domingo, 31 de maio de 2020

Mestre



A história conheço-a mais ou menos assim:

Um jovem arqueiro, o melhor da sua aldeia, quis ser melhor ainda e foi ter com um mestre arqueiro, que vivia isolado no alto de uma montanha.
Perguntou o jovem:
“Mestre: como consigo atingir a sua perfeição?”
“Consegues”, disse o mestre, “fazer chegar a tua flecha tão alto quanto o voo de uma águia?”
“Mas mestre, isso é quase impossível!”
“Quando o conseguires vem falar comigo.”
O jovem voltou para a sua aldeia e praticou, praticou, praticou. E voltou à montanha.
“Mestre: a minha flecha já vai tão alta quanto o voo da águia. Vê.” E disparou uma flecha.
“E consegues acertar na águia?”
“Na águia, mestre?! Mas mal a vejo lá no alto!”
“Quando conseguires acertar com a tua flecha na águia, vem falar comigo.”
E o arqueiro regressou à sua aldeia e praticou, praticou, praticou até que já conseguia acertar na águia, que mal se via lá no alto.
“Vê mestre: já consigo acertar na águia com a minha flecha!” E mostrou-lho.
Sorrindo, perguntou-lhe o mestre:
“E consegues acertar na águia sem flecha?”



Por mim, ainda estou a tentar perceber como raio se segura no arco.

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Pensar e sentir



De tanto me dizerem “Não tens nada com isso!” ou “Mete-te na tua vida!”, um dia ainda vou acreditar nisso.

Até lá, vou continuar a acreditar na solidariedade, no espirito de grupo, na fraternidade, na partilha.

Mas, considerando a idade que tenho, é muito provável que venha a morrer a pensar como penso hoje. A agir como ajo hoje. A sentir como sinto hoje.


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quinta-feira, 28 de maio de 2020

Opções



Calor e programação televisiva

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A feira



Para que conste, uma das actividades que mais sofreu com a suspensão do comércio e o confinamento, obrigatório ou voluntário, foi a de feirante.

Sem direito a lay-off, subsídios ou qualquer outro tipo de apoios, numa actividade económica que mal dá para a sobrevivência, dependendo das condições atmosféricas para poder montar banca e conseguir vender, a situação tem estado terrível para quem vive disto.

Agora, aos poucos, vão retomando as feiras, mas com os clientes a escassearem, ou porque ainda estão em casa ou porque estão com medo.

A todos esses que vivem da rua, os meus votos de bom recomeço e que os deuses, o clima e os clientes sejam clementes.


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Códigos



Neste mundo em que vivemos, as diferenças culturais são mais que muitas e bem evidentes: a língua, as danças, a gastronomia, os trajes, a mitologia…
Viajar de um ponto para outro distante pode ser pouco menos que um salto no escuro. A capacidade de comunicação fica reduzida a muito pouco, se não se dominar a língua, escrita ou falada. Sobram dois recursos, mais ou menos globais: o gesto e a imagem, desenhada ou não.
Esta é, sem sombra de dúvida, a parte da comunicação mais universal. Um cavalo é um cavalo, na Europa, Ameríndia ou Ásia. Com excepção de alguns pontos ainda não penetrados pela “civilização”, quem souber usar a imagem, sabe comunicar.

Mas os padrões não são iguais. Há algumas diferenças, ainda que subtis, dividindo o planeta em alguns grandes blocos. Quer tenha sido o desenho que influenciou a escrita (fonética ou ideográfica) ou vice-versa, a verdade é que a forma como a imagem se estrutura no espaço que ocupa varia.
Horizontal ou vertical, esquerda/direita ou ao contrário, a organização dos elementos pictóricos tem regras e significados diferentes.

A globalização (que não apenas económica mas, e principalmente, cultural) tende a padronizar estes aspectos, tal como outros. Mas a cultura não é algo que se imponha por decreto, como provou a falhada revolução cultural chinesa.
Se na fotografia, cinema e televisão, áreas que além de criativas são também bastante técnicas, no quotidiano, na vida diária de cada um, as coisas são um pouco diferentes.
A imagem acima é disso um exemplo. É uma nota Afgã, divulgada por cá através de um jornal.
Os códigos de escrita estão bem definidos. Escrita regional, para os locais entenderem, e caracteres mais ou menos universais para definir valor e origem. Até aqui pouco há de invulgar.

Mas observem-se os desenhos, os cavalos em particular. Correm da direita para a esquerda, num galope livre e intenso.
Uma leitura superficial pouco os dirá mas, a nós, ocidentais, mas não nos agradará. De acordo com os nossos padrões, correm “para trás”, uma atitude retrógrada. Poderíamos mesmo dizer que estão a fugir de algo. Mas para os Afgãos, onde a escrita e a leitura se fazem da direita para a esquerda, este é o sentido da liberdade, do progresso, do futuro.
Esta imagem será, eventualmente, evocativa de um qualquer momento histórico local, que dificilmente será o de uma derrota militar. A interpretação dos utilizadores desta nota será a de confiança e de confiança naquilo que o dinheiro significa.

Para aqueles que como eu vivem e dependem da imagem, esta questão de orientar os elementos que a constituem para um lado ou para o outro é banal. Fazemos isso quase que por instinto, usando-o como uma ferramenta de base.

Mas convém sempre lembrarmo-nos que os nossos códigos não são universais e que a nossa comunicação depende da nossa capacidade em usar uma linguagem conhecida e familiar do destinatário.

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domingo, 24 de maio de 2020

Imago



Para quem não saiba, esta é a imago (ou a representação tri-dimensional) do rosto de Pancho Villas.
Foi feita a partir de uma máscara moldada na face do defunto, seguindo métodos bem antigos.
Tão antigos quanto os usados na Roma antiga, em que estas imagos eram colocadas em local de destaque na habitação senhorial, reverenciando os antepassados.
Saiba-se que o nosso termo "imagem" provem do milenar "imago".

Por outras palavras: as imagens, mesmo as fotográficas, mais não são que o perpetuar ou reverenciar o passado.

Imagem palmada da net

sábado, 23 de maio de 2020

A cabine



D'arquivo

“Boa tarde! Faça o favor…?”
“Boa tarde! Eu queria falar com o sr. Duarte.”
“Com certeza. E quem é que quer falar com ele?”
“Eu disse que queria falar com o sr. Duarte.”
“E quem é que quer falar com o sr. Duarte?”
“Eu queria falar c…”
CLIC
A situação ou diálogo repetiu-se.

Só aquando da terceira ligação, sempre de número explícito, é que do outro lado se identificaram. Por sinal de uma loja onde eu havia feito uma encomenda, a avisarem-me que já lá estava o que tinha pedido.

No meio de tudo isto, o que tem mesmo piada é ter acontecido pouco depois de eu ter feito algumas fotografias em torno de uma vetusta cabine telefónica, que quase só existe para turista ver. De uma época em que ninguém se lembraria de iniciar uma conversa telefónica sem ser pela sua própria identificação.

Outros tempos.

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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Sem importância



Esta é uma fotografia sem importância alguma.
Apenas uma parede, que me bloqueia o caminho, e uma janela, que não me deixa ver para além mas tão só o reflexo do que está atrás e acima de mim.
Não importa rigorosamente para nada!
Talvez que seja um aviso para que pare e pense no que foi.
Ou um incentivo para que siga e derrube o que se me atravesse na frente.
Ou apenas um relembrar que as imagens que vemos não são realidade mas antes uma ilusão daquilo que pensamos que existe.
Ou talvez, nada de pensamentos profundos, muito simplesmente que o meu olhar parou e fez-me parar, em trânsito para o trabalho, e que o meu vício de usar a câmara me obrigou a usá-la.
Como disse antes, não tem importância alguma esta fotografia.

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Pudor



É uma palavra que todos conhecem mas da qual raramente nos lembramos. Um destes dias ouvi-a num contexto curioso e fiquei com ela na cabeça.
Era a palavra que me faltava e que melhor descreve alguns dos meus sentimentos.
Tenho pudor em fazer certas fotografias.
Há mais de 40 anos que faço televisão. Comecei ainda no tempo do preto e branco e da aventura do inicio da cor. Cem por cento, menos umas milésimas de unidade, das imagens por mim captadas, registadas e transmitidas foram de seres humanos.
No estúdio e no exterior, dentro e fora do país, anónimos ilustres e ignóbeis figuras públicas, ou qualquer outra combinação, como entenderem.

Em todas elas, de uma forma mais ou menos explícita, existiu uma cumplicidade no fazer dessas imagens. A câmara estava lá, bem visível, e o cidadão sabe que eu estou lá, o que estou a fazer e para quê. Uns exibem-se e quase que pagam para constar no registo ou transmissão, outros são apanhados ao correr da objectiva, mas nada há de sub-reptício.
Além do mais, mercenário que sou da imagem televisiva, não me sinto eu, enquanto indivíduo, a fazer aquelas imagens. Faço parte de uma equipa, de uma organização. A minha co-responsabilidade na captação e utilização das imagens que faço é limitada. Ainda assim, alguns escrúpulos que tenho tido ao longo dos tempos, têm-me trazido alguns amargos de boca.
Já enquanto fotógrafo a minha atitude tem sido diferente.
Raramente fotografo pessoas desconhecidas ou anónimas. Pelo menos ao ponto de estarem em evidencia no enquadramento ou de serem reconhecíveis.
Os trabalhos que tenho feito a pedido (não gosto do termo profissional) têm sido na área do teatro, da publicidade e da arquitectura, passando ao de leve pela reportagem.
Nestas circunstâncias, as figuras fotografadas fazem parte do evento e querem “ficar no boneco”.
Mas, sendo o Homem aquilo que quero retratar nas minhas imagens pessoais - aquelas que faço para minha satisfação exclusiva -, procuro fazê-lo sem que conste explicitamente delas.
Aquelas imagens de instantâneo – uma expressão, um gesto, um evento – que poderia fazer para meu prazer e deleite, não as faço. Tenho pudor!
Com conhecidos, próximos ou não tanto, sou mais atrevido. A cumplicidade existe, as pessoas em causa sabem o que sou e o que faço e, se bem que possam não “se fazerem à fotografia”, sabem que ela pode acontecer e comportam-se mais ou menos em conformidade.
Agora os estranhos, aqueles que apenas me conhecem de vista ou nem isso, vivem a sua vida ignorantes da possibilidade de eu os poder fotografar. São o que são, sem reservas, acanhamentos ou exibicionismos, alegres, tímidos, carinhosos ou bem pelo contrário, inconscientes que um gesto, uma expressão pode ficar registada para todo o sempre.
Da mesma forma que não espreito ou fotografo para dentro de janelas alheias, também tenho pudor em o fazer quando estão da parte de fora delas.
Esta minha atitude e sentimentos é tanto mais forte quanto mais “frágil” é a pessoa ou situação em causa. As misérias, materiais ou outras, tantas vezes vistas em espaços públicos, estão ali porque não podem estar em qualquer outro local privado.
Os pedintes, vagabundos, sem abrigo, catadores de lixo, para não citar todos, são-no, estão-no e fazem-no não por vontade própria mas como último recurso, muitas vezes já sem pudor algum porque não se podem dar a esse luxo. A seguir a este degrau…
Se eu soubesse, com certezas ou alto grau de probabilidade, que o eu fazer estas imagens iria de alguma forma melhorar-lhes a vida – na auto-estima, na fome, na saúde ou no conforto – esta minha invasão das suas intimidades públicas poderia fazer algum sentido.
Mas eu sei que do meu acto de fotografar nada de diferente lhes acontecerá. Apenas ficarei com mais um troféu de caça na minha galeria que, eventualmente, exibirei dizendo: “Vejam o que eu vi, sintam o que eu senti!”
Poderão dizer os fotojornalistas: “Mas uma das missões nobres do nosso ofício é denunciar as misérias do mundo e tentar com isso melhora-lo!”
É verdade que sim! Tal como eu o faço com a minha câmara de vídeo, que é o meu ofício.
Mas as minhas fotografias não se destinam a nenhuma publicação, de pequena ou grande tiragem. Faço-as porque me dá prazer fazê-las e, raramente, exibi-las, se as entendo como capazes e se me apetecer.
Se, de alguma forma, as imagens que faço e exibo podem melhorar o mundo, não sei, ainda que o tente. Mas prefiro fazê-lo mostrando os objectos, a luz, as atmosferas, as consequências e as causas e não as pessoas em si mesmas, não violando a sua privacidade pública.
Há uma palavra que define o que sinto e que me inibe de fotografar amiúde desconhecidos:

Pudor!

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quarta-feira, 20 de maio de 2020

Ponto quarenta e dois



Ainda não há muito tempo um amigo mostrou-me um link com cem dicas de um fotógrafo profissional.
Foi interessante de ler. A maioria conhecia, concordando com quase todas. Algumas desconhecia por completo e aprendi qualquer coisa ou, pelo menos, fiquei a pensar no assunto. Algumas discordo em absoluto.
Aquela que condeno veementemente recomenda: “Encontre o seu próprio estilo e mantenha-se nele”.
Talvez que seja uma boa sugestão para quem queira entrar no ofício, lutando com tanta concorrência. Ter um estilo próprio e aperfeiçoado é uma mais-valia no mercado. Mas é tão redutor!
Com o passar dos tempos, mais ou menos dependendo das pessoas, aquilo de que se gosta transforma-se em rotina e o prazer da criação transforma-se em obrigação, quiçá enfadonha.
Para quem queira vencer no mundo da fotografia pode ser um bom conselho. Para quem queira fazer da fotografia uma forma de expressão, tente tudo, por favor.
Procure o que não sabe fazer e aprenda. Procure usar as técnicas e estilos que encontra nos outros e decida depois se lhe convêm, se se sente satisfeito com aquela abordagem ou se prefere deixá-la de parte. Experimente! Tente e erre! Diga “não é isto que eu quero” só depois de o fazer! E, quando sentir que está a fazer qualquer coisa parecida com o que já fez e que não lhe está a dar a satisfação que espera, parta para outro caminho.
Que, se definir um estilo e se mantiver nele, em breve mais não será que um plagiador de si mesmo!
A menos que seja um génio, claro.

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A morte da história viva




Leio por aí que a Livraria Barata está em risco de fechar.
Tal como ela, muitas outras tiveram este triste fim.
Defende-se o comércio local, o comércio de “bairro”, aquela cara conhecida que nos sugere ou recomenda. Exactamente aquele que já estava em crise e que com a actual vê o seu futuro com demasiadas nuvens negras.
Ter uma livraria por perto é como ter uma mercearia ou padaria por perto. Passamos por lá e, por impulso ou necessidade, trazemos um livro. Que nos vai levar mais longe. No sonho ou no saber.
As grandes superfícies, supermercados ou outras, pecam pela “ignorância” de quem lá vende. Dificilmente sabem algo sobre o autor ou o conteúdo e, se pedimos algo específico e fora dos “best sellers” não têm ou nem sabem se existe.
Recordo com saudade uma livraria no bairro onde vivi. Chamava “o meu livreiro”, ao sr. Augusto. Em lá indo, e dando uma voltinha pelas prateleiras, com vontade de ler mas sem inspiração no momento, dizia-lhe: “Sr. Augusto: ponha-me a ler!”
Perguntava-me ele sobro os dois ou três últimos livros que tinham estado na minha secretária ou mesa-de-cabeceira, parava um pouco e dirigia-se a algum ponto da loja, de onde voltava com um livro. Nunca me arrependi das suas escolhas.
Tal como não esqueço um episódio em procurava uma canção. Sabia-lhe o trautear, sabia-lhe o refrão, mas nem o intérprete nem o nome. Numa discoteca de centro comercial, e face ao meu pedido, a “menina do shopping” decidiu ir consultar a web. Quando lhe disse que há muito que ali procurava e não encontrava, teve uma saída tristemente brilhante: “Então se não está na net não existe!” Não a desenganei.

Fechar (eventualmente) uma libraria de bairro com projecção mais que na capital, no país, e ainda por cima com a história que tem, é morrer um pouco de nós.
Pelo menos de mim, que foi uma das livrarias onde aprendi o prazer de escolher e cobiçar livros e de onde nunca saí frustrado e sempre mais rico.
Em jeito de remate, gostaria de lembrar o seguinte:
Lidos que sejam dois conteúdos distintos, um num livro, outro numa página de web, lembra-se-hão do livro, do local, da capa… mas dificilmente da localização da página, sem mesmo terem a certeza que ainda existe.

Imagem roubada da net
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terça-feira, 19 de maio de 2020

Óbvio



“Isto é óbvio!”, disse uma amiga licenciada em comunicação social, ainda que não a exercer, a quem dei a ler este pedacinho como aperitivo de uma proposta de leitura.
“Certo!”, respondi-lhe. “Mas quem vê o óbvio? Quem pára para pensar nele e agir em conformidade? Tantos quantos os que param para ver a sombra na fachada aqui em frente, todos os fins de dia.”
Antes que o coloque numa das prateleiras dos que sei que irei voltar a ler, aqui vos deixo um nico do “Olhando o sofrimento dos outros”, de Susan Sontag:



“As fotografias objectivam: transformam um acontecimento ou uma pessoa em algo que pode ser possuído. E as fotografias são uma espécie de alquimia, por mais que sejam consideradas como um relato transparente da realidade.”

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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Desafio




Esta fotografia (e trata-se de uma fotografia e não de uma foto-montagem) tem um erro grave.
Foi ao olhar para o arquivo, já com uns anos, que dei pela coisa, que dela não me apercebi quando a fiz.
Fica o desafio: Qual o erro?


By me
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Aos que pararam para pensar, mesmo que não se pronunciassem:
O erro está, efectivamente, no facto de a luz do amolador ter origem no lado direito e a luz da flauta de pan ter origem no lado esquerdo.
Chamar-lhe um “erro” será talvez demasiado. Melhor seria chamar-lhe “falta de racord”.
E se é verdade que em matéria de criatividade quase tudo é admissível, também é verdade que os “erros” ou as “faltas de racord” têm que fazer sentido ou ter um motivo. Não foi o caso.
Em olhando para esta imagem, o “erro” incomoda-me ou prende-me a atenção. E não lhe encontro razão para as duas origens de luz. Nem objectiva nem subjectiva.
Por isso é um erro.
Mea culpa.

domingo, 17 de maio de 2020

Emoções



Uma sombra não tem emoções.
Existe apenas e na exacta medida da superfície onde se projecta, do objecto que se interpõe no caminho da luz e do tamanho da fonte que a provoca.
Uma sombra não tem emoções.
Será mais dura ou mais suave, mais incómoda ou mais simpática, mais longa ou mais curta. Até cobrir o mundo.
Mas uma sombra não tem emoções.
Uma sombra relata, com rigor geométrico, as posições relativas do plano de projecção, do objecto e da luz. Evidencia texturas e volumes, contrasta superfícies, simula tamanhos. Até opacidades.
Mas uma sombra não tem emoções.
Movimenta-se com o movimento do sol, do chão, do vento. Refresca ou atrapalha. Pode, até, criar sonhos.
Mas uma sombra não tem emoções.

E se eu, que trabalho com luzes e sombras, que trabalho as luzes e as sombras, as matizes, as nuances, não tiver emoções, mesmo perante uma sombra, serei eu mesmo uma sombra e não um ser vivo, que gosta e desgosta, que é a favor ou contra, que ama ou odeia, e que usa a sombra (que não tem emoções) para provocar emoções.
Fotografar é reagir emocionalmente a sombras (que não têm emoções).
Fotografar é usar as sombras (que não têm emoções) para provocar emoções.
Uma sombra não tem emoções! Um fotógrafo tem!

Se um fotógrafo não tiver emoções perante uma sombra (que não tem emoções), será ele mesmo uma sombra de um fotógrafo!

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Modas




A necessidade de se ser original, de ser diferente, de marcar uma posição no grupo em que se insere e nos grupos limítrofes é tão grande…
Veja-se como em pouco meses surgiu uma variedade enorme de máscaras, com padrões de tecido “à-lá-carte”.
Em compensação, não creio que se tenham desenvolvido os padrões estéticos das maquiagens dos olhos, a única coisa do rosto que passou a ser visível.
Em boa verdade, nos países islâmicos que defendem ou impõem o véu às mulheres a forma de arranjar os olhos (forma e cor) é já uma arte, algures entre a afirmação social e a sedução.
Bem tenho eu feito (creio) ao longo dos anos, em registar apenas olhos, mesmo sem máscaras ou véus.

Imagem de arquivo
By me

Negócios




Se derem uma voltinha por aqui e por ali, olhando com alguma atenção, constatarão que barbeiros e cabeleireiros estão cheios.
Não que as cadeiras estejam todas ocupadas, mas não se vê um profissional da área que seja desocupado.
Aliás, as pessoas que esperam à porta pela sua hora marcada bem desvendam à distância o mister que ali se pratica.
Mas se olharem com mais atenção, verão que os avisos do horário de funcionamento foram alterados.
Perceberão, sem muita dificuldade, que esses estabelecimentos (ou boa parte deles) estão a funcionar sete dias por semana, ainda que aos sábados, domingos e feriados com menos horas de labuta.
Com isto estão a tratar das frustrações pilosas de muitos portugueses e portuguesas, ao mesmo tempo que tentam recompor o equilíbrio financeiro da loja.



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Botões




Talvez que metade dos peões quando confrontados com este botão regulador de trânsito o usem.
E talvez esteja a ser exagerado e serão dois terços a usar o botão.
Os demais ignoram-no heroicamente, as mais das vezes arriscando a vida só para não esperar pela segurança ao atravessar um rua ou avenida.
Dos que usam o botão alguns primem-no em havendo trânsito mas, assim que podem atravessam, mesmo que o sinal ainda não se apresente verde.
E, dos que usam o botão, esperem ou não pela autorização, bem mais de metade arrisca a vida sem dar por isso. Apesar de bem saber o risco de o fazer.
Refiro-me, nos tempos que correm, a premir o bendito botão de mão ou dedo nu ou, em alternativa, sem se desinfectar de seguida.
Convenhamos: se há local promiscuo ao toque é o botão do semáforo. Nunca saberemos quantas e quais as pessoas que o usaram nem quantas ou quais estarão contaminadas com o vírus que a todos preocupa. São instintivos gestos que podem fazer toda a diferença, para pior.
Por mim, que tenho as cautelas possíveis, uso um objecto que, politicamente correcto, será para extinguir: um cotonete.
Aproveito o facto que quererem acabar com eles por questões ecológicas e trago sempre uns quantos no bolso. Em confrontado com uma situação destas, uso um que deito fora numa papeleira de rua assim que possível. Tal como faço o mesmo numa caixa de multibanco ou ao pagar algo numa loja com o cartão.
Desta forma tenho a certeza que não ficarei contaminado num local “inocente”.

Sejam cuidadosos, tão cuidadosos quanto o que gostam de vós mesmos e da vossa família.



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sexta-feira, 15 de maio de 2020

D'arquivo - O cálice



Quando o vi na montra não resisti e entrei. Haveria de saber o preço e, sendo comportável, viria comigo. E, de caminho, a taça prateada que estava noutro ponto da montra, que talvez não com a mesma origem ou época, mas bem que poderiam fazer “panelinha” com o cálice numa das minhas brincadeiras.
Mas o objectivo principal era o desafio: um cálice como este, deste material bem reflector e multi-curvilíneo é um desafio fotográfico dos maiores. Conseguir fotografá-lo, mostrando a matéria de que é feito, as formas que possui e não ter formas ou objectos distractivos reflectidos na sua superfície.
Um desafio dos grandes.
Que tratei de tentar solucionar mesmo na rua, em condições em nada controladas.
Uma das técnicas, parece-me, é a questão da luz, da quantidade e qualidade de luz. Ter a fonte de luz principal do lado de lá (o tal lado de que gosto), de forma a que não se reflicta na superfície do nosso lado. Ao mesmo tempo, tentar que câmara e fotógrafo estejam pouco iluminados, na sombra se possível, para que o seu reflexo, existente no metal, seja de pouca monta. E, ao mesmo tempo, criar um fundo luminoso e atractivo que, ao captar a atenção, distraia o olhar do que possa estar reflectido do lado de cá.
Tudo isto é teórico. E funciona na prática. Convém é ter meia dúzia de acessórios que ajudem a controlar a luz, a sombrear o fotógrafo, a suportar no local certo o cálice… não tinha nada disso comigo esta tarde, na rua, e isto foi o melhor que consegui fazer hoje e de improviso.

O que acaba por ser curioso é nesta mesma tarde, em três locais distintos (na loja onde o comprei, numa loja de artigos infantis didácticos e num novo negócio agora surgido na sede do meu concelho e sobre fotografia) acabei por falar de fundos, da sua importância para isolar o assunto principal, de como variando a quantidade de fundo para um mesmo tamanho de assunto principal conta histórias diferentes, de iluminar de lá para cá, nem que seja com a chamada “luz de recorte” para fazer sobressair do fundo e dar volume…

É curioso como a esmagadora maioria das pessoas, mesmo alguns profissionais, se esquecem que o tratamento do primeiro plano é tão importante quando o do fundo ou segundo plano.
Por vezes, é essa diferença de tratamento que transforma uma fotografia numa photographia.

O meu cálice ainda precisa de ser tratado.

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segunda-feira, 11 de maio de 2020

Em guerra




Desde há muito que defendo esta teoria. Talvez louca, talvez não, alicerçada nas evidências e fantasiada a partir de Orwell.
O mundo está em guerra. Com algumas balas ou bombas pelo caminho, mas usando como principal munição o poder económico.
Serão três os principais contendores ou blocos: os eua, a europa e a china. Todos uns contra os outros. Haverá um quarto interveniente, de peso, mas que não tem a mesma relevância de outros tempos: a rússia.
Acontece que é demasiado complicado manter uma guerra contra dois oponentes diferentes ao mesmo tempo: quando se fortalece uma frente falha a outra. O ideal é, e a história demonstra-nos isso mesmo demasiadas vezes, fazer uma aliança com um deles, os dois derrotarem o terceiro e depois resolver-se a questão entre os sobreviventes.
Duvidam? Veja-se o que aconteceu há menos de um século com a segunda guerra mundial: Alemanha, bloco ocidental e a rússia.
Neste momento em que vivemos creio existir uma aliança meio secreta ou implícita entre a china e os eua. Apesar das escaramuças que vão acontecendo, com publicidade por demais evidente, ambos vão minando e derrotando a velha europa, que já de si tem dificuldade em se entender por dentro.
Esta pandemia, que não acredito como propositada, veio apenas ajudar nesta estratégia. Tal como a questão dos refugiados, das vendas concorrenciais de produtos oriundos do oriente ou das américas.
Quando estivermos, nós os europeus, sem capacidade de reacção, será a batalha final entre os dois lados do Pacífico, talvez que aí com mais que apenas economia. E com a rússia a observar e à espera da oportunidade de se bater com o último combatente.

Fará sentido repensarmos o que fazemos e o nosso estilo de vida.
E, sem prescindirmos do conceito de aldeia global no seu conceito mais abrangente, ganharmos capacidade de sobrevivência com autonomia. Com menos consumismo e mais capacidade de produção daquilo que realmente necessitamos, deixando de parte tudo aquilo que os beligerantes fazem questão de nos fazer acreditar que nos é imprescindível.
Querem exemplos, neste caso no campo da cultura?
Quando foi a última vez que viram, nas TVs ou em sala de cinema, um filme produzido ou rodado na alemanha ou itália ou frança?
Ou foram a um festival de música com cabeças de cartaz oriundos de espanha ou polónia ou suécia?
Ou leram um bom livro com enredo europeu, baseado na europa e escrito por um europeu?
Já agora, e passando para coisas mais comezinhas, sabem qual é a proporção de trigo que importamos face às nossas necessidades? Ide saber e espantai-vos.



By me

Manhãs



By me

domingo, 3 de maio de 2020

Ora batatas!




É divertido ver como, com o passar do tempo, o medo de uma doença invisível se vai transformando em raiva e vontade de “bater” em algo ou alguém.
Haverá sempre quem faça questão de dizer que as medidas são erradas, que aquele discurso é incoerente, que o outro comunicado está falho de credibilidade…
Haverá sempre quem, em passando o susto e antes de entrar em pânico, dispare para todos os lados, em busca de um eventual culpado do que acontece.
E haverá sempre quem faça questão de tentar demonstrar que as soluções milagrosas e que se ainda não foram aplicadas é porque não lhe perguntaram.
Mais ainda, haverá sempre quem queira que o Estado contribua para isto e para aquilo, que os outros se cheguem à frente, que alguém faça alguma coisa. E, se tal não for feito, “eles” são incompetentes, avarentos, agiotas, ignorantes das necessidades do povo.
O último exemplo é a norma que impõe o uso de máscara em locais fechados, como transportes públicos ou comércio. E há quem venha reclamar que deveriam ser os comerciantes e as transportadoras a fornecê-la gratuitamente.
Recordo que também é proibido andar nu no interior de estabelecimentos comerciais ou transportes coletivos. E não vejo ninguém reclamar que os supermercados, farmácias ou transportadoras deveriam fornecer, gratuitamente, um conjunto de roupa interior, calças e camisa.
Ora e se fossem dar banho ao cão?
Não podemos esperar que sejam sempre os outros a tomar conta de nós. A fazer tudo por nós, a decidir tudo por nós, a proteger-nos de todos os inconvenientes ou calamidades que nos acontecem. A culpa de ser atropelado numa passagem de peões em que a sinalização permite a sua passagem será d automóvel. Mas também do peão, que não verificou as condições de segurança.
Cuide de si e cuide dos outros, colaborando ao máximo com o que os eleitos e os técnicos estão a fazer por nós.
Se não quiser colaborar, estou em crer que haverá um lugarzinho para si, algures na Antartida.



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sábado, 2 de maio de 2020

Associações de ideias



Sabemos que o Estado Novo se manifestou de diversas formas, à semelhança dos seus congéneres europeus.
Literatura, cinema, arquitetura, pintura… Foram diversos fatores que criaram estas estéticas, desde questões filosófico-políticas, à evolução natural a partir de conceitos anteriores, passando pela “veia criativa” de quem criava.
No campo da arquitetura e gestão urbana, são bons exemplos os que encontramos na zona de Arroios, Areeiro, Alvalade. Espaço, arruamentos, distribuição de comércio, indústria e habitação, equipamentos e monumentos.
A Alameda Afonso Henriques é um bom exemplo, desde os prédios circundantes ao Instituto Superior Técnico de um lado e a Fonte Monumental (vulgo luminosa) do outro. Quem ali pare e olhe em redor não pode deixar de ficar de algum modo impressionado com o que vê, apesar das alterações entretanto feitas. Goste-se ou não goste do que existe e das ideias que estão ali representadas.
Foi esta alameda “apropriada” no pós revolução como espaço de eleição para manifestações políticas ou laborais. Faz sentido. A área disponível para juntar gente é magnífica, desafogada e sem demasiados constrangimentos de trânsito.
Ontem foi mais um desses dias de utilização do espaço: a manifestação do 1º de Maio, dia do trabalhador.
Não estive presente, pelos motivos óbvios, acrescidos do facto de estar a trabalhar. Mas, de um modo ou de outro, fui acompanhando o acontecimento pelas imagens televisivas.
Uma delas, feita com um drone, bem mostrou o como todos aqueles sindicalistas (de base ou de topo) ali se juntaram, não querendo deixar o dia sem cumprir tradições e sem deixar recados laborais a patrões e governo. Ainda bem.
Mas ver aquele espaço com aquela história, com as referências ao Estado Novo estampadas nas cantarias e estátuas, e todos aqueles sindicalistas, bem arrumados em quadriculas de segurança traçada no chão…
De algum modo me recordou os tempos em que a Mocidade Portuguesa (organização do Estado Novo) juntava eles e elas em encontros formalmente semelhantes, todos em “ordem unida” e bem disciplinados. No Estádio Nacional, na Praça do Comércio e noutros locais e datas do regime. À imagem e semelhança do que acontecia noutros pontos do globo, onde os regimes faziam questão de mostrar a “coesão” popular através de grandiosos desfiles e concentrações de gente, sempre muito bem organizadas e orquestradas. Alemanha, Itália, Espanha, Argentina, URRS…
Todos os regimes férreos o fizeram.
Mas, mais que aquelas imagens me recordarem um passado de má memória, deixaram-me de boca aberta!
A disciplina e organização ali demonstrada não faz parte daquilo que conhecemos destas manifestações em tempos de Liberdade. Não faz parte do “gene português”.
Em todas em que marquei “presente” (umas centenas ao longo dos anos) um certo caos na movimentação das multidões foi a tónica dominante, apesar de os organizadores balizarem trajetos, dividirem grupos, incentivarem com palavras de ordem previamente concebidas. Mas as centenas ou milhares de pessoas presentes sempre mostraram uma certa vontade própria no que a movimentos e ajuntamentos diz respeito. Recomendável em tempos de Liberdade como os que vivemos.
O que vi ontem em nada se assemelhou a isso.
Não é bom nem é mau. Foi o possível face às circunstâncias, pese embora as vozes de contestação a esta manifestação. Que felizmente aconteceu.
Mas a associação de ideias que me assaltou, essa ninguém ma tira!

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