terça-feira, 4 de junho de 2024

Dramas




Eu estava encostado à banca, tentando perceber se entre toda aquela tralha imprestável haveria alguma coisa interessante. Estava já com umas tampas na mão e ainda não tinha falado de valores com o dono porque este estava de conversa com um casalinho bem jovem a meu lado.

Exprimiam-se eles numa mistura meio caótica de italiano, inglês e português e ela afirmava que aquela câmara era igualzinha à dela. Até a dificuldade em abria a tampa frontal era igual. Referia-se a uma câmara de rolo e de plástico, daquelas que não prestamos atenção naquelas bancas e que, mesmo na loja, não se evidenciam por demais. Não recordo a marca. Mas recordo ela ter dito que se ainda tivesse rolo e se revelassem, haveriam de lá estar algumas fotografias dela e das amigas.

Foi nesse momento que a minha atenção se concentrou no que acontecia. Que o dono da banca, que conheço há anos dali, abriu de súbito a câmara e retirou a película do seu interior. Sem mesmo se dar ao trabalho de a rebobinar, sacrificou aquele rolo ao sol daquele sábado de tarde expondo-o por completo. O que estaria já fotografado e o que ainda estaria virgem na cassete. Fosse o que fosse que estivesse latente estava perdido para todo o sempre.

Os olhos da mocinha estavam marejados de lágrimas, tentando saber quando haveria ele comprado aquilo e ele respondia que não sabia, umas semanas, talvez. Ficaram os três na mesma: o casalinho triste afastando-se da banca, o vendedor com a câmara no meio de muitas outras semelhantes que ali tinha.

Eu já tinha feito o meu negócio, mas o desalento daqueles dois condoeu-me e fui meter o nariz numa vida que não era a minha. Tentando consola-la e dizendo-lhe que era apenas uma câmara e barata e que não justificava toda aquela tristeza, pois era fácil de substituir.

Fiquei a saber de toda a história. Ambos italianos, estavam cá a estudar não sei já em que curso. E a casa que ela partilha com duas amigas tinha sido assaltada e a câmara fora uma das peças levadas. O grave mesmo fora o ipad também roubado, que continha todo o trabalho de um ano de curso cá. Irrecuperável, sem dúvida. E que mais que justificava as lágrimas mal contidas.

Deixei-os com duas recomendações: ter sempre anotado os números de série das peças e, caso tenha dúvidas sobre se o que se encontrou é ou não o seu, nunca devolver ao vendedor a peça. Aquele tirar do rolo daquela forma matou qualquer prova que ainda pudesse existir. Ou dúvidas.

O dono da banca, em os vendo afastar, veio tirar nabos da púcara sobre a conversa, afastando-se depois mais tranquilo, que nada do que fora dito colocava em risco a tranquilidade do seu negócio. Já a da consciência não sei, mas sendo habitual ali, também ela não teria sido beliscada.

A única lição a tirar deste episódio é a que sei desde há muito: na feira da ladra não se pergunta pela origem das peças em venda.


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domingo, 2 de junho de 2024

Bolhas




Estávamos na Páscoa de ’75. Os tempos eram confusos e a certeza de ter o futuro nas nossas mãos suplantava, de longe, os escolhos que íamos encontrando.
Este primeiro ano lectivo do pós-revolução foi confuso. Muito. Programas e conteúdos, métodos e abordagens, relações hierárquicas e sociais… acima de tudo o não haver ensino segregado por género. Ensino oficial com escolas mistas era também novidade.
Para todos, incluindo alunos e alunas, que não estávamos habituados a lidar no quotidiano com o sexo oposto. Não era fácil aquilo, e tivemos que descobrir, de súbito, como o encarar e viver.
No meio de tudo isto, o material escolar foi-se degradando. Por material escolar incluo mobiliário: mesas, cadeiras, carteiras… A dado passo, havia que dividir um assento por dois rabos, que não havia que chegasse para todos.
Pois uns quantos de nós, enquadrados por um continuo solícito, voluntarizarmo-nos e passámos metade das férias da Páscoa no sótão do liceu, reparando mesas e cadeiras.
Não imaginam, decerto, o quão rija é aquela madeira. Rija de desaparafusar. Rija de aparafusar. Rija de serrar. Rija de martelar. Rija de moldar.
No fim daquela semana havia muitas mais mesas, cadeiras e carteiras para distribuir pelas salas de aula do que pensávamos que fosse possível. E havia muitas mãos cheias de bolhas. Daquelas bem altas, cheias de líquido, que secávamos com uma linha atravessada nela com a ajuda de uma agulha.
Bolhas dolorosas e alegres.
Bolhas que provocavam queixumes entre gargalhadas e que se aguentavam firmes com o receber de novo no dia seguinte o cabo da chave de fendas ou do serrote.
Bolhas que nos enrijeceram as palmas das mãos e da alma, que aprendemos com elas que o futuro é nosso e que temos que o construir.
Bolhas que se aguentaram firmes quando batemos palmas ao distribuir o recuperado pelas salas de aula, tornando-as compostinhas e apetecíveis.
Bolhas que se têm reproduzido ao longo dos anos, sempre com a mesma alegria de saber que o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Bolhas de fazer um mundo melhor sabem a mel e fazem-nos cócegas na alma.


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sexta-feira, 31 de maio de 2024

Tubos




É verdade que sim: tenho dois conjuntos de tubos de extensão para Pentax K.

Meramente mecânicos, sem nenhuma conexão eletrónica, um deles foi comprado há 40 anos, o outro recebi-o de meu pai.

São úteis para quando o sistema de focagem de uma objectiva não permite que nos aproximemos mais. São os chamados “tubos macro”, em linguagem popular.

Quando me apetece, uso um tubo ou a conjugação de dois para, com um 400mm, fotografar flores ou insectos a uma distância confortável, ainda que recorrendo a um monopé pois o conjunto é instável.

Fica agora aqui um desafio para os mais conhecedores: qual destes conjuntos foi fabricado pela Pentax e qual o que foi fabricado pela marca independente Itorex?

Deixo a resposta dentro de dois dias.


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segunda-feira, 27 de maio de 2024

Dores




Vi no peitoril da janela um pequeno insecto. Oblongo, do tamanho de uma unha, preto e vermelho. Voador.

Achei que seria interessante fotografá-lo e comecei a dar tratos de imaginação sobre o como o fazer.

A primeira coisa foi prende-lo dentro de um copo invertido, para que não fugisse.

Mas os copos são redondos, pelo que não seria fácil uma imagem nítida e não deformada. Além do mais, a área do copo era demasiado grande para garantir que ficaria focado.

E tive uma ideia brilhante. Sacrifiquei uma caixa de filtro fotográfico e cortei o fundo. No seu lugar colei um pedaço de vidro que havia mandado fazer para uns efeitos com vaselina e negro de fumo.

Sendo a caixa baixa como sabemos, ficaria na zona de foco e seria apenas esperar que ficasse na área do enquadramento.

Preparei toda a parafernália (câmara, fole, objectiva, fundo, luz...) e, com todo o cuidado, transferi o bichinho para a caixa, colocando-a no local previsto.

Quando espreitei pelo visor foi a tempo de o ver contorcer-se até morrer.

Doeu-me! Doeu-me a alma até ao tutano. Não queria de forma alguma fazer mal ao pobre coitado, sendo que depois da fotografia seria para o soltar de novo. Não aceitava eu, tal como não aceito hoje, o fazer mal a um ser vivo para o meu prazer fotográfico. E vê-lo morrer assim foi atroz.

Levei algum tempo a perceber o que havia acontecido, entre o racional e o emocional. Mas dei com o motivo: a cola usada para segurar o vidro não estava completamente seca e os vapores haviam envenenado fatalmente o bichinho.

Não me recordo do que fiz da caixa mortal. Creio que a joguei fora de raiva.

Já o fole foi este mesmo, que o havia comprado pouco tempo antes. O conjunto completo: fole, copiador de negativos ou slides, suportes laterais para película, régua para calcular a extensão, cabo disparador duplo...

Tenho o conjunto desde então, usando-o quando necessário e conservando-o tão bem quanto posso. Mais de quarenta anos passados sobre o episódio está quase como novo.

O único senão que tem, nos dias de hoje, é não aceitar a Pentax K1 directamente, que a câmara é uns milímetros grande demais. Mas um pequeno anel de extensão atrás resolve a situação.

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptal2 90mm 1:2,5


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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Conceitos sociais




Para quem tinha dúvidas sobre a equidade social que o actual governo preconiza para o país, eis uma amostra:

Foi proposto um suplemento de missão para os agentes da PSP e os militares da GNR, para ser equiparado com o que o governo anterior havia instituído para com os elementos da PJ.

Acontece que esse suplemento não é igual para todos. É indexado aos salários, o que significa que salários mais elevados maiores os subsídios.

Isto já de si é mau, mas não se fica por aqui.

A percentagem sobre o salário não é igual para todos. Por outras palavras, os mais graduados têm uma percentagem maior que os agentes ou militares de base, aqueles que vemos todos os dias na rua. 12%, 9% e 7% de subsídio.

Generalizando a questão a todo o país, este governo e os partidos que o suportam defendem maiores fossos sociais, privilegiando notoriamente os mais ricos ou abastados.

Ao mesmo tempo, vemos o governo a defender que a questão da habitação não se resolve dentro da cidade mas antes criando condições para que os transportes públicos sejam mais eficazes no levar e trazer quem não pode viver dentro possa ir e vir dos subúrbios para a cidade. Deixando-a disponível para as classe abastadas.

Em breve veremos esta estratégia aplicada também à saúde, à educação, ao fisco, à justiça...

Já não é uma questão de crise ou de mercado: é mesmo o conceito de política de sociedade, em que somos todos iguais mas uns mais iguais que outros.


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segunda-feira, 29 de abril de 2024

O cravo e o cardo




Numa empresa que conheci por dentro, em tempos era assim:

Quando era necessário fazer trabalhos longe da área de residência pagavam-se ajudas de custo. Para refeições e alojamento.

Acontece que estas ajudas de custo eram indexadas ao salário. O que resultava que os de mais baixo salário recebiam menos, por vezes bem menos, que os de salário intermédio. Para já não falar nos de topo.

Por outras palavras: se deslocados para longe de casa, havia quem dormisse em hoteis de cinco estrelas e quem fosse procurar pensões duvidosas e partilhasse o quarto com mais três ou quatro, que não dava para mais. O mesmo sucedendo nas refeições.

Mesmo após a revolução e o primeiro 1º de Maio, levou alguns anos para que se corrigisse esta injustiça. Mesmo eu, que entrei na empresa alguns anos depois, vivi isso.

Foram os movimentos sindicais e a força dos trabalhadores unidos que acabaram com algumas destas mordomias de classe, nivelando valores e pagamentos de despesas forçadas.

Enquanto houver quem coma bife e quem coma meia salsicha, enquanto houver quem durma em lençóis de seda e quem durma em serapilheira, as revoluções e os primeiros de maio não podem ser apenas desfiles e comemorações.

Pentax K7, Sigma 70-300


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domingo, 28 de abril de 2024

Orgulho




Cada fotografia tem uma história. Com várias vertentes, algumas bem visíveis, outras ocultas. Porque fora da imagem, porque fora do tempo da imagem. Tal como há a história do fotógrafo e a história daquilo que usou.

Esta Pentax Spotmatic SP tem história.

Pertenceu ela a um bom amigo, já falecido. Nunca o conheci a usá-la ou a usar o que quer fosse Pentax. Sempre foi Canon. Nunca falámos sobre isso, mas cada um usa o que mais lhe convém, importando acima de tudo o resultado.

Veio esta câmara para as minhas mãos porque a sua esposa, algum tempo depois de ele ter falecido, em arrumando coisas antigas dele a encontrou. E, sabendo-me utilizador desta marca, não teve dúvidas em ma entregar. Suponho que sabia que ficaria em boas mãos e cuidada, o que é verdade.

É uma câmara de que tenho orgulho em possuir.

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5


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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Topa-a-tudo




Se convidarem um canalizador para uma festa, pedem-lhe que leve uma chave francesa? E se for um escultor, que leve um cinzel? No caso de um cirurgião, deve levar o bisturi? Então porque é que se for um fotógrafo lhe pedem que leve a câmara?

Foi o que me aconteceu há uns bons anos!

Tratava-se de um jantar de natal organizado por colegas de trabalho, num espaço amplo e que contaria com muita gente e convidaram-me para estar presente. Mas que, de caminho, levasse a a câmara, já que queriam ter umas fotografias dos convivas, tanto aquando da entrada como depois, durante o repasto.

Fiquei furioso com a situação, que mais parecia uma contratação à borla que um convite. E fiquei incomodado porque nesses eventos juntam-se sempre pessoas que passam um ano inteiro a não se falarem ou ainda pior e, nestes encontros, sobrevém a hipocrisia dos sorrisos de circunstância e do convívio a contra-gosto.

Não me comprometi no momento, mas que iria pensar. É que se o evento me incomodava e o convite me insultava, enquanto fotógrafo era um desafio e sempre poderia fazer uma fotografias “especiais” de algumas pessoas de quem não gostava.

Além disso, eu não tinha uma objectiva que cobrisse todas a situações, desde a individualização a alguma distância a grupos bem perto. A alternativa seria levar duas câmaras, cada uma para o seu trabalho. Não me apetecia ter que ir carregado.

Acabei por encontrar esta objectiva que comprei. Uma Tamron Asferical 18-200mm 1:3,5-6,3. Uma espécie de canivete suisso fotográfico, capaz de fazer de tudo um pouco mas não sendo brilhante em nada. Suficientemente pequena e leve para levarmos para férias sem mais nenhuma outra, ou para a termos no saco do dia-a-dia, só para o caso de nos apetecer fazer uma fotografia, mas não sendo suficientemente luminosa para situações mais complicadas nem permitindo grandes jogos de profundidade de campo, se considerarmos até que só cobre o APS-C.

Apesar de tudo isso, e porque por vezes sou preguiçoso, acabou por ser uma objectiva que muito usei, em casa e fora dela, casualmente ou de propósito.

Posso mesmo dizer que, apesar de não recomendar objectivas zoom em geral e com esta amplitude em particular a aprendizes de fotografia, esta foi das que mais usei nos últimos anos.

O que acaba por ser divertido é que o tal jantar de natal para o qual fui “convidado” acabou por não acontecer.

Pentax K1 mkII, Tamron SP Adaptall2 90mm 1:2,5


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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Celebrações




A cada um a sua sensibilidade e memórias.

Do que recordo daquilo que hoje se assinala, e do que dela se seguiu, são dois factores importantes.

Por um lado, aquilo que todos referem: a liberdade, o fim da guerra colonial e da sociedade castrante e castrada com polícia e censura.

Por outro, o termos uma certeza visceral de que o futuro estava nas nossas mãos. Decidirmos e fazermos, sem esperarmos que uma qualquer organização ou burocracia decidisse ou fizesse.

Na escola (eu era adolescente), na rua, no trabalho, a democracia era directa e imediata. E se havia que fazer, o que quer que fosse, estávamos lá para isso, mesmo que a duras penas, com a alegria de sabermos que o que saída das nossas mãos era para um bem colectivo e generalizado.

Este espírito feneceu. Hoje celebramos a liberdade, tendo-a por certa que o não é. Celebramos a democracia, mas a mais fácil: a representativa.

Atribuímos a alguns de elite as tarefas e responsabilidades de decidirem sobre o nosso futuro, ficando conformados com os resultados mesmo que discordemos ou nos incomodem. E saímos do nosso conforto apenas para descer a avenida celebrando o que deve ser celebrado mas nunca para construir o que deve ser construído.

Deixamos ter o nosso futuro a sair das nossas mãos, seguindo os ditâmes de alguns, ainda que escolhidos. E isso não é liberdade plena!

Pentax K1 mkII, Tamron 18-200


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quarta-feira, 24 de abril de 2024

OK, tudo fixe




Algumas pessoas vivem num mundo muito seu, tentando sobreviver na fina linha que o separa do nosso normal.

E nós, na nossa intolerância ao que sai do nosso normal, chamamos-lhes loucos ou outro piropo equivalente.

Quando viu a fotografia no ecrã da câmara, abriu bem os olhos e comentou sorrindo francamente: “Olha! Este sou eu.”

Obrigado pelo retrato, srº Lima.

Pentx Kx, Pentax DAL 18-55mm


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