade…



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Folhas de couve




Dos vários jornais que vi hoje on-line, dois falam daqueles que irão fazer parte do governo de Portugal, em resultado da remodelação.
Triste mesmo é ver que o destaque que dão é o facto de uma das pessoas agora nomeadas ter assumido publicamente a sua orientação sexual há uns tempos.
Não referem que cargos cada um deles ocuparam, ignoram o que possam já ter feito para que se justifique a escolha, passam ao lado o que positivo lhes aconteceu ou os notabilizou. A orientação sexual de uma dessas pessoas e o contado em público é o facto relevante.
Um dos jornais não me surpreende, já que sua especialidade é remexer e produzir lixo e fazer disso o seu prato forte diário.
O outro não me surpreende face à sua posição político-partidária não assumida. Muito menos assumida que a orientação sexual de quem hoje toma posse.
Acredito que se um dos agora nomeados tivesse uma unha encravada também seria notícia.

O problema disto é a contaminação da sociedade, fazendo do irrelevante destaque e procurando, por todos os meios, denegrir gente apenas e só porque têm posições ou opiniões diferentes dos escribas de serviço.
Em tempos usavam-se os jornais para forrar os caixotes de lixo. Agora já nem isso.



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domingo, 14 de outubro de 2018

Cântico negro




"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'


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A fotografia fofinha do dia



By me

Sim, vou falar do furacão




Em primeiro lugar, nunca percebi o que terão contra os cães. Poderia ser furaleão ou furagato ou até furabarata, bicho de que ninguém gosta. Mas insistem em chamar-lhe furacão e no entanto toda a gente gosta de cães e faz fotos e textos fofinhos a seu respeito.
Agora falando a sério, acontece hoje, tal como durante a noite, uma sensação de coito interrompido.
Porque, finalmente, iriamos entrar na primeira liga dos países que têm fenómenos climatéricos bem adversos, com listas de danos e seus custos, vítimas (muitas) a sepultar, apoios internacionais… e no fim de contas, acabou por ser o equivalente a uma noite bem invernosa, apesar de poucas inundações. Estas sim, bem típicas cá do burgo, com as nossas linhas de água interrompidas por construções aprovadas, sargetas entupidas, lojas abaixo do nível do solo ciclicamente afogadas…
E ficaram todos frustrados, público em geral e media em particular, porque os avisos da protecção civil, baseados em previsões, não se concretizaram. Os ventos não foram assim tão fortes, os directos não mostraram assim tantos estragos, as protecções individuais acabaram por de nada servir…
Avisam todos esses frustrados do desastre, os falidos da calamidade, que a história do Pedro e do Lobo, sendo uma fábula, não pode ser esquecida. Que os alarmes não devem ser maiores que os danos, que em breve ninguém acreditará nos avisos, que as instituições e os media devem ser mais comedidos…
Pergunto o que diriam todos esses, e os outros, se a situação fosse a inversa. Se os avisos e alertas de protecção não existissem ou fossem mínimos, pese embora os indícios e previsões fossem indicadores de catástrofe iminente. Se, por falta de alertas e com uma tempestade violenta, no lugar de algumas dezenas de desalojados, os tivéssemos aos milhares, se as escavadoras estivessem agora à procura de corpos, se o presidente não tivesse mãos a medir nos abracinhos de consolação.
Diriam os críticos de hoje que os serviços não funcionaram, que haveria que demitir os técnicos responsáveis e os políticos que os tutelam, que se poderia ter feito muito mais na prevenção…
Sim! Os jornais e televisões não deveriam estar tão sedentos de sangue, quase chorando de raiva por não terem ou quase não terem assunto para falar ou mostrar. Deveriam, antes sim, estarem satisfeitos por os alertas terem funcionado, os cidadãos terem respondido positivamente e as consequências funestas, pese embora os elementos não se terem manifestado com a violência antecipada, terem sido bem menores que o temido. A comunicação social, no seu todo, fez um mau serviço.

Mas se não gosto dos arautos da desgraça, porque o pessimismo agudo é uma doença contagiosa e mortal, o certo é que a inconsciência e a falta de prevenção primária são tão ou mais perigosas.
Como diz o povo, “Prudência e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém!”

Imagem: edit by me from the web

sábado, 13 de outubro de 2018

Dúvidas




Quando fecharam o tasco correram com os retardatários, alguns com bem mais que um grão na asa. Aquele tinha vários.
Cambaleando pela rua, acabou por se apoiar num candeeiro que, aceso, iluminava a fachada de uma farmácia de serviço. E, encimando a porta, algo como isto.
Cogitando com os seus botões, mas não em voz baixa, perguntou: “Então isto lê-se farmácia ou parmácia?”
Tão forte e repetida foi a dúvida, alimentada por álcool não etílico, que acabou por decidir: “Vou perguntar!”
E apoiou-se no botão de chamada, esperando que o atendessem. E foi um bom bocado, que quem veio abrir o postigo estava com cara de quem dormitava.
E insistiu na pergunta: “Então aquilo lê-se farmácia ou parmácia?”
Nada satisfeito com o motivo de acordar, respondeu-lhe o outro atrás do postigo: “Oh homem! Lê-se o raio que o parta!”
Dando dois passos atrás e olhando para cima cambaleando, comentou o noctívago: “Ena tão mal escrito!”



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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Graffiti




Tenho para mim que os trabalhos de graffiti têm diversas vertentes sob as quais podem ser analisados e apreciados.
Para além das questões de estética (óbvias), de mensagem (não tão óbvias nalguns casos) e de irreverência ao ocupar uma superfície sem autorização do seu dono (o que nem sempre será verdade), haverá que pensar em:
- Um graffiti numa parede virada para a rua é vista por todos, sem distinção de classe social. Não está guardada numa galeria privada ou museu. O seu disfrute é igualitário e não objecto de autorizações ou pagamentos.
- Uma obra pintada numa parede exposta ao sol e à chuva é efémera. Mais duradoira que desenhos a giz no chão ou em areia, existe enquanto as cores ou relevos não forem minimizadas ou anuladas pelos elementos. Ou pelo dono da edificação. Ou o suporte ruir.

Quando Banksy reproduziu para tela um trabalho seu conhecido como sendo um graffiti estaria a subverter esses conceitos de “democracia” no desfrute e de efemeridade. E não nos esqueçamos que em 2014 um muro com um trabalho seu foi removido por inteiro em Cheltenham, Ingraterra, para fazer parte de uma colecção particular.

Acredito que a destruição parcial de uma tela com uma reprodução de um trabalho seu tenha sido uma forma de contestação à privatização da arte em geral e da sua em particular. Mas nada há que mo confirme que não o meu próprio desejo que assim tenha sido.
Genial!

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Não fui demitido




Em tempos, aí pelo virar do século, num corredor onde passava muita gente mas que no momento estava vazio, disse-me um chefe à boca pequena:
“Cala-te! Tu falas e escreves muito. Cala-te!”
Referia-se ele ao que eu ia escrevendo e publicando numa rede social, entretanto extinta. E que, ocasionalmente, imprimia e afixava por lá.
Não me calei. Então ou agora. E não fui demitido ou convidado a demitir-me de um cargo de chefia ou direcção porque não ocupava nenhum.
Ainda hoje não ocupo.



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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Número de eleitor




Recordo que em tempos, talvez que nos anos setenta ou oitenta, se propôs a criação de um cartão único.
A ideia, semelhante à do cartão do cidadão actual, era convergir num só cartão toda a panóplia de cartões que se transportava, desde a segurança social ao de identificação, passando pela carta de condução etc.
Na época, a ideia foi rechaçada com o argumento que tudo isso num só arquivo e documento iria perigar a privacidade dos cidadãos e permitir que entidades menos éticas tivessem acesso a dados sensíveis sobre eles.
O tempo passou e aquilo que então se apresentou e recusou é hoje uma realidade. Com os mesmos perigos inerentes.
Sabemos que as bases de dados electrónicas não são invioláveis. Sabemos o apetite que empresas e organizações têm por essas basas de dados. E como o acesso a elas pode fazer perigar o acesso a serviços, como bancos, seguros, saúde… Até a empregabilidade e a sobrevivência de cada um pode ficar comprometida.
Fiquei agora a saber que o número de eleitor foi extinto.
Uma lei (ou decreto lei, não sei já) datada de agosto deste ano, extingue esse número e o respectivo cartão. Mais uma informação que fica concentrada no cartão de cidadão e nas bases de dados estatais. E, muito naturalmente, acessível à leitura de quem possuir o respectivo leitor e software de interpretação. E, sabemos, esse tipo de acesso está ao alcance de quem o queira saber e tenha os contactos certos.
Em breve, e numa perspectiva Orweliana, a privacidade do cidadão será algo do passado, recordada com nostalgia e amargada a sua ausência.
Para os que acham que é afirmação de um arauto do apocalipse, recorde-se os recentes e tristes acontecimentos no Brasil e o que foi feito sobre cidadãos que publicamente declararam a sua oposição a Bolsonaro. Ou ainda, mais drástico e não tão assim distante, o uso de números tatuados e ficheiros na Alemanha nazi.

Sendo certo que nenhum objecto é por si só perigoso, é o seu uso por gente sem escrúpulos que me assusta. E cada vez mais essa gente vai ganhando importância na sociedade, não apenas nos lugares decisórios como entre os “comuns mortais”.
E pese embora termos por cá uma entidade intitulada “Comissão Nacional de Protecção de Dados”, a sua opinião é apenas isso – opinião. Não é vinculativa e não pode impor ou impedir. Pode fiscalizar, pode sancionar se for o caso e só alguns casos. Mas o seu papel ético é limitado.
Aos poucos, sob a égide deste ou daquele governo e com o recurso às actuais tecnologias, vamos perdendo a privacidade, ficando cada acto registado sem o sabermos e com consequências que apenas podemos imaginar. E temer.

Na imagem, que foi roubada da net, um dos agora raros conjuntos de placas para tatuar prisioneiros no campo de Auschwitz.


By me