quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Cota




Certo!
Já por cá ando há um pedaço mais de meio século, pelo que o apodo de “cota” não será de todo desajustado.
Em termos de captação e tratamento de imagem, ao já por cá andar há tanto tempo, fez com que usasse de quase todos os sistemas e suportes: películas e sensores, químicas e electrónicas, CCDs, CMOS e tubos de raios catódicos, matricial e sequencial, pequenos médios e grandes formatos, estáticos, animados e de alta resolução.
Alguns desses processos tornaram-se com que uma segunda natureza para mim, outros  mais não são que história, outros ainda me são um pouco estranhos, não os dominando por completo. E acredito que quem teve a sorte, como eu, de passar por tantos e tão díspares tenha dificuldade em estar a par de todos e que alguns deles pouco mais sejam que anacronismos curiosos ou tecnologias a dominar.
Por mim, que por dever de ofício ou satisfação da alma, tenho vindo a dominar ou a arranhar todos eles, tenho optado conhecer tão a fundo quanto me é possível o que tenho entre mãos, preocupando-me bem mais com os resultados que com os métodos. Quero “contar uma história”, e bem contada, com a ferramenta que estou a usar, preocupando-me a sério com as últimas tecnologias se e quando elas tiver que usar. Mantenho-me informado mas não as aprofundo como as que estou a usar ou em perspectivas disso.

Uma coisa há, no entanto, que é imutável. Que não depende dos equipamentos ou das tecnologias empregues: a luz. Esta, mais assim ou mais assado, com origem em aquecimento, descargas ou ionização de gás ou LEDs, continua a ser a emissão e reflexão de fotões, que têm uma trajectória rectilínea e um movimento ondulatório, cujas frequências são por nós traduzidas em cores, cuja interrupção na sua trajectória resulta em sombra, com uma intensidade variável na proporção inversa do quadrado da distância, cujo ângulo de reflexão é igual ao ângulo de incidência, e cuja trajectória é alterada pela aplicação de energia ou com materiais que lhe sejam permeáveis.
Mas, e principalmente, é ela que permite o captar imagem, sejam quais forem as tecnologias empregues. É ela que faz com que um dado assunto seja mais “bonito” ou nem tanto. É ela que nos permite contar histórias e estórias.
Nenhum fotógrafo, videógrafo, cineasta, profissional ou curioso interessado, ignora que ela é a sua matéria-prima nem a maltrata ou menospreza. Em o fazendo, os resultados são os que vamos vendo, infelizmente, na net, na imprensa, nos receptores.

Sendo esta a minha abordagem – talvez que de cota com mais de meio século – imagine-se como me sinto ao ter conversas com alguns da nova geração que entendem que a imagem se capta “mais ou menos” e que os contrastes, os ajustes das altas e baixas luzes, as sombras, os jogos de cor se tratam depois, desde que se possua uma boa máquina para os processar.
Um bom pós-processamento é vital na produção de imagem. Sempre o foi. E, se outros motivos não existissem, basta pensar que fotografia, vídeo e cinema têm – sempre – que ser objecto desse tratamento. Tanto na edição, como no controlo, na impressão, na etalonnage, nos efeitos especiais…
Mas com má matéria-prima – no caso, má imagem de origem ou má luz – por muito que se esforcem o mais que se consegue é um resultado sofrível. Se tanto. Nem mesmo os últimos avanços tecnológicos conseguem suprir essas falhas.
Dizerem-me que para se fazer uma boa imagem basta um gráfico de luzes e tons, estático ou animado é o mesmo que me dizerem que para Bruegel ou Leonardo bastava um bom pincel, que para Stanley ou Alfred bastava uma boa película ou que para Helmut ou Frank bastava um bom ampliador.

Serei cota com um pedaço mais de meio século a arrastar a carcaça mas, para mim, bem mais importante que o como é o porquê.

By me

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A prática da arte




 “A arte é uma fonte de conhecimento, tal como a ciência, a filosofia, etc., e a grande luta empreendida pelo homem para ir ajustando a sua concepção da realidade – que é o que o enaltece e o torna livre – não pode prosperar se se manipularem ideias que já foram concebidas e realizadas anteriormente. As formas caducas não podem conduzir a ideias actuais. Se as formas não forem capazes de ferir a sociedade que as recebe, de a irritarem, de a impelirem à meditação, de fazerem com que ela veja que está atrasada, senão estiverem em ruptura, então não são uma verdadeira obra de arte. Perante uma verdadeira obra de arte, o espectador deve sentir-se obrigado a fazer um exame de consciência e a pôr em dia as suas velhas concepções. O artista deve fazer com que ele compreenda que o seu mundo era estreito, e deve abrir-lhe novas perspectivas. Isto é: deve levar a cabo uma autêntica obra humanitária.

Quando o grande público encontra plena satisfação em determinadas formas artísticas, é porque essas formas já perderam toda a sua virulência.

Onde não houver verdadeiro impacto, não haverá arte. Quando a forma artística não é capaz de provocar o desconcerto no espírito do espectador e não o obriga a mudar a forma de pensar, não é actual. “



Texto: Antoni Tàpies, in “A prática da arte”, 1970

Imagem: by me

domingo, 27 de dezembro de 2020

Votos

 

Próspero e saudável ano novo para todos. Os que merecem e os que não merecem.

Os segundos porque quero que assistam de pé às vitórias dos primeiros.


By me

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Media e democracia


 


Excerto do artigo hoje publicado no jornal “Diário de Notícias”.

Parto do princípio que seja rigorosamente verdade.

Assim sendo, concluo sem dificuldade que a isenção politico-partidária das televisões portuguesas anda pelas ruas da amargura.

 

“As televisões (RTP, SIC e TVI) não vão mudar o alinhamento dos seus frente-a-frente para as presidenciais só porque entretanto se confirmou a candidatura de "Tino" de Rans. O líder do RIR e antigo militante do PS vai ficar de fora.

Vitorino Silva - "Tino" de Rans - já entregou as assinaturas para ser candidato presidencial mas será excluído dos frente-a-frente que as televisões (RTP, SIC e TVI) organizaram e que serão transmitidos de 2 a 9 de janeiro.

A decisão já estava tomada entre as direções de informação das três estações ainda antes de o antigo presidente da junta de freguesia de Rans (Penafiel) ter apresentado as assinaturas (apresentou nove mil quando só precisava de 7500).

O argumento das televisões é que, como os frente-a-frente terão lugar antes do período oficial de campanha (que começa a 11 de janeiro e terminará a 22, sendo as eleições a 24), é possível ter critérios editoriais que não impliquem tratamento absolutamente igualitário entre todas as candidaturas.

E assim, só estarão nos frente a frente os candidatos que, de uma forma ou de outra, têm alguma espécie de correspondência com os partidos parlamentares: Marcelo é apoiado pelo PSD e pelo CDS; Ana Gomes é militante do PS e apoiada pelo PAN; Marisa Matias pelo BE; João Ferreira pelo PCP e pelo PEV; André Ventura, pelo Chega; e Tiago Mayan, pela Iniciativa Liberal.

Obedecendo a este critério, "Tino" de Rans ficará de fora. Sendo líder de um partido - o RIR (Reagir, Incluir, Reciclar) não tem no entanto representação parlamentar.”

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 Imagem by me

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Prazeres ou nem tanto


 


Consigo entender parte da satisfação obtida na caça.

É ancestral, diria mesmo animal, e resulta do saber que há comida. Provém dos tempos em que obter carne para comer era coisa difícil, muitas vezes rara. Quer se tratasse da caça grossa feita em colectivo, quer de outra menor feita em solitário. Ou mesmo de armadilhas.
Não esquecer que a caça e o prazer da carne foram, durante séculos, privilégio das elites e que a ralé (entenda-se por povo, escravos, servos da gleba, pobres…) só as elas tinham acesso por deferência senhorial em dias especiais ou furtivamente. Quantas vezes punidos severamente se apanhados.
Ainda hoje a matança do porco e o tratamento das carnes é motivo de regozijo e festa nas aldeias e comunidades pequenas, em que se juntam as pequenas comunidades para celebrarem a abundancia.
Nos tempos que correm a caça poucas vezes é para comer. Eventualmente guardam-se algumas peças, pequenas, que a conservação no frio o permite.
O acto de matar, hoje, pode ser equiparado ao ir-se aos centros comerciais ou lojas de inutilidades: prazer pelo prazer da acumulação, do fútil, da ostentação, da posse de objectos (ou peças de carne) que, as mais das vezes, de nada servem e que são guardadas algures quase até ao esquecimento. Eventualmente, no caso da caça, vendidas passado que for a prazer de matar.
Consigo entender o prazer da caça enquanto sucesso num acto difícil.
Aquilo a que assistimos um destes dias não foi caça nem foi difícil nem foi para comer. Nem sequer foi animalesco instinto.
Foi crueldade pura e dura praticada por quem merecia ser objecto de caça.
Chamem os tigres e molhem a pólvora!

By me

Tradições



 

Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.

Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.

E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.

 

Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:

Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.

A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.

Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.

Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.

E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.

O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!

O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.

Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!

Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.

 

Texto: by José Vilhena

 Imagem: by me

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Nas sombras da memória




De minha casa para o liceu onde estudei era bem uma hora de viagem. Não havia vias rápidas, nem corredores do BUS e os próprios autocarros eram velhos. Aliás, tão velhos eram que ainda circulavam os de dois pisos de porta atrás, porta esta que não fechava. Era divertido para os que tentavam ir à borla, se o cobrador não aparecesse com o seu terrífico alicate. E aparecia com frequência.

Às sete e pouco da manhã o autocarro a que subia era sempre o mesmo, bem como os que comigo aguardavam na paragem. Eu diria que, mais que ser sempre o mesmo no horário, era efectivamente a mesma viatura.

Isto porque havia no caminho uma pequena subida, com pouco mais de vinte metros, mas particularmente íngreme. O suficiente para que aquele motor estafado e carregado como ia, se queixasse e recusasse a subi-la.

E, em o ouvindo a protestar, todos nós, os habituais viajantes, já sabíamos o que fazer: Saíamos todos, percorríamos aqueles vinte metros a pé, lado a lado com o velho verdinho de dois pisos e, em terminando a subida, embarcávamos de novo. Estivesse o sol já acima do horizonte ou fosse ainda noite fechada e a chover.

Interessante mesmo de recordar é que, ao regressarmos ao interior, cada um ia ocupar exactamente o mesmo lugar que tinha ocupado, fosse ele à janela ou na coxia, em baixo ou em cima, ou, na pior das hipóteses, de pé. E eram só quatro que iriam de pé, que havia lotação controlada.

Claro que os protestos aconteciam, não fôramos nós portugueses, por vezes com alguma dose de humor, outras nem tanto, fazendo a maioria cara de conformados, que outra alternativa não tínhamos.

Claro que isto hoje não sucederia. Não há autocarros em tão mau estado, não há autocarros só com quatro lugares de pé nem há autocarros de porta sempre aberta.

Mas também não há o sentimento de respeito pelo próximo como então.

Seria, hoje, uma correria para ver quem ficaria no lugar que mais lhe agradasse, com alguns encontrões e discussões sobre a legitimidade de se estar sentado ou o fatalismo de se ficar de pé.

Nestes quarenta e tal anos que nos separam do então vieram a democracia, a liberdade de expressão, os autocarros com ar condicionado, escassos lugares sentados e vias reservadas aos transportes públicos. Desapareceram a censura e a polícia política, as paragens-zona e o alicate do cobrador.

Mas também sobreveio uma sociedade competitiva, incentivada por governos, alimentada pelo consumo e encorajada pelo pseudo desporto em que o que mais conta é a vitória e não o participar. Em contrapartida, diluiu-se a capacidade de perdoar e a solidariedade como atitude permanente na vida.

Para além das memórias, tenho um alicate de cobrador para as reavivar. E tenho a prática do quotidiano, que me mantém vivo e sem vergonha de olhar o espelho.


Nota fotográfica adicional - este é o tipo de luz de que mais gosto: vindo do lado de lá do assunto.


By me

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Hoje

 


 

Para os antigos, os mesmo muito antigos, a contagem do tempo fazia-se por dias.

E é fácil de entender porquê. Sem mecanismos naturais ou manufacturados, o movimento aparente do sol, com o seu nascer e morrer no horizonte cíclico e garantido era algo fiável e facilmente contável.

Claro que muitos dias podem ser confundíveis e surge nova unidade de tempo, igualmente natural: a lua. O seu regular movimento de cheia a cheia, com as fases intermédias, permitiu definir meses e semanas. Estas de sete dias, tantos quantos os de cada fase.

O somatório de várias luas veio criar o ano, desta feita associado às estações do ano, igualmente cíclico. A própria natureza, com o reproduzir animal e vegetal, ajudou a confirmar a regularidade.

Ainda hoje usamos estas formar primárias de medição temporal: dias, semanas, meses, anos. E inventámos calendários, demos-lhes nomes e números, marcámos momentos especiais e celebramos cada ciclo que vivemos. E é tão verdade que zonas do globo há que comemoram o maior dos ciclos, o ano, com calendários lunares, ao invés dos relativamente modernos 365 dias e seis horas.

Mas entre dias, meses e anos assim observados e contados, há um outro acontecimento natural regular e observável que auxilia na contagem do tempo: a duração da luz natural. Sabemos da vivência e dos bancos da escola que os dias são mais longos no verão e mais curtos no inverno. E os antigos, os muito antigos, também se aperceberam disso. E deram-lhe importância suficiente para, unindo esforços, erguerem monumentos magníficos e duradoiros para assinalarem os maiores, menores ou equiduradoiros. Concebidos e orientados com um rigor quase assustador, se considerarmos os conhecimentos e capacidades de engenharia de então.

Este reconhecer de alguns dias do ano, solstícios e equinócios, aconteceu por todo o globo, em todos os continentes e civilizações. E o assinalar desses dias, em calendários mais ou menos elaborados ou em edificações mais primárias, também aconteceu por todo o lado, nas mais diversas e remotas civilizações e culturas.

É também por isso que eu, consumidor do átomo e do nano segundo, tenho especial admiração pelos muito antigos e pelos seus saberes, quantas vezes ignorados ou menosprezados hoje. Em particular no seu reconhecimento do tempo, que não dominamos mas que apenas podemos contar e usufruir. Quantas vezes inutilmente.

 

É nessa linha que tenho especial carinho pelos solstícios e equinócios, celebrados desde sempre e por todos. E, tivesse eu poder sobre as leis globais, decretaria esses quatro dias como feriados mundiais. Que não dependem de eventos humanos e que, façamos o que fizermos, continuarão a acontecer muito depois de o ser humano deixar de ser apenas uma memória no universo.

 

Hoje é um desses dias: Solstício, de inverno para uns de verão para outros. O dia mais curto ou mais longo, que as diversas teologias trataram de mascarar ou adaptar com outras histórias ou eventuais marcos humanos.

Sugiro que hoje, e se chegaram ao fim desta diatribe, olhem em redor. Para o céu ou para o horizonte, citadino ou campestre.

E que durante um pedacinho pensem na nossa própria efemeridade, no modo como ocupamos aquilo que não dominamos nem nos pertence, nas coisas boas ou más que com ele fazemos. Naquilo que não fazemos, desperdiçando a vida. E naquilo que faz com que cada dia, mês, ano, seja bom, válido e nos enche a alma.

 

Feliz solstício.


By me

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Formas de estar




 É incrível a quantidade de pessoas que são anti. Anti-Qualquer-Coisa.

Anti-fascista, anti-racista, anti-capitalista, anti-comunista, anti-sistema, anti-euro, anti-violência,… anti!

O que é curioso – ou triste – é que ser anti-qualquer-coisa, por muito nobre que seja a causa, é viver num estado de luta ou confronto permanente. É estar sempre a querer acabar com aquilo de que se é anti. Seja lá o que for!

E ao estar-se em luta permanente na prática está-se em luta consigo mesmo. Porque o resultado de se estar sempre num estado de anti é não se estar pró na vida. Que quem luta sempre na vida acaba por não a viver, por não se aperceber de tudo ou grande parte daquilo que é positivo.

Tenho uma atitude diferente: sou pró! Sou pró-felicidade, sou pró-liberdade, sou pró-responsabilidade, sou pró-bem-estar, sou pró-criatividade. Sou pró!

Claro que tenham cuidado os que impeçam o atingir aquilo pelo qual sou pró! Estão tramados! Que sou anti todos eles, com tudo o que isso implique!


Dirão que é uma questão de semântica. Pois talvez o seja.


Mas entre estar em luta para ser feliz ou ser feliz estando em luta, prefiro o primeiro.


By me

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Tradições




 Dezembro é época de tradições. Pelo menos nesta zona do globo.

Usemo-la e contemos histórias ou estórias apropriadas.

Neste caso, um texto de um excelente autor, maldito para uns, magnifico para outros.

E, se excluirmos algum exagero aqui ou ali, certamente que reconhecerão o descrito.


Como a família da Lurdinhas passou a consoada do ano passado:


Para estreitar os laços familiares, não há nada que chegue à festa do Natal, lá isso é verdade, mas espero que neste ano as coisas corram melhor do que o ano passado e não seja preciso o meu pai ir mudar de roupa a meio do jantar por ter apanhado em cheio com o galheteiro do azeite nos cornos, atirado pela minha mãe que o topou a apalpar o cu à D. Filomena, uma prima da minha madrinha que veio de Angola e vive numa pensão em Almirante Reis e anda a estudar para manicure.

A minha mãe ficou bera e com razão, não é por ser minha mãe, esteve quase a dar-lhe o fanico e só gritava: «Tirem-me essa puta da frente! Tirem-me essa puta da frente!» Mas quando as pessoas são educadas, as coisas acabam por compor-se e bastou tirarem a D. Filomena de ao pé do meu pai para ficar tudo em sossego. No fim até estiveram as duas a falar de crochés e da telenovela, que nessa altura dava na televisão, e a D. Filomena ofereceu-se para tratar os pés da minha mãe, assim que acabasse um curso de calista que andava a tirar ali para os lados da Fonte Luminosa.

Essa bronca portanto foi o menos; o pior veio a seguir quando a minha avó teve a infeliz ideia de perguntar à prima Otília que presente de Natal é que lhe tinham dado os patrões do escritório onde ela trabalha e a parva descaiu-se a dizer que, do senhor Benjamim, recebeu um jogo de calcinhas e soutien em nylon, e do senhor Canelas, um vibrador-masturbador japonês, muito bonito, todo transistorizado.

Ora, ao ouvir isto, o Fernando, que é o marido da Otília e tinha metido na boca uma grande garfada, engasgou-se, engoliu uma data de espinhas de bacalhau, cuspiu o resto no prato do meu avô e desatou ao bofetão à mulher: «Sua cabra! Sua ordinária!» e a dizer que ia enfiar o vibrador pelo cu do Canelas acima e partir os cornos ao porcalhão do Benjamim.

E a palerma da Otília, em vez de se calar, como era a obrigação dela, cresceu para o marido que até parecia uma leoa: «Tire as patas de cima de mim, seu cabrão! Você é que tem cornos e dos grandes, ouviu?» E ele, todo a tremer: «Eu?! E ainda o dizes, grandessíssima puta?» E a Otília: «Pois digo para vergonha tua, que nem és marido nem nada! Se não fossem os meus patrões não sei o que seria de mim?». E desatou a chorar baba e ranho e então o Fernando agarrou na faca de cortar o bolo-rei e toda a família se pôs a gritar «Ai que ele mata-a! Ai que ele mata-a!», mas o meu pai tirou-lhe a faca e o tio Arnaldo obrigou-o a sentar-se na cadeira, deu-lhe palmadinhas nas costas e disse-lhe: «Não ligues ao que ela diz, pá, que as mulheres são todas umas putas», e ele ao ouvir estas boas palavras, ficou mais sossegado e até alargou um furo ao cinto para continuar a comer.

O pior é que a tia Palmira não gostou da conversa do marido e começou a refilar que não queria confusões, que se as outras eram putas ela era uma mulher séria, que quem não se sente não é filho de boa gente, etc., etc., mas o tio Arnaldo que é um bocado bruto atirou-lhe logo esta a matar: «Escusas de armar em séria, que todos sabem que andaste enrolada com o Gonçalves da farmácia quando ele te tratou do eczema»; e ela, logo: «E tu com a Gracinda da peixaria, que até escamas de pargo trazias para casa nas cuecas!» E o tio Arnaldo, muito fodido: «As escamas de pargo não são aqui chamadas para nada, porra!» E, ao dizer isto, deu tal murro num prato de filhoses que saltou calda para todo o lado e até eu fiquei com o cabelo enchapoçado dela. E o meu pai que ia acudir pela tia Palmira, esteve vai não vai para apanhar outra vez com o galheteiro, pois a minha mãe tinha-o sempre debaixo de olho; enfim, só visto!

O que valeu para que a festa de Natal não ficasse estragada foi a minha madrinha impor-se, visto ser ela a dona da casa, e avisar que não consentia faltas de respeito, que aquilo ali não era nenhuma taberna e que achava uma sacanice estarem a encher o bandulho à custa dela, com a comida cara como estava, e a portarem-se que nem javardos em vez de se mostrarem agradecidos. «Ou comem de bico calado ou vai tudo para o olho da rua!» disse ela e ninguém refilou; durante algum tempo só se ouviu mastigar, até que o senhor Aguinaldo, o sacana do velhote que está amigado com a minha madrinha e que até aí só abria a boca para meter para dentro, resmungou lá do canto que no olho da rua já nós devíamos estar há muito e que se a família dele fosse ordinária como a nossa já a tinha rifado. Um gajo bera, palavra de honra; não são coisas que se digam assim na frente das pessoas e ainda gostava de ver que merda de família é a dele; cheira-me que é para ali uma ciganada cheia de putas, chulos, sovaqueiras e arrebentas.

Mas a minha mãe, que tem muito jeito para compor as coisas quando não está com a bolha, disse que o melhor era a minha madrinha abrir a televisão, que tem programas muito bonitos no Natal, porque as conversas não fazem falta para nada e a gente não estava ali para conversar mas para comer e que assim as crianças sempre estavam mais distraídas. Foderam-me!

Foi assim que tive de gramar duas horas de chachadas como essa porcaria das canções do Natal, das entrevistas do Natal, das tradições do Natal, dos votos de Natal e até dos anúncios do Natal, sem ter feito mal a ninguém. Não é que eu goste de chavascal e sarrafada, mas, mal por mal, ainda preferia ver os parentes todos à porrada e a descobrir o cu uns aos outros do que ver a merda da televisão.


Texto: by José Vilhena

Imagem: by me

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O pão

 



Alguém me explica porque é que ao pão acabado de sair do forno, com aquela temperatura de queimar os dedos e a língua, onde manteiga se derrete, se chama de “pão fresco”?


By me

domingo, 13 de dezembro de 2020

Tal como Diógenes


 


Esta fotografia já tem uns quantos anitos.

Foi feita a pensar em Diógenes e na sua busca por um homem honesto.

Recordo ter-me dado uma trabalheira desgraçada e de ter feito já nem sei quantas tentativas até obter esta.

Desde logo porque estava a trabalhar sozinho, o que transforma um auto-retrato num trabalho de tentativa e erro e num penoso exercício de paciência.

Em seguida porque sabia exactamente o que queria e não foi de todo fácil conseguir uma aproximação sofrível ao que tinha imaginado.

Depois porque estive a trabalhar com flashs portáteis, sem luz de modelação. Saber com rigor onde incidem e que sombras provocam implica experiência, imaginação e paciência.

Acrescente-se que o jogo de intensidades entre um flash e a luz de uma cadeia é algo complicado de obter, mesmo medindo e voltando a medir.

Some-se-lhe a necessidade de o candeeiro não provocar sombra no rosto e de a luz correspondente passar sob o braço não incidindo neste foi trabalho insano para quem posa, desmonta posição para ver o resultado e regressa à posição com algumas correcções.

Por fim, o equilíbrio de contrastes para que o candeeiro tivesse algum detalhe e se percebesse de que material era feito.

Não foi trabalho fácil e, confesso, não me deixou inteiramente satisfeito. Mas, ao fim de algumas horas, a paciência esgotou-se-me.

Mas ainda hoje procuro um homem honesto, tal como Diógenes.

 

By me

Sugestão

 



“Bem vindo Mr. Chance”, ou “Being there” no seu título original, é um filme fora de série. Realmente fora de série!

Pese embora fazer parte da minha videoteca, há anos que não o via e tive o prazer de o rever esta noite, numa estação de televisão portuguesa.

Recomendo-o vivamente a todos os que não passaram pela experiência.

 

Imagem: frame do filme exibido

sábado, 12 de dezembro de 2020

Interpretações


 


Excepção feita às listas telefónicas e aos formulários e minutas oficiais, quase todo o trabalho humano pode ter duas ou mais interpretações. Umas mais óbvias, outras não tanto. Umas definidas à partida por quem ou faz, outras apenas descobertas por quem vê o resultado final.

Os trabalhos criativos não são excepção, talvez mesmo o oposto, sendo o expoente máximo da subjectividade. Quer se trate de pintura, escrita, fotografia, performances como música, teatro, bailado… Até mesmo a arquitectura tem essa característica, muito para além da estética e funcionalidades aparentes.

Tenho a desventura de não ser nada digno de nota nem na escrita nem na fotografia, pelo que tenho completar uma com a outra e vice-versa. Mas, e sem sombra de dúvida, que o que de pobre vou fazendo tem sempre mais que uma leitura ou interpretação possíveis ao dar por findo o processo criativo. E para além daquilo que quem veja ou leia encontre por si mesmo.

Por vezes há que contar histórias que não podem ou não devem ser contadas e a parábola é um subterfugio para a necessidade de contar. Por vezes é o deixar algo de fora propositadamente, tanto na fotografia quanto no texto, para que leitor ou espectador possa completar e criar a sua própria imagem e história.

Por vezes ainda, há que “passar recados” ou “dar lições” sem que isso se sinta de imediato e sem ferir susceptibilidades.

Outras ocasiões, não tenho o poder de síntese quanto baste e o resultado é essa mesma multiplicidade de interpretações.

Em qualquer dos casos, e enquanto autor (fraco mas autor), fico satisfeito quando é encontrada uma qualquer história, mesmo que não alguma das originais. Se alguma reacção acontece, mesmo que não a prevista ou mesmo que negativa, isso quer dizer que de algum modo comuniquei com que vê ou lê. Que de algum modo saí da trivialidade e consegui que alguém pensasse ou sentisse algo.

E isto para mim é uma vitória.


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Tradições




 Esta história tem já uns dez anitos, mais dia menos dia em Dezembro, mas nesta coisa de tradições natalícias tem cabimento.


Eu estava encostado ao balcão do café da minha rua, à espera do “banheira e hambúrguer”, código privado ali criado para um café cheio e um pão de deus com queijo e manteiga. Rotinas.

Entrou um dos carteiros que faziam a rota da rua em que morava. Eram três, à vez, e conhecia-os de trocarmos uns dedos de conversa sobre trivialidades como o tempo, ou fotografia com um deles.

Depois de entregar a correspondência para ali destinada, olhou para mim e comentou:

“Ainda bem que o vejo, que andava a pensar em si. Tenho aqui uma coisa que acho que lhe é destinada.” E metendo a mão no pesado saco retirou uma caixa cúbica, aí com uns 20 cm de lado. “Vem do estrangeiro, parece-me”.

Fixe! Baril! Ganda pinta! Afinal o tipo das barbas brancas também recebe encomendas do Polo Norte!

Bem, não seria do Polo Norte, mas tão só do norte, da Grã Bretanha para ser exacto. Mas era lá de cima, do norte e do frio, prontos.

Acrescentou o bom do homem que a letra correspondente ao apartamento não estava bem legível e que poderia ter várias interpretações. E que, em o comentando com colegas lá na central de distribuição, um deles alvitrara que poderia ser para mim, o tipo das barbas e da fotografia. E era, mas achei graça que os carteiros me conhecessem pelo nome num bairro dormitório suburbano e num prédio com 96 apartamentos.

Dentro da caixa, que abri logo ali, estava isto: uma bela de uma objectiva fotográfica.

A sua alcunha era “travelling 28” e era propriedade de um membro de um grupo de fotografia na web de que eu fazia parte. E fora proposto que esta banal 28mm circulasse pelos membros aderentes ao desafio, em diversos países e continentes,  e que cada um fotografasse com ela. Em terminando o périplo regressaria ao dono.

Quando aceitei o desafio imaginei algumas a fazer, nos quinze dias em que “brincaria” com ela, pese embora possuísse uma quase igual, apenas um nico mais antiga. E estava a reservar-me para ela, que não tinha graça subverter um projecto colectivo como este.

Não recordo já para quem a enviei em terminando o prazo: ou foi para um Islandês, o único com esta nacionalidade no grupo, ou foi para um Australiano, terminando comigo a aventura europeia da “travelling 28”.

Em qualquer dos casos, sei que passados meses regressou a seu dono, numa fraternidade rara nos tempos que correm, entre gente que apenas se conhecia das trocas de mensagens e experiências num fórum global.

Fosse como fosse, e como natal é quando um Homem quiser, naquele ano chegou mais cedo, no café, e abri a prenda antes da data habitual.

Boas festas com ou sem prendinhas.


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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A aliança


 


Um photógrapho é um recolector das histórias dos outros. Um cronista também. Diferencia-os a luz da tinta. Mas que dizer de um photocronista?

Esta história, que aqui grafo tal como me recordo da sua oralidade, foi-me contada em primeira-mão:

 

“Vivia sozinho e o meu orgulho impedia-me de ir pedir ajuda aos pais, apesar de, naquela altura, os pagamentos da empresa onde trabalhava estarem atrasados. Naquele dia não tinha dinheiro nem para tomar um café. Revirei tudo em casa em busca de uma moedinha que fosse e nada.

Acabei por me meter no carro e ir a casa de uma amiga, que me poderia emprestar algum, pouco, para os dias que ainda faltavam até vir o guito.

Mas acabei por me enganar no caminho e entrei na via-rápida no sentido oposto. Com a pouca gasolina que tinha, não sabia se daria para inverter a marcha mais à frente, pelo que decidi continuar e ir a casa de uma outra amiga, que me haveria de ajudar.

Não estava em casa. Mas estava lá uma amiga dela. Não nos conhecíamos, mas já ouvíramos falar um do outro. Ajudou-me.

É hoje a minha mulher.”

 

E se isto não é uma bonita história de necessidade, coincidências, solidariedade e final feliz, adequada a qualquer época em geral, incluindo a que atravessamos, não sei o que o será.

 

Nota adicional  - Esta fotografia é da mão e da aliança de um dos dois protagonistas da história contada. Não é uma grande fotografia, mas foi o que consegui fazer quando o encontrei de novo, por entre os afazeres do ofício.

Poderia talvez fazer uma melhor, quiçá usando a minha própria aliança e melhor trabalhando luz e fundo. Mas não seria factual, podendo sê-lo.

Mas entre uma fraca fotografia factual e uma boa fotografia fictícia, prefiro a primeira. Que, mais importante que uma “boa” fotografia, para um photocronista importa a realidade. Ou passaria a ser um photorromancista.

Além do mais a minha aliança tem outras histórias que, por enquanto, guardo para mim.


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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Fotografia




“A luz é a minha matéria-prima e a perspectiva a minha ferramenta”

A frase é minha e é curioso como ela me descreve.

Tanto no que concerne factualmente às minhas actividades profissionais e lúdicas quanto ao simbólico dos termos: a luz enquanto fonte de saber, a perspectiva (ou ponto de vista) enquanto dialética.

Tenho para mim que em fotografia quem não se preocupar com a luz e a perspectiva, tanto factual quanto simbólica, seguindo os academismos ou experimentando até à exaustão, pouco mais será que um fotocopiador do universo que o cerca.

Em qualquer dos casos, e apesar de a fotografia também ser uma forma de comunicação, importa acima de tudo que quem a pratica encontre satisfação no que faz. O resto serão modas, negócios e egos.


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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

As camisas e a ética




 Foi há uns trinta e tal anos, não posso precisar.

Fui contratado por uma agência para fazer as fotografias de uma campanha publicitária de uma fábrica de camisas. Um trabalho de envergadura, com produção complexa, que envolvia fotografar modelos em locais alugados, o produto acabado em lojas e a fábrica em laboração.

Fotografado em formato 9x12, com uma câmara Linhof que havia comprado pouco tempo antes.

Quando o trabalho me chegou às mãos já quase tudo estava combinado entre o produtor e o cliente, ficando a meu cargo as questões técnicas e estéticas, e pouco de publicidade ou comunicação. 

O trabalho correu mais ou menos bem, com alguns episódios caricatos e algumas falhas da minha parte, mas que fui resolvendo como podia.

O último dia de produção era na fábrica. A mais complicada em termos de luz, considerando a enormidade do espaço: uma nave grande, cheia de gente a costurar, com uma mistura de luz natural entrada pelas janelas e telhado e luz fluorescente vinda do tecto. Um pesadelo, se considerarmos que o trabalho era a cores e não havia photoshop para correcções posteriores. 

Enquanto o produtor e o cliente ficavam à conversa, eu passeei-me pelo espaço, tentado senti-lo: máquinas, pessoas, luz, acções…

E apercebi-me de sorrisos constrangidos das senhoras que iam costurando ou cortando as peças de tecido. Fui metendo conversa com elas.

Fiquei sabendo que tinham sido avisadas da nossa vinda, que haveriam de vir com uma bata lavada e penteadas para as fotografias. Mas bastantes, algumas com idade para serem minhas avós, não queriam ser fotografadas. Ou por timidez, ou porque não gostavam da forma como ali eram tratadas, ou tão simplesmente porque não gostavam de fotografias. Sempre em tom baixo de conversa, não fosse serem ouvidas.

Eu era ainda puto, a experiência reduzida e o trabalho poderia lançar-me para outros voos. Mas aquilo foi-me batendo forte. Muito forte! Eu iria fotografar gente que não queria ser fotografada mas que era obrigada a isso pelo patrão. Não gostei. Nem um nico!

Regressei para junto do grupo que me aguardava: O dono da fábrica, a sua secretária, o produtor e o Jorge F., o meu assistente, inigualável no seu desempenho, que me entendia e me completava nas tarefas como nenhum outro com quem trabalhei. E disse-lhes que o trabalho não podia ser feito como combinado.

Ficaram a olhar para mim com ar espantado. E expliquei com argumentos técnicos e estéticos que não iria ser possível fazer boas imagens com a presença humana, já que ficariam tremidas ou com cores estranhas e que a solução seria fotografar a fábrica e a maquinaria por pedaços em vez de por inteiro e sem a presença das operárias. 

A discussão foi renhida, entre mim, o dono da fábrica e o produtor. De parte, o Jorge, junto da tralha entretanto já descarregada, olhava para mim e sorria discretamente. Disse-me, mais tarde, que havia percebido o que eu queria com aquilo. 

Acabei por ganhar a batalha. Afinal, mesmo sendo puto, eu era o “expert” na coisa e aquilo que propunha não iria alterar em muito o conjunto do projecto inicial. E, depois do almoço, a produção parou por algumas, não muitas, horas. 

As imagens foram feitas, com as máquinas bonitas, brilhantes e eficientes, com peças a meio do tratamento tanto de corte como de costura ou dobragem e embalamento. Mas sem ninguém contrariado nelas. Nem com sorrisos contristados nem com mãos calejadas ou com cicatrizes.

Quando, no final dos trabalhos, estávamos a arrumar a tralha e as operárias regressaram às suas máquinas, os sorrisos de algumas pagaram muito bem pago o só ter feito mais um trabalho, já agendado, para este produtor. 

Ainda hoje as recordo. 


Nota extra: A fotografia não da época. Os originais, em diapositivo 4x5, foram entregues ao cliente na altura. Esta foi feita ali, a correr, para acompanhar o texto.


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sábado, 5 de dezembro de 2020

Imagens com nível




 A questão da fotografia recorrendo ao enquadramento integral e fazer disso um estilo de imagem, é velha.

Não querendo entrar em polémicas, entendo que é pouco prático e que a maior parte das pessoas não o usam. E, em democracia, a maioria tem razão.

O problema levanta-se, desde logo, porque raros são os laboratórios que imprimem integralmente as imagens que lhes entregamos. E como os formatos de papel standard não é consentâneo com o formatos da câmaras, algo será “cortado”, na horizontal ou na vertical.

Em seguida, temos que a imagem original raramente é vista. Exceptua-se o diapositivo (ou slide). Todo o processo digital implica converter a imagem formada sobre o sensor em impulsos eléctricos, estes em códigos digitais, estes em impulsos eléctricos que, por sua vez, serão transpostos para o papel ou para um ecrã. Em tudo isto, há sempre intermediários, automáticos ou não, que alteram ou mesmo subvertem o resultado da passagem da luz através da objectiva.

Considerando tudo isto, o uso de editores de imagem que acrescentem, retirem, ajustem, melhorem aquilo que o fotógrafo quis fazer aquando da obturação é aceitável.

Diria mesmo que recomendável, quando não conseguimos nessa altura aquilo que queremos mostrar. Ou porque nos falhou qualquer detalhe técnico ou porque é essa alteração que irá fazer passar a mensagem ou sentimento que se quer.

É exactamente por isso, por ser possível e por ser recomendável, que me incomoda, me faz saltar a tampa, me faz mesmo evitar ver as imagens que têm o raio do horizonte torto. Muito principalmente quando esse horizonte é no mar.

Sabemos que a linha do horizonte não é uma recta mas antes uma curva, já que o planeta é quase esférico. Mas estar o mar a tombar para a esquerda ou para a direita… Não só denuncia que esse detalhe não foi considerado na tomada de vista como também não foi visto no tratamento posterior.

Claro que o mar pode estar torto propositadamente. Interpretação subjectiva sobre um qualquer assunto. Infelizmente, imagens dessas serão menos que 0,0001% de todas as fotografias que têm o mar torto.


E, para aqueles que lêem este meu desabafo meio cáustico, fica uma pergunta: aceitam ter em casa, ou numa exposição, um quadro pendurado ligeiramente torto? Ou está direito ou está assumidamente de lado.

Ver um quadro assim, na parede, dá vontade de o ir endireitar. Tal como dá vontade de endireitar o mar descaído de certas fotografias.


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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A fotografia

 



“Ou então pegas num álbum de fotografias, um álbum qualquer de uma pessoa qualquer, como eu, como tu, como toda a gente. E dás-te conta que a vida está ali nos diferentes segmentos que aqueles estúpidos segmentos de papel encerram sem a deixar sair dos seus acanhados limites. E no entanto a vida é coisa prenhe, impaciente, quer ir mais além daquele rectângulo, porque sabe que aquele menino vestido de branco, de mãos postas e com a fita da primeira comunhão no braço, amanhã (digo “amanhã” só para dizer um dia qualquer) há-de chorar às escondidas com vergonha de si próprio: uma pequena torpeza? Pequena ou grande, pouco importa, porque ela implica o remorso, e é dele que estamos a falar. Mas aquela fotografia feroz, mais severa que um vigilante, não deixa que a verdadeira verdade fuja dos seus escassos centímetros. A vida fica prisioneira da sua representação: serás o único a lembrar-se do dia seguinte.”


O título é meu, a fotografia também, mas o texto é de António Tabucchi, no seu livro “Está a fazer-se cada vez mais tarde” 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Liberdade e poder



 

Em 1871, em França e durante a Comuna de Paris, os revoltosos deixaram-se fotografar nas barricadas, orgulhosos de serem alvo de fotografia, coisa de elite então, e orgulhosos da causa pela qual combatiam.

Esmagada a revolta, as forças governamentais identificaram-nos pelas fotografias, detiveram-nos e fuzilaram-nos.

Em 1992, em Los Angeles e durante uns violentos motins por motivos raciais, um jornalista amador foi para as ruas registar os acontecimentos com a sua câmara de vídeo.

Acalmada a multidão pelas forças policiais e militares, os tribunais exigiram-lhe as cassetes para identificar os amotinados, coisa que ele recusou fazer. Foi preso, julgado e condenado a pesada pena de prisão, acabando por ser libertado após a intervenção de movimentos cívicos.

Em 2020, em França, foi aprovada uma lei que permite a utilização de registos de imagem, incluindo drones, por parte das forças da ordem durante manifestações e a identificação facial por meios digitais durante as mesmas.

Ao mesmo tempo, proíbe e pune os cidadãos que façam fotografias ou vídeos dos agentes policiais ou militares durante a sua acção sobre civis. Em manifestações ou não.

Agora, em Portugal, o presidente do Chega quer proibir, punindo com pena de prisão, a captura e difusão de imagens ou vídeos de actuação policial, especialmente sobre "grupos étnicos ou raciais minoritários", através de uma proposta para alterar o Código Penal.

 

Fica um resumo histórico, forçosamente incompleto, e o alerta sobre a sua repetição na actualidade.


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sábado, 28 de novembro de 2020

Ir ao cinema


 


Quando as pipocas invadiram as salas de cinema eu deixei de ser um espectador assíduo.

Ele é o cheiro das pipocas que nos é imposto, gostemos ou não dele… ele é o ruído do consumo, que nos impede de aceder ao som na sua plenitude… ele é o terminarem a projecção aquando da ficha técnica final, para que haja tempo de limpar a sala antes da sessão seguinte…

Se eu vou pagar para ver um filme quero-o a ele e não a toda esta poluição sonora e olfactiva. E quero o filme por inteiro, e não apenas o que o exibidor entende que devo ver e ouvir.

Fiquei agora a saber que a Direcção Geral de Saúde proibiu, por motivos sanitários, o consumo de pipocas e refrigerantes nas salas de cinemas.

Claro que isso afecta o negócio, que por vezes mais parece de restauração que de espectáculos. E coloca em risco muitos postos de trabalho, com tudo o que isso significa para essas vidas.

Mas talvez que a medida fique para sempre e eu volte a ser um consumidor regular de cinema, vendo-o na plenitude do grande ecrã, ouvindo-o na magnificência dos multi canais e sem incómodos adicionais.


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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Pré-epitáfio


 


Em tempos conheci um mestre!

Sócio na traineira que comandava, nos mares algarvios e na costa Vicentina, o Mestre Luís Benjamim era um homem ímpar.

Firme no leme e no sonar, assim como com a companha, a sua generosidade para com o mar e a gente que o amanhava era enorme. Mas bem maior que ela era o gosto que tinha pelo que fazia. Meio a sério, meio a brincar, costumava dizer que era no mar e junto da roda do leme que gostaria de morrer.

A vida, mãe ou madrasta como quiserem, fez-lhe a vontade. Uma noite o coração colapsou-se-lhe enquanto que com as mãos na roda buscava cardume.

Quando o soube, muito tempo depois, sorri e disse de mim para mim que era assim que gostaria de morrer: fazendo algo de que goste!

Há pouco, quando preparava o saco da “tralha” antes de sair, não tive dúvidas!

Não sei o que o futuro me reserva, ainda que provavelmente decidido por mim. Mas se puder escolher ou dar uma ajudinha, gostaria que fosse a fotografar. A tentar fazer com que a luz que vejo se materialize no papel ou no ecrã, se possível provocando algumas reacções a quem as veja.

E na minha tumba, se a isso tiver direito e se se justificar, no lugar de uma cruz coloquem uma objectiva encastrada num cérebro.

Afinal, é isso que tenho feito quase toda a vida!


By me

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Liberdade




 “ - O que é para si a Liberdade?”

“ - É ser livre numa prisão!

Todos nós vivemos numa prisão que nós mesmos construímos.

Porque nos impomos limites. Porque temos receio de os ultrapassar.

Acho que o próprio do Homem não é viver livre em liberdade de facto. É viver livre numa prisão!

Todos nós temos uma polícia política interna, cheia de proibições e de regras em relação as nós mesmos.”


Citação: António Lobo Antunes

Imagem: by me

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Festividades


 


Vejamos assim:

O Natal é uma festividade a três tempos: religiosidade, familiar e comercial.

Quanto à religiosidade, a celebração do nascimento de Jesus e a relação dos crentes com o seu deus, não creio que tenha que ser feita em conjunto. Se as preces têm que ser feitas no templo e em grupo, tanto as de alegria quanto as de pedidos, então não faz sentido as recomendações para que se reze diariamente, em casa, nas refeições, ao deitar e levantar…

Quanto à familiar, sejamos honestos: a maioria das reuniões de família resultam de hipocrisia, que há sempre quem passe todo o ano sem falar com os restantes, ficando reservados os sorrisos e os abraços para a consoada. E se as famílias só se sentem unidas e felizes aquando do Natal, que pobres vidas têm no resto do ano.

Resta a comercial. A obrigatoriedade de comprar prendinhas ou prendonas, os incentivos ao consumismo útil e inútil, as decorações mais ou menos estilizadas das ruas e montras… tudo isto em pouco se relaciona com a religiosidade ou família. Mero negócio, meras despesas, por vezes sacrifícios, com algo que pouco depois se esquece ou guarda numa gaveta esconsa.

Quando oiço governantes a alertar que este Natal vai ter que ser diferente, com limitações ao comércio e às reuniões… se calhar, para além de ser recomendável no que respeita à saúde pública, será também uma salutar mudança de hábitos sociais, tornando as relações mais honestas e menos conflituosas.


By me

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Saber em pó


 


Um dos problemas da actual sociedade de informação é ela mesma: a informação!

Quer seja através dos meios convencionais quer seja através das novas tecnologias, temos todos os dias mais informação, acesso a mais conhecimento. Em variedade e profundidade.

Mas esta é também a sociedade de consumo. Há que consumir mais e mais, que assim somos levados pelas campanhas de marketing e pela definição de status social.

E quando misturamos conhecimento com consumo o resultado da fórmula redunda em superficialidade. Não há tempo para aprofundar o conhecimento em tantas e tão várias áreas. E fica-se pela superfície.

 

Exemplificando, e forçando um pouco a nota:

Depois de se ler um artigo de 100 palavras sobre física nuclear, passa-se a outro sobre botânica, seguindo-se direito internacional, motores de combustão interna, culinária e termina-se a manhã com economia.

E, depois de os ler, fica-se com a sensação de “saber” sobre a matéria. Não nos damos ao trabalho de questionar as ideias lidas, que isso levaria a procurar outras leituras e autores, a aprofundar o sentido de cada palavra, frase ou conceito. E, em chegando ao fim da manhã, não teríamos passado, talvez, de meio do primeiro artigo. Com sorte!

E, quando mais tarde, em torno de uma imperial vespertina no café ou de uma bica na cantina, passaríamos por ignorantes. Saberíamos alguma coisa de um tema, mas os outros passar-nos-iam ao lado. Que vergonha social, não se saber nada de tantos assuntos!

 

Mas, tão ou mais grave que este consumismo de conhecimento, com fórmulas instantâneas de saber, é não só a falta de curiosidade de quem consome como a superficialidade dos meios onde se consome. São os artigos breves, os guias práticos, o saber para totós. Que entopem quiosques, livrarias, grandes superfícies e páginas web.

E esta super-abundância de conhecimento por atacado, de incentivo à superficialidade do saber, transforma-nos em idiotas doutores, que tudo sabemos sobre coisa nenhuma e que nada sabemos sobre tudo.

E como as fontes são semelhantes, tipificadas, minimalistas, quando se ventilam ideias, se trocam opiniões, os pressupostos são os mesmos: as mesmas origens, as mesmas superficialidades. E o resultado é nulo!

Os argumentos apresentados nas conversas são os mesmos, baseados nas opiniões de outrem, sem que os próprios tenham tido perguntas para as quais tenham procurado respostas. Em existindo discordâncias de opiniões, a profundidade com que os assuntos são sabidos é tão pequena, que pouco mais podem fazer os oponentes que recorrer a chavões e frases feitas, porque lidas no guia prático ou no suplemento dominical.

E, ao sair-se do café ou ao fechar-se o chat, fica-se satisfeito consigo mesmo porque se demonstrou saber e decepcionado com o vizinho ou colega, que não entendeu a frase linda e bem sonante que ouviu e que, prazenteiramente, lhe dissemos.

E, desta “Conversa da Treta”, que lucraram os interlocutores? Nada, para além do convívio e do alimento do ego.

 

Vem toda esta algaraviada a propósito de uma pergunta que me foi feita num blog: “Quantas pessoas pensas tu que lêem os teus textos até ao fim?”

Sei que são algumas. Não muitas, mas algumas.

Que, da mesma forma que procuro que aquilo que vou aprendendo seja algo mais que o conteúdo de um guia prático e, de preferência, com mais de 100 palavras, também tento que as minhas argumentações não se fiquem só pela rama.

Que frases feitas há-as nos dicionários humorísticos e conhecimento em pó suspeito que em supermercados e, certamente, em instituições de ensino por atacado.


By me