terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Feliz ano




Ouvi um montão de gente a desejar um “feliz natal”.
E oiço um montão de gente a desejar um “bom ano”.
Não seria muito mais interessante (e produtivo, e generoso, e auspicioso) se desejassem antes um “feliz ano”?
É que, caramba, se houver felicidade tudo o resto não apenas estará incluído como, mesmo que não esteja, será pouco relevante a sua ausência.
Assim, e para todos vós, um feliz ano, bem como os que se lhe seguirem.



By me

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Baratinho




Em tempos estive inserido no mercado fotográfico. Fiz fotografia de teatro, de publicidade e umas aventuras mínimas na reportagem.
Deixei essa actividade por três motivos: porque não precisava dela para viver, porque odiava a competição insana do mercado e porque ouvi vezes demais pedirem-me “faz baratinho”.
O não precisar da fotografia para viver é apenas uma força de expressão. Tinha e tenho um outro ofício, regular e com ordenado certo, que me paga as contas. A fotografia era, e é, o que me alimenta a alma. E o que ganhei com ela, se não serviu para por comida na mesa, serviu para pagar equipamento e completar em satisfação e dinheiro o que fazia e faço no meu emprego.
A competição é algo que odeio. Ninguém tem que ser melhor que ninguém, ninguém tem que ser mais que ninguém, ninguém tem que ter mais que ninguém. O mundo e a vida são suficientemente cheios e ricos para que todos possam ter o seu quinhão sem que com isso tenham que apoucar os demais. E se eu não vivo de menorizar ninguém, não gosto de ser alvo disso mesmo.
O pedirem para fazer baratinho é algo que me desagrada profundamente. É menosprezar o trabalho, é achar que o que se sabe fazer pouco vale e que o tempo investido para aprender e melhorar é de borla. Prefiro, desde sempre, oferecer os meus préstimos de borla a fazer baratinho.
Acrescente-se que aqueles que agora estão a entrar no mercado e que fazem baratinho, não apenas estão a apoucar o que fazem como estão a prejudicar todos os outros, ao fazer baixar os preços ao limite das despesas directas.
A única situação é que peço desconto é quando, em pagando algo, pergunto se tenho direito a desconto por pagar em dinheiro trocado. E a única resposta que espero obter em troca é um sorriso divertido que ajude a quebrar a monotonia a quem está do outro lado do balcão.
 Divirtam-se e façam o favor de ter uma vida cheia.



By me

domingo, 29 de dezembro de 2019

Tampas raras




Isto de ir recolhendo, fotograficamente, as tampas que todos pisamos e às quais ninguém presta atenção, pode levar-nos e encontrar pequenas preciosidades.
Algumas, como em Lisboa, contêm o clássico logotipo da cidade: a caravela com os corvos. Outras estão identificadas com o nome da empresa sob cuja tampa estão instalados equipamentos ou condutas: comunicações, líquidos ou gás, energia…
Em regra, letras e poucos desenhos, o que caracteriza a maioria dos logotipos de grandes empresas ou instituições. Simplicidade e rapidez de identificação, aliadas à facilidade de impressão ou apresentação em diversos suportes e mono ou pluricromáticos. Aqueles que se dedicam a artes gráficas sabem do que estou a falar.
Este exemplar reúne o insólito a dois níveis: um logotipo muito elaborado e com muitas curvas e a sua inscrição numa tampa, com o que isso implica de complexidade e custo de produção.
Não falo ideia de quanto tempo vigorou o logotipo até ser transformado em algo mais simples. Dele restarão os impressos não usados, as cartas enviadas e esta tampa, numa rua da Amadora.


By me

Desabafo mal-humorado em modo de revista do ano



Foi um destes dias!
Em mostrando uma fotografia recém-feita a um colega, numa pausa no trabalho, pergunta-me ele:
“Boa! Photoshop, não?”
Consegui ser suficientemente urbano e não dizer o que me ia na alma.
Mas creio que o meu olhar foi explícito, quando lhe disse que não, que a luz era mesmo assim e que me havia limitado a fazer o corte que havia imaginado aquando da obturação.

Perdeu-se o hábito de ver antes de fotografar, de fazer as opções certas em função do resultado desejado.
Hoje aponta-se, carrega-se no botão e depois logo se vê o que se faz com o resultado.
O pós-processamento é importante. Sempre o foi, desde os primórdios da fotografia. Faz parte de tudo aquilo a que chamamos de “fotografia” e que é o que medeia entre o vermos e o mostrarmos. Mas fotografar sem se imaginar o resultado final, sem se ter uma noção razoavelmente exacta daquilo que iremos mostrar…
A fotografia hoje é o fast-food do registo lúmico. O pensar antes de fazer ou o pensar depois de feito, analisar as opções tomadas e aprender com isso, dá trabalho, consome tempo e é pouco social.
Em parte devido ao custo zero do premir o botão, em parte devido ao conceito de “fotógrafo é artista e aquilo também eu faço”, em parte porque fotografar hoje é uma afirmação social.
É sempre um exercício útil, se bem que raro e difícil, o ver-se a quantidade de fotografias falhadas ou rejeitadas por aqueles que são invejados ou admirados antes que apresentem uma imagem final.

Se fazer arte com fotografia fosse assim tão imediato e instintivo, teríamos uns valentes milhões de artistas fotográficos p’lo mundo fora. E umas poucas centenas de pobres coitados, frustrados, que penam, estudam, treinam e tentam, antes de terem coragem de apresentar uma fotografia que se veja.
E não! Não estou a falar de mim que, com muita sorte, faço uma mediana fotografia a cada dois meses. O resto é vício. 

By me

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Prendinhas



E agora, que o tal de natal já acabou, será que podemos concentrarmo-nos nos nossos problemas reais?


Ou será que vamos continuar a fazer de conta que há Pai Natal, que a ecologia é substituirmos a gasolina por renas e que os laçarotes coloridos são pacotes de saúde, alimentação em kit, justiça em fascículos e devoluções de impostos em calda?

By me

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Ex-tradições



Hoje estou de apetites.
Não me apetece manter tradições de décadas e apetece-me criar novas tradições. Que se manterão por décadas. Ou que se misturarão umas com as outras.
Hoje o tasco das portas de Santo Antão não me terá como cliente. Nem os vendedores de kebab. Nem irei ver os turistas a passearem de mão dadas, mesmo que com nevoeiro. Nem irei ver aqueles que fizeram dos vãos de escada o abrigo de consoada. Nem passarão por mim os que vão à missa deste dia na baixa lisboeta. Nem cumprimentarei o decano dos ciganos na praça do Comércio. Nem darei cigarros aos que os têm por único luxo. Nem verei a rua Augusta vazia como só hoje. Nem farei registos de gente ou de locais, conhecidos ou desconhecidos. Menos ainda, não irei ali para as avenidas para um almoço dispendioso.

Hoje estarei onde quero agora estar e onde me sinto bem como nunca.

By me

domingo, 22 de dezembro de 2019

Tradições



Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.
Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.
Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.
E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.

Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:

Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.
A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.
Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.
Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.
E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.
O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!
O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.
Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!
Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.

Texto: by José Vilhena
Imagem: by me

sábado, 21 de dezembro de 2019

Fedon



O meu tio Artur era uma figura impar.
A sua vida daria um belo romance de amor. Talvez um destes dias aqui volte a falar nele.
Tinha ele uma atitude extremamente positiva para com quem o cercava.
Quando o visitava, havia sempre uma caixa enooooorme de chocolates suíços, onde a minha dúvida era na escolha por entre aquelas fotografias de paisagens alpinas que nos deliciavam os olhos e a boca.
Possuía uma agenda bem grande, daquelas de secretária e que todos os anos laboriosamente era copiada para uma nova, onde tinha anotado os aniversários de todas as pessoas que conhecia, parentes ou não. Diariamente, antes de sair de casa, consultava-a, tomava apontamentos e passava pelos correios afim de enviar aos aniversariantes um telegrama de parabéns. Mesmo que já não visse ou falasse com a pessoa há muitos anos.
Era meu tio-avô, pelo que, quando o conheci, tinha já uma idade provecta.
Uma ocasião, era eu catraio miúdo, fui lá casa com minha mãe.
Ele estava bastante doente, já acamado. Já não sei se ideia dele se de minha mãe, certo é que se quis fazer-lhe uma fotografia.
A dobra do lençol foi arranjada, assim como a almofada, a gola do pijama e os alvos cabelos.
Junto aos pés da cama, minha mãe levou a câmara à cara e enquadrou. No instante imediatamente antes do disparo, meu tio Artur levantou a mão direita e encenou um adeus, sorrindo. Que ficou na imagem latente e, mais tarde, positivado.
Foi a sua última fotografia. Faleceu no dia seguinte.
Aquele homem, com uma vida riquíssima de peripécias e amigos, sabia que estava a chegar ao fim desta sua viagem. E quis mandar uma mensagem de despedida para todos.
Através da magia da fotografia quis despedir-se sorrindo, mesmo que não viessem a ver o seu adeus.
Ainda hoje revejo na memória o fazer dessa imagem. Que não possuo, mas que foi uma das minhas chaves para este mundo maravilhoso da comunicação.

By me

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Uma fábula



Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.
Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Há muito, muito tempo, numa terra muito, muito longe, o sr. Pilim e a srª Narta tiveram um filho. Carinhosamente deram-lhe o nome de Dinheirinho.
Sabendo do acontecimento e exultantes com a boa nova, de imediato três magos de reinos distantes se dispuseram a venerar e ofertar. Vinham eles do reino do Fisco, do reino da Banca e do reino do Comércio.
Ajoelhando-se à chegada, logo lhe entregaram o que traziam: um cartão de crédito, um cartão de cliente e um cartão de contribuinte. E disseram-lhe:
“Aqui tendes as nossas oferendas. Acreditamos que com elas sereis maior e mais poderoso. Usai-as como entenderdes.”
E assim aconteceu: o recém-nascido cresceu, a sua palavra e influência espalhou-se pelos quatro cantos do mundo e tornou-se omnipotente, omnipresente e omnisciente.
Os magos, por sua vez, deram graças pelo seu desenvolvimento e trataram de erguer, em tudo quanto é lugar, templos de veneração: Repartições de Finanças, Instituições de Crédito e Centros Comerciais.
E hoje, todos acorrem aos locais de culto em datas como esta, fazendo as suas preces e doando as suas oferendas, num ritual sempre acarinhado pelos sacerdotes.

Contada esta fábula, tenho que ir ali ao balcão agradecer com uma oferenda este bolo e bica e seguir depois para fazer uma promessa por uns cigarritos que gastarei. Alguém aí tem lume?

By me

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Salomão




Lembram-se da história do rei Salomão das duas mulheres que reclamavam a maternidade da mesma criança? Lembram-se da sentença e das reacções das mulheres?
Há uma semelhança tremenda entre este episódio bíblico e um caso recente mais ou menos mediatizado.



By me

Velhote



Alguém me explique porque é que o bom do velhote, que por sinal até era Turco, desde que não seja representado em insufláveis e não esteja pendurado de uma qualquer janela, tem que ter óculos.
Será que idade implica falta de vista?
E se ele vê mal e precisa de óculos, como é que lê os pedidos de prendas das crianças, escritos, como sabemos, em letra nem sempre das melhores?

By me

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Panelas de Natal



Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.
Usemo-las e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Panelas de Natal

A tradição familiar dizia que o Menino Jesus descia pela chaminé para pôr prendas no sapatinho.
Assim, depois do jantar, a cozinha era imaculadamente arranjada, o fogão forrado com papeis “bonitos” e os sapatos colocados em cima deles.
Na manhã de Natal os pequenos, depois de toda a família acordada, eram autorizados a entrar na cozinha onde, para deslumbre total, lá estavam os presentes. Poucos, que os sapatos eram muitos, mas apetecidos e apreciados.
O mais velho dos quatro foi, naturalmente, o primeiro a ser informado da verdadeira história e a ser incluído na cerimónia da colocação das prendas.Depois do fogão decorado e dos mais pequenos terem recolhido à cama, foi a sua vez de colocar as suas prendas para toda a família, indo então deitar-se, que não podia ver as que lhe eram destinadas antes dos outros acordarem.
Acordou ele a meio da noite, com vontade de urinar e dirigiu-se à casa de banho. Mas logo lhe passou a vontade. Com receio que furasse o bloqueio de acesso à cozinha, tinham atado uma cadeira com tachos e panelas ao puxador da porta de seu quarto. Quando a abriu, tudo se espalhou pelo chão, acordando a casa por inteiro.
Não me recordo ao certo qual ou quais as prendas que recebi nesse ano. Mas tenho a vaga ideia de ter sido um famoso Renault 16 do “Tour” que esventrei e em cujo interior coloquei um pesado imã de bicicleta. Com ele, ganhava todas as provas de todo o terreno que na rua se faziam.
Ainda hoje, quando a família se reúne, ninguém me acredita que, então, apenas queria ir à casa de banho.

By me

Bom português




Não, não é uma simples gralha no título da notícia.
Em lendo o texto na íntegra, constata-se que a mesma palavra está escrita da mesma forma.
O artigo está assinado apenas por “Correio da manhã”, o que responsabiliza o seu director.
Nada que espante, portanto.



By me (o texto, entenda-se)

domingo, 15 de dezembro de 2019

Conceitos e termos


O termo “populismo” entrou no vocabulário geral.
Primeiro de mansinho, pela voz e letra de alguns pensadores e políticos, tem vindo a ganhar relevo entre os mortais.
E, aos poucos, vai sendo usado indiscriminadamente, tal como corrupto, fascista, comunista… Vai sendo usado como insulto sem que, as mais das vezes, quem o usa saiba com rigor o seu significado. Sabem apenas ser isso é mau e é quanto basta.
Infelizmente, e ao contrário do que muitos pensam, o populismo não se aplica em exclusivo a políticos e políticas. Existem diversas formas de praticar o populismo e nem todas na política tal como a imaginamos, com campanhas eleitorais e exercício do poder democrático.
Há quem use o populismo noutras formas de exercer o poder, umas mais notórias que outras, inúmeras não escrutinadas ou escrutináveis.
A algumas chamamos de “demagogia”, outras de “meias-verdades”, outras ainda de “falta de ética”.
Por vezes esta forma de exercer o populismo resulta de corporativismo, outras de ambição pessoal, outras ainda de inveja ou ciúmes desmesurados.
O problema do populismo é que é um pouco mais difícil de detectar, passando facilmente “franqueza”, “lisura”, “honestidade”…
Que os deuses nos protejam destes, que são os mais perigosos!



By me

Memórias e analogias




O mal de já por cá andar há muitos anos é ter muitas histórias na memória.
A esmagadora maioria estão lá, arrumadinhas e sem darem nas vistas. Até que um dia, por “dá-cá-aquela-palha”, surgem à superfície. Umas vezes fortes como touros, outras ténues como dentes-de-leão.
Uma publicação numa rede social continha um nome. Que fez soar campainhas adormecidas há dezenas de anos.
“Será que sim? Será que não?” Fui em busca de uma pista que pudesse confirmar e encontrei a ponta que me faltava.

Aquela pessoa, agora mais ou menos reconhecida no seu meio e cujo nome não referirei, foi uma das que, nos idos do pós-revolução, integrou as brigadas de caça às bruxas, acusando a torto e a direito de terem pertencido ou colaborado com a PIDE. Com ou sem argumentos ou provas, acusava e fazia a vida negra a quem não lhe caía em graça, tendo-se vindo a provar que mentia ou distorcia a verdade em função das preferências partidárias da conturbada época que se vivia.
O tempo passou e, com ele, veio aquele generoso olvido do “Isso são histórias velhas! Não adianta mexer nisso.”
Não adiantará e não serei eu que, aqui e em público, as contarei. Pelo menos estas. Que alguns dos intervenientes, acusadores ou acusados, algozes e vítimas, já por cá não andam para confirmarem ou negarem. E outros, dos que por cá ainda andam, fazem por esquecer o que fizeram ou aquilo de que foram alvo. E os seus filhos, que de algum modo acabariam por ser envolvidos, em nada são responsáveis pelo que aconteceu então.
Ficam as memórias, as minhas memórias, despertadas por um nome que surgiu, fugazmente, numa rede social.
E as eventuais analogias com factos recentes, com outros protagonistas e outros detalhes, mas em linha com aqueles que recordo de há quarenta e tal anos.



By me

sábado, 14 de dezembro de 2019

Partilhas



Várias vezes, no meu projecto fotográfico “À-Là-Minuta” tive discussões quase estúpidas:
Eu a querer entregar as fotografias que fazia de graça, de borla, a custo zero, sem pagamento; e os fotografados a insistirem que não, que queriam pagar, que nada na vida se faz sem dinheiro, que não há coisas grátis…
Claro que há coisas de borla!
As coisas boas da vida não têm preço!
Ouvir um pássaro a festejar a chegada do sol é de borla e delicioso!
Também não se paga por ver uma criança a correr atrás de um pombo, num jogo tão antigo e bonito quanto os pombos e as crianças!
Assim como a partilha! Não a dádiva, que é a troca de posse de algo entre pessoas. A partilha!
O fazer com que algo, material ou não, não tenha dono ou registo, que seja usado por quem dele necessita, sem que se escreva no livro do deve e haver. Partilha: aquilo que acontece com os fluidos nos vasos comunicantes. Partilha: o nivelar a existência pela satisfação de todos, sem preconceitos ou interesses escondidos. Partilha: o ter a satisfação de saber o outro satisfeito.
Também isto não se faz a troco de dinheiro ou do que quer que seja, mesmo que envolva dinheiro. Coisas, afectos, tempo!

Quando não, trata-se de dádiva, de esmola, de caridade, de negócio, de investimento material ou emocional. E isso, raios me partam, não faço!

By me

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

In-formação




Tenho conversado sobre este tema um sem número de vezes com profissionais do jornalismo: “Façam o vosso trabalho para um público que nem considerem ignorante nem especialista nos temas sobre os quais falam ou escrevem”.
E isto é válido para rádio, televisão, imprensa ou web. E é válido para temas generalistas como sociedade ou mais especializados como desporto, política, cultura, política…
São muitos os que contam o que têm para contar mas sem contextualizar, sem referências geográficas, com vocabulário técnico e hermético… E quem não for conhecedor do tema fica sem perceber boa parte do relatado, por vezes sem perceber coisa alguma.
Eis um exemplo típico:
O título do artigo é o seguinte: “Manifestantes espancam e enforcam numa praça de Bagdad”
O corpo do artigo refere a cidade, nomes de praças nessa cidade, os nomes de políticos e clérigos, o nome de milícias… Mas nem uma só vez o nome do país ou a região do globo onde tal sucedeu.
Um jovem que aceda a este texto, ou alguém pouco informado, terminará a sua leitura apenas a saber da barbárie e dos motivos mas ignorando se perto, se longe, se no médio oriente, asia ou áfrica, passível de deduzir eventualmente pelos nomes envolvidos.
Não se trata de um artigo de “informação” mas antes de “in-formação”.

Em jeito de complemento, sempre acrescento que as fotografias que ilustram o texto mostram alguém pendurado pelos pés num poste e não pelo pescoço, coisa que seria “enforcamento”.
Por outras palavras, a morte terá sido consequência do espancamento e não por ter sido pendurado pelo pescoço. Ou, se preferirem, o ter sido pendurado bem alto não foi um acto de execução mas antes uma exibição. Como se fazia em tempos mais ou menos remotos por cá, em que o executado era exibido para mostrar que a “justiça” tinha sido aplicada e como exemplo a potenciais “criminosos”.

Mandasse eu alguma coisa na comunicação social, fosse qual fosse o suporte (ou mesmo todos) imporia que quem relata com palavras ou imagens fosse obrigado a deslocar-se durante um mês apenas em transportes públicos, ombreando com o público a que se destina o seu trabalho e percebendo, realmente, aquilo que os seus consumidores sabem, entendem e querem saber.



By me

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Traveling 28



Esta história tem já uns oito ou nove anitos, mas nesta coisa de tradições natalícias tem cabimento.

Eu estava encostado ao balcão do café da minha rua, à espera do “banheira e hambúrguer”, código privado ali criado para um café cheio e um pão de deus com queijo e manteiga. Rotinas.
Entrou um dos carteiros que faziam a rota da rua em que morava. Eram três, à vez, e conhecia-os de trocarmos uns dedos de conversa sobre trivialidades como o tempo, ou fotografia com um deles.
Depois de entregar a correspondência para ali destinada, olhou para mim e comentou:
“Ainda bem que o vejo, que andava a pensar em si. Tenho aqui uma coisa que acho que lhe é destinada.” E metendo a mão no pesado saco retirou uma caixa cúbica, aí com uns 20 cm de lado. “Vem do estrangeiro, parece-me”.
Fixe! Baril! Ganda pinta! Afinal o tipo das barbas brancas também recebe encomendas do Polo Norte!
Bem, não seria do Polo Norte, mas tão só do norte, da Grã Bretanha para ser exacto. Mas era lá de cima, do norte e do frio, prontos.
Acrescentou o bom do homem que a letra correspondente ao apartamento não estava bem legível e que poderia ter várias interpretações. E que, em o comentando com colegas lá na central de distribuição, um deles alvitrara que poderia ser para mim, o tipo das barbas e da fotografia. E era, mas achei graça que os carteiros me conhecessem pelo nome num bairro dormitório suburbano e num prédio com 96 apartamentos.
Dentro da caixa, que abri logo ali, estava isto: uma bela de uma objectiva fotográfica.
A sua alcunha era “travelling 28” e era propriedade de um membro de um grupo de fotografia na web de que eu fazia parte. E fora proposto que esta banal 28mm circulasse pelos membros aderentes ao desafio e que cada um fotografasse com ela. Em terminando o périplo regressaria ao dono.
Quando aceitei o desafio imaginei algumas a fazer, nos quinze dias em que “brincaria” com ela, pese embora possuísse uma quase igual, apenas um nico mais antiga. E estava a reservar-me para ela, que não tinha graça subverter um projecto colectivo como este.
Não recordo já para quem a enviei em terminando o prazo: ou foi para um Islandês, o único com esta nacionalidade no grupo, ou foi para um Australiano, terminando comigo a aventura europeia da “travelling 28”.
Em qualquer dos casos, sei que passados meses regressou a seu dono, numa fraternidade rara nos tempos que correm, entre gente que apenas se conhecia das trocas de mensagens e experiências num fórum global.
Fosse como fosse, e como natal é quando um Homem quiser, naquele ano chegou mais cedo, no café, e abri a prenda antes da data habitual.
Boas festas com ou sem prendinhas.

By me

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Formas de estar



É incrível a quantidade de pessoas que são anti. Anti-Qualquer-Coisa.
Anti-fascista, anti-racista, anti-capitalista, anti-comunista, anti-sistema, anti-euro, anti-violência,… anti!
O que é curioso – ou triste – é que ser anti-qualquer-coisa, por muito nobre que seja a causa, é viver num estado de luta ou confronto permanente. É estar sempre a querer acabar com aquilo de que se é anti. Seja lá o que for!
E ao estar-se em luta permanente na prática está-se em luta consigo mesmo. Porque o resultado de se estar sempre num estado de anti é não se estar pró na vida. Que quem luta sempre na vida acaba por não a viver, por não se aperceber de tudo ou grande parte daquilo que é positivo.
Tenho uma atitude diferente: sou pró! Sou pró-felicidade, sou pró-liberdade, sou pró-responsabilidade, sou pró-bem-estar, sou pró-criatividade. Sou pró!
Claro que tenham cuidado os que impeçam o atingir aquilo pelo qual sou pró! Estão tramados! Que sou anti todos eles, com tudo o que isso implique!

Dirão que é uma questão de semântica. Pois talvez o seja.

Mas entre estar em luta para ser feliz ou ser feliz estando em luta, prefiro o primeiro.

By me

Sou ignorante


Por favor:
Alguém me explique, como se eu fosse muito burro, o que são fotografias de arte que não sejam reproduções de quadros ou esculturas.
Ou outra expressão que me intriga: “fine art photography”.
A minha incultura fotográfica agradece.



By me

Gravadores e etc.




Foi há nove anos.
Ricardo Rodrigues, então deputado na Assembleia da República, não gostou do tom de uma entrevista e abandonou o local levando consigo os gravadores de som dos jornalistas estavam a usar e que estavam em cima da mesa.
Julgado pela justiça, de algum modo encontrou forma de não ser punido, tendo deixado o parlamento para ser eleito com funções autárquicas pelo mesmo partido e na sua região de origem: Açores.
Agora surge um caso equivalente:
Boris Johnson, primeiro Ministro do Reino Unido, retirou da mão de um jornalista um telemóvel com uma fotografia incómoda, guardando-o no bolso. De acordo com a notícia, só o devolveu quando confrontado com o facto.

Dir-me-ão que dois casos semelhantes em países diferentes e com tanto tempo de intervalo são pouco relevantes.
Mas são sintomáticos de comportamentos, éticas e consequências no desempenho de funções para as quais foram eleitos.
Mais ainda, são sintomáticos do que os respectivos partidos pensam de quem assim se comporta, ao não serem afastados das suas hostes.

Imagem: fotografias não factuais, roubadas da net

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Censura




“Adicionámos uma capa à tua foto porque pode mostrar conteúdo violento ou gráfico.”

Fico sem saber o que é “conteúdo gráfico”, já que fotografias, desenhos, letras, rabiscos ou os famosos emoji são conteúdos gráficos.
Mas, e dando isto de barato, fico a saber que se considera violenta uma fotografia histórica, feita por Desderi em 1871, dos comunards de Paris.
Capturados na sequência das investigações do poder aos arquivos dos fotógrafos da época, foram executados sem apelo nem agravo.
Na fotografia mostram-se dez deles, nos respectivos caixões.
Vale o que vale, a censura do facebook. É censura, seja qual for o ângulo pelo qual se olhe!



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Sobre os descartados



“Olá! Posso tomar-lhe uns trinta segundos, não mais, do seu tempo?”
Isto foi dito já na rua, depois de termos saído do autocarro. A interpelada, de uns catorze anitos como as amigas e não tão franzina como uma e muito menor que a calmeirona da outra, ficou a olhar p’ra mim com ar de espanto, talvez que sem saber muito bem que responder.
Tomei o seu silêncio como uma anuência e continuei de seguida, mostrando a minha câmara fotográfica, que entretanto tinha tirado do bolso:
“Gostaria que com a minha câmara lhe fizesse umas fotografias sem que disso soubesse? E que as usasse sem lho ter perguntado?”
“Ah, não! Claro que não!” Respondeu recuperando o fôlego e meio assustada.
“Pois os pedintes e os sem abrigo também não gostam! Mais, a sua condição económica não lhes dá alento para sequer dizerem que não. Mais ainda, fotografar os que dormem nos cartões e nos vãos de escada ou sob os viadutos é o mesmo que alguém ir fotografar a sua casa, espreitando p’la janela e à surrelfa. Não gostaria disso, pois não?”
Ficou a olhar p’ra mim, continuando sem saber bem que responder, enquanto a maior sorria e, de dedo em riste, dizia “Eu bem dizia!”
O mutismo passou-lhe e arriscou:
“Mas era p’ra um trabalho da escola sobre o que passam essas pessoas no frio…”
“Pois será!”, continuei. “Mas tenha a delicadeza de lhes perguntar primeiro, respeitando a sua privacidade tal como gosta da sua.”
E afastei-me.

Esta conversa surgiu de ter ouvido no autocarro elas a combinarem que uma pediria a câmara emprestada ao pai e iria fazer aquelas fotografias.
Não sei se o meu discurso terá tido o efeito que queria. Mas certo é que há coisas que não se aprendem (ou ensinam) na escola ou nos livros que os mandam ler. E já só quando é tarde demais dão por aquilo que se lhes escapou.
As questões de Ética e Cidadania são conteúdos que, nesta sociedade competitiva, se recomendam não abordar na escola. Quem sabe se os jovens se rebelam…?

Quanto à fotografia, espero que não estivessem a contar que mostrasse as mocinhas em questão. Ou mesmo um sem abrigo.

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Et maintenant, que vais-je faire



Caminhava calmamente pelo corredor, saindo da luz do sol e entrando na obscuridade das lâmpadas do centro comercial.
Entre o seu cabelo alvo, já um pouco rarefeito, e o casaco de cabedal um pouco coçado, um bigode farfalhudo e bem aparado compunha-lhe a cara.
A sua mão esquerda apoiava-se numa bengala, que manuseava com destreza, bem a compasso do seu caminhar e parar.
Porque ele parava! A cada meia dúzia de passos olhava para quem lhe estivesse mais próximo e cantava-lhe. Desafinado e já com falta de voz, repetia sempre os mesmos acordes e o mesmo verso antigo de nem sei quantos anos:
Et maintenant, que vais-je faire…
Eu, bem como os demais que ali estavam a almoçar, olhámos uns para os outros, meio espantados como insólito da situação. Mas nem a empregada que ali atendia, nem o segurança a uns metros de distância, lhe prestaram atenção. Deduzi que se trataria de um frequentador habitual do espaço, como tantos outros reformados que usam os centros comerciais como forma de matar o tempo que lhes sobra.
Este… bem, este ainda verbaliza o seu problema, de quem se viu sem ocupação e, talvez, sem com quem partilhar a sua amargura.
É tão difícil – e absurdo – definir normalidade!


By me

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O tempo e a fotografia



Há uns anos valentes a escola onde eu leccionava organizou uma visita de estudo a Mérida, Espanha. Inseria-se ela na disciplina de História e tinha por objectivo o contacto de perto com a civilização Romana.
Aproveitei o ensejo e fui com a maralha. Foi francamente divertido e bastante instrutivo
Divertido porque os alunos fizeram questão que fosse com eles visitar os diversos bares que estavam abertos nessa noite. Alguns deles perceberam a segunda parte de uma “arengada” que lhes dava na primeira aula que tinha com eles, de permeio com a “apresentação e etc.”: “Preparem-se que quando for para trabalhar serei o último a cair de cansado e quando for para ir p’ros copos serei o último a cair de bêbado.” A primeira parte já tinham constatado, nesta noite perceberam que a segunda não era fanfarronice minha.
Instrutivo com aquilo que aprendi sobre a cidade e os Romanos, que o professor de história sabia o que fazia.
Assisti, por exemplo, ao acordar da cidade, após uma curtíssima noite de sono pouco reparadora. Faço sempre questão de ver despertar as cidades que visito. O limpar das ruas, os primeiros a vir ao pão, ainda de roupão, o abrir das lojas, a luz rasante…
Constatei também a enormidade de janelas gradeadas nos pisos térreos e nos primeiros pisos, que muito me contaram sobre a segurança e o nível de pobreza da cidade, incrustada numa zona agrícola e industrialmente pobre.
Assisti a parte da missa na principal igreja local. Conta-nos muito sobre as pessoas, o ver quem e como vai à missa dominical. Mesmo sendo agnóstico como sou. E, para meu espanto, a eucaristia foi co-celebrada por um sacerdote cego. Coisa estranha mesmo!
Claro que os vestígios romanos, museu incluído, encheram os dois dias e a memória. Com excelentes explicações a acompanhar. Uma delas não esqueço, por muito que viva.

Junto ao teatro romano, nas traseiras, admirava eu as monumentais colunas, com os colossais capiteis no topo. Decorados de modo intenso e difícil de ver cá de baixo.
Comentei a dificuldade e questionei a utilidade de tal trabalho, principalmente tendo em conta as técnicas de então. A resposta ficou-me até hoje: Tempo!
As festas na cidade, que era a segunda Roma do Império, duravam semanas. Vinha gente de toda a península para assistir ao teatro, aos combates, às corridas, fazer negócio, ver gente após longas separações… a cidade enchia e o tempo não faltava.
E não faltava tempo para se estar parado a olhar para cima e ver, mesmo que com dificuldade, os relevos gravados nas colunas e nos seus cimos. E as pessoas estavam.
Mais tarde nessa visita, e no museu, tive oportunidade de ver de perto um desses capiteis. Pedra única, monumental mesmo, finamente trabalhada, pese embora fosse para ser vista a uns bons metros de distância. Mas havia tempo para ver. E para pensar nos significados explícitos e implícitos.

Passados que são vinte séculos sobre o esculpir os capiteis, a questão do tempo de observação mantém-se tão actual quanto então. Com a diferença que as unidades de tempo usadas para se ver arte ou equivalente são bem díspares.
No caso da fotografia, e na forma como hoje é consumida, o tempo de observação é crucial. E depende do como e onde a vimos.
Se numa galeria ou museu, se numa revista ou livro, se num ecrã de computador.
Aqueles que já tiveram oportunidade de ver trabalhos impressos de Ansel Adams ou David Hockey ou Helmut Newton bem entendem o que quero dizer. Podemos estar uns cinco ou dez minutos a olhar para uma das suas fotografias na parede de um museu ou galeria que dificilmente nos cansamos. Mas gastamos uns dois minutos (120 segundos) se vistas num livro ou revista, mesmo que muito bem impressas. Já quinzes segundos para ver uma delas num site, por muito grande que seja a qualidade e resolução, será um exagero de tempo.
Consumimos imagens em função do suporte e da nossa própria disposição. E o tempo e disposição para ver fotografias numa parede não é igual ao que temos ou dedicamos a um livro. Já na web… bem sabemos que atrás de uma vem outra e não queremos perder nenhuma.

Esta forma de consumir fotografia conduz, sem sombra de dúvida, a condicionar a forma como são produzidas.  A facilidade de leitura, o imediatismo da possível interpretação, os contrastes e saturações empregues, tudo em função do suporte. Não apenas da sua qualidade como também do seu tamanho. E do tempo que sabemos que durará a sua observação. Tal como da durabilidade que terá na memória de quem a vê Porque, assumamo-lo ou não, todos nós queremos que os nossos trabalhos fiquem na memória do público. Quer pela forma, quer pelo conteúdo.

Faz assim sentido que, quando fazemos uma fotografia (ou um conjunto de fotografias), consideremos o como serão elas vistas. E onde. E por quanto tempo. Se com todo o tempo do mundo, como então se observavam os capiteis, se na voragem de uma ligação rápida de net e mais rápido e efémero consumo.
E quando nos habituamos às velocidades vertiginosas das auto-estradas fotográficas, fotografamos em consonância: rapidamente, menos ligando aos detalhes dentro da tirania do enquadramento, simplificando mesmo tudo isso para que se adeqúe ao que sabemos vir a ser uma leitura na diagonal, sem tempo para digerir detalhes ou quantidade de informação visual.
E contra mim falo, no consumo e na produção. Mesmo tendo o hábito de, quando não em modo de ensaio, fazer apenas uma imagem, mas com a certeza de estar como quero.
Teríamos muito a aprender, se fotografássemos na mesma altura em que se construíam os capiteis de Málaga, Espanha. 

By me