segunda-feira, 31 de maio de 2021

Auxiliares de memória




Leio um artigo sobre fotografia de “eventos”. Aniversários, casamentos, etc.

Começa ele com: “Festa é sinónimo de alegria, descontracção, união, lindas decorações e muitos sorrisos espontâneos, não é mesmo? Mas o que seriam esses momentos se eles não fossem eternizados? Parte fundamental de qualquer evento, a fotografia só tem ganho status com o passar dos anos. É ela a responsável por trazer tudo à tona novamente para ser curtido e compartilhado.”


Eu sou fotógrafo. Pelo menos gosto de me pensar assim. Não ganho a vida com ela, mas encho a alma com ela.

Mas uma coisa eu garanto: aquilo que não fica na minha memória do que vivo a cada instante não se torna mais importante por ser fotografado.

Quando precisamos de fazer registo material das vivências para que as não esqueçamos, isso significa que o que vivemos tem pouca importância. Por si mesma ou porque outros acontecimentos vieram relativizar os significados e/ou importâncias.

Indo um pouco mais longe, a futilidade dos dias que correm, o termos que dar importância pública a cada acontecimento ou correndo o risco de sermos menorizados pelos que connosco o viveram, torna-nos ávidos coleccionadores de memórias fosfóricas, relegando bem para segundo plano a capacidade de recordar mais tarde o que não foi registado. A nossa vida, com essa avidez da fotografia de cada instante, acaba por ficar resumida ao que foi fotografado, ao fazermo-nos fotografar, ao que vemos que outros fotografaram. E aquele sorriso lindo mas fugaz, aquele paladar subtil mas inebriante, aquele som que se ergueu no meio da cacofonia ambiente… tudo isso perde importância. Por muito belo que seja. Confiamos a nossa memória ao auxiliar visual do instantâneo, ignorando os instantes significativos que vivemos.


Repito que quem escreve estas linhas faz da fotografia um dos alimentos da alma.


By me

domingo, 30 de maio de 2021

Just for the fun

 

 

Ao longo dos anos tive diversas câmaras fotográficas. Confesso que já lhes perdi a conta, ainda que, se fizer um esforço de memória, conseguirei saber quantas com rigor.

Tive-as de quase todos os formatos, de 18x24 a 110, de dispendiosas e complexas a simples e baratinhas.

Cada uma delas cumpriu a sua função, satisfazendo os motivos para que foram compradas. Ainda que algumas me tenham sido oferecidas, por este ou aquele motivo. Cheguei mesmo ao ponto de construir uma, que se vê na imagem. Tal como construi uma objectiva.

Algumas já não possuo. Ou foram-se, vendidas nalgum momento de aperto económico, ou foram negociadas por troca de melhores, ou ainda oferecidas a quem não possuía e necessitava. Outras estão apenas guardadas porque, por este ou aquele motivo, deixaram de funcionar. Avarias ou falta de consumíveis, as mais das vezes. Recordo mesmo uma Polaroid que se desfez porque lhe caiu em cima um pesado martelo, num triste acidente.

De cada uma delas tenho memória de momentos, actos fotográficos. E com cada uma delas, quando lhes pego de novo, as minhas mãos sabem fazer aquilo que o cérebro pensava ter esquecido.

Mas há coisas que aprendi com cada uma e com todas:

Por um lado, não é a posse ou o uso desta ou daquela que me transforma em melhor ou pior fotógrafo. Eventualmente poderei dizer que com umas não poderei fazer fotografias que faço com outras.

Por outro lado, todas elas provocaram momentos únicos, irrepetíveis. E prazer. Ou satisfação. A ambos os lados da objectiva. Sem importar a sua complexidade ou preço. Ou mesmo fabricante.

Volta e meia pego numa das que estão guardadas e dou-lhe uso. Película ou electrónica. Isto porque o carinho e intimidade que tenho por cada uma faz com que não as queira “mortas” numa qualquer caixa ou estojo. Dar-lhes uso é dar-lhes vida.

Mas também para me recordar daquilo que não esqueço em momento algum: A câmara fotográfica é apenas aquilo que medeia entre aquilo que vejo e aquilo que mostro.

 

Na imagem, uma fotografia não “programada”, feita no decorrer do meu projecto “À-Lá-Minuta”, num jardim de Lisboa.


By me

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Fotografias aluadas


 


Vejamos as coisas desta forma:

A Lua cheia, brilhante, num céu límpido, é um imã para qualquer fotógrafo, amador, profissional ou nem uma coisa nem outra.

É um apelo ao inalcançável, ao romantismo juvenil ou nem por isso, é aquele fenómeno cíclico mas só observável em condições especiais. E é, para fotógrafos, a demonstração das suas capacidades técnicas e da excelência do seu equipamento. Etc. etc., etc.

Mas convenhamos: uma Lua cheia e brilhante é tão observável no cimo da cordilheira dos Andes como no deserto do Gobi. Num bote no meio de um rio ou ao volante de um carro no centro de uma grande urbe. À saída de um cosmopolita centro comercial ou sentado num solitário banco de jardim junto com quem se ama.

E é igualmente fotografável em qualquer destas ou de outras situações.

Aquilo que faz com que a observação de uma bela Lua cheia e brilhante seja diferente é, mais que ela mesma, o espírito ou estado de alma de quem a observa. E o local de onde se observa, com toda a sua envolvência.

Uma fotografia de uma Lua cheia e brilhante a encher o enquadramento pode ser efectuada de qualquer local (ou quase), não se diferenciando uma de outra.

Agora se essa mesma Lua cheia e brilhante for mostrada ou fotografada num qualquer contexto, paisagens distantes ou primeiros planos, monumentos icónicos naturais ou humanos, com alguém especial, mesmo que só uma fracção desse alguém… nesse caso não teremos uma Lua cheia e brilhante mas “aquela” Lua cheia e brilhante, naquela noite especial e naquele local de eleição, fazendo dessa fotografia de uma Lua cheia e brilhante “aquela” fotografia.

 

As fotografias feitas fora de ambientes controlados (estúdio) não são repetíveis. É o momento decisivo, como explicou o mestre. Podem ser copiadas ad nauseam, mas o acto fotográfico não se repete. Tal como as emoções tidas aquando do acto fotográfico.

Sugiro que ao fotografar uma Lua cheia e brilhante se procure mostrar porque é que essa fotografia é “aquela” fotografia e não um documento técnico de um astrónomo.

 

By me

domingo, 23 de maio de 2021

Quando?




 É verdade que sim, que gosto de falar de fotografia.

A questão que se põe é:

Quando é que aprendo a falar apenas daquilo que sei?


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sábado, 22 de maio de 2021

Deus, cor e pária


 


Uns dias antes tinha estado mesmo na fossa, mais por baixo que barriga de jacaré. Por isso, quando me abordaram no comboio, não só não os afastei como é meu hábito como ainda caí na patetice de lhes dar a minha morada. Assim, quando naquela tarde os dois “Elder’s” me bateram à porta, tive que a franquear e conversar com eles. Afinal o convite tinha sido meu…

Tenho que admitir que possuo alguma admiração por aqueles que, tendo uma fé, dão o seu tempo e o seu esforço por ela, na tentativa de “salvar almas”, seja lá isso o que for.

E como sou curioso do género humano, tentei tirar partido da situação, aprendendo com eles o possível, apesar da dificuldade do fazer a ponte entre um crente e um agnóstico.

As suas técnicas de catequização eram bastante primárias, para não ir mais longe. Faziam acompanhar os seus discursos bem ensaiados com ilustrações em tons aguarela, bem semelhantes àqueles que eu não conheci de perto nas aulas de moral e religião da escola. Não só a coloração, como o próprio traço eram de uma ingenuidade própria para cativar crianças… de outras épocas. Mas quem sou eu para criticar os métodos (desde que legítimos) de missionários?

Desta conversa retive, e retenho, três aspectos principais:

Em primeiro lugar, a maioria das minhas perguntas, materialistas e racionais, não podiam ser ali respondidas. A todas ou quase era-me dito que as respostas só as poderia obter em sessões posteriores, quando os rudimentos estivessem aprendidos;

Em segundo lugar, deveríamos, eles e eu, ajoelharmo-nos para rezar, mostrando assim a nossa humilhação perante o criador. Como não sou crente, fiz algumas fintas e escapei-me desta. Entre outras coisas, porque seria uma hipocrisia da minha parte;

Mas não me escapei de ouvir – e nunca mais esquecer – um dos seus dogmas sobre a criação do mundo e do Homem.

De acordo com eles, o criador terá povoado o planeta em dois locais simultaneamente: o Médio Oriente e o continente Norte Americano. Neste, o género humano vivia no paraíso, porque de acordo com as leis divinas. Mas, a partir de dada altura, alguns desviaram-se delas, passando a viver na luxúria, no deboche, na violência.

E então, de castigo, o criador escureceu-lhes a pele!

Quando ouvi isto, ainda ponderei a situação, mas achei que o preço a pagar pelas vidraças quebradas era demasiadamente alto comparado com a satisfação que sentiria vê-los sair pela janela do meu 7º andar.

Engoli em seco e tentei acabar a conversa rapidamente, procurando mostrar alguma urbanidade para com as visitas.

À saída, ainda tentaram dar-me uns papéis com excertos do seu livro sagrado, para que o pudesse conhecer melhor. Perante a minha recusa em aceitar, argumentando que não seria por excertos que poderia conhecer a fundo uma religião, entreolharam-se e acabaram por me ofereceram o exemplar que possuíam.

Ainda lhe dei uma olhada, mas nunca fui mais longe que isso.

Queima-me os dedos e a retina ler um livro que tão primariamente defende o racismo e a segregação racial.

Não! Não na minha casa nem na minha convivência! E, se pudesse, não na convivência dos demais seres humanos!

Porque estes que ali estiveram, são infra humanos!

 Tem esta estória, talvez, trinta anos. E, volta e meia, conto-a para conhecimento geral.

Mas, ao relê-la e recordar os detalhes do que então vivi e aqui não contei, não posso deixar de fazer um paralelismo com o que vai acontecendo por cá, hoje em dia.

É que sairiam pela janela, desta feita um terceiro andar, aqueles que me tentassem convencer para efeitos eleitorais que os migrantes que por cá vivem são úteis para trabalhar nas obras, nos campos e na limpeza de casas e ruas, mas que a sua maioria estaria bem era atrás das grades ou recambiados lá p’ra terra deles. Sejam eles loirinhos de leste, amarelinhos do sol-nascente, escurinhos d’áfrica ou meias-tintas dos brazis. Porque alguns há por aí que vão defendendo, mais ou menos francamente, que os nossos males actuais advêm dessa “cambada” que estão aqui a subverter a lusitaniedade.

Tal como usariam o mesmo caminho de saída aqueles outros que, a pretexto de tentarem obter votos, me viessem dizer que merecem melhores cuidados de saúde, de educação, de justiça, melhores tectos, alimentação e vestuário aqueles que nasceram em condomínios fechados que os que nasceram em habitações sociais.

 É por causa dessas e de outras que passei a ser muito selecto naqueles que franqueiam a minha porta. E que, como reforço de precaução, passei a ter sempre uma janela aberta: é que não quero ter despesas com o vidraceiro!

 By me

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Aconteceu em 2009

 



Estava eu, descansadinho da Silva com o meu artefacto no Jardim da Estrela, quando os vejo aproximar. Ela com vinte e poucos e com o microfone na mão, ele na casa dos trintas e com a câmara na mão.

Fui olhando com atenção, tentando, em vão, perceber para que empresa ou estação trabalhariam. Acabei por o saber, após lhes perguntar: Um canal de TV on-line, recente, com pouco mais de um mês de existência. E aproveitaram eles para me pedir se poderia responder as umas perguntas sobre os jardins de Lisboa. Claro!

Aliás, achei tal graça à situação, que acabei por puxar dos galões e falar-lhes do meu próprio ofício. De mestre para mestre, pensava eu, que a forma como manusearam as ferramentas me demonstrou bem o contrário. Mas, sendo que ninguém nasce ensinado, acabei, por no final, ainda lhes dar uma ou duas dicas que, penso eu, lhes terá facilitado e melhorado a função.

Em chegando a casa lá fui ver o tal canal on-line. Não tanto por mim, mas antes para perceber o que vai acontecendo neste suporte em língua portuguesa. E foi aí que fiquei incomodado. Muito incomodado mesmo!

Trata-se de um canal temático. Mas o seu tema era o apoio à candidatura à câmara de Lisboa de Pedro Santana Lopes. E nada me disseram sobre tal questão, quando me abordaram!

Não bastava a recente bronca com o PS e o “Magalhães”, há mais quem o faça e, pelo que vi na web, até nem será novidade: falar com os cidadãos e não lhes dizer que as suas palavras serão usadas em prol deste ou daquele projecto político. Concorde-se ou não com ele.

A grande vantagem da Internet é, sendo quase completamente acrata, não possuir limites aos seus conteúdos e utilizações. O problema são mesmo os abusos, neste e noutros sentidos. E um canal de vídeo on-line que só discretamente se identifica com uma campanha política não é, em meu entender, uma forma lisa, clara e honesta de o fazer. Eu diria que é bem o seu oposto.

Não creio que a CNE (Comissão Nacional de Eleições) ou a ERC (Entidade Reguladora da Comunicação) concordem com estes métodos sub-reptícios e nada transparentes. Estou mesmo em crer que este canal on-line e a forma como recolhe depoimentos fere alguma ou algumas das demasiadas regras, normas ou leis que existem em Portugal.

Não sou munícipe de Lisboa. Mas, se o fosse trataria de dar voz bem alta a este caso junto dos eleitores, para que saibam os métodos por um dos candidatos empregue!

 

Epílogo:

Não sou simpatizante do partido de Santana Lopes; não sou simpatizante de Santana Lopes; não sou eleitor em Lisboa. Assim, contactei a Comissão Nacional de Eleições, a então ERC e a Comissão para a Carteira de Jornalista.

Uma delas encaminhou o assunto para a Comissão Nacional de Proecção de Dados, que me contactou, pediu mais elementos e encaminhou para o DCIAP.

Este fez-me comparecer para prestar depoimento e assinar declarações, numa esquadra de polícia.

Passados uns bons seis meses, recebi uma carta com o despacho de uma juíza: Tinham sido ouvidos os intervenientes (a empresa de audiovisual, o mandatário para a campanha e o Santana Lopes) e haviam chegado à conclusão que, apesar de nada ético, não havia sido cometido nenhuma ilegalidade e o processo havia sido arquivado.

 

Fica o aviso para os munícipes da Figueira da Foz.


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quinta-feira, 20 de maio de 2021

O cálice




Por vezes não tenho inspiração matinal e, para manter o fluxo de publicações diário, socorro-me de material já divulgado. É este o caso, com uma dezena de anos, texto e imagem.

O cálice
Quando o vi na montra não resisti e entrei. Haveria de saber o preço e, sendo comportável, viria comigo. E, de caminho, a taça prateada que estava noutro ponto da montra, que talvez não com a mesma origem ou época, mas bem que poderia fazer “panelinha” com o cálice numa das minhas brincadeiras.
Mas o objectivo principal era o desafio: um cálice como este, deste material bem reflector e multi-curvilíneo é um desafio fotográfico dos maiores. Conseguir fotografá-lo, mostrando a matéria de que é feito, as formas que possui e não ter formas ou objectos distractivos reflectidos na sua superfície.
Um desafio dos grandes.
Que tratei de tentar solucionar mesmo na rua, em condições em nada controladas.
Uma das técnicas, parece-me, é a questão da luz, da quantidade e qualidade de luz. Ter a fonte de luz principal do lado de lá (o tal lado de que gosto), de forma a que não se reflicta e seja visível na superfície do nosso lado. Ao mesmo tempo, tentar que câmara e fotógrafo estejam pouco iluminados, na sombra se possível, para que o seu reflexo, existente no metal, seja de pouca monta. E, ao mesmo tempo, criar um fundo luminoso e atractivo que, ao captar a atenção, distraia o olhar do que possa estar reflectido do lado de cá.
Tudo isto é teórico. E funciona na prática. Convém é ter meia dúzia de acessórios que ajudem a controlar a luz, a sombrear o fotógrafo, a suportar no local certo o cálice… não tinha nada disso comigo nessa tarde, na rua, e isto foi o melhor que consegui fazer então e de improviso.
O que acaba por ser curioso é nesse mesmo dia, em três locais distintos (na loja onde o comprei, numa loja de artigos infantis didácticos e num novo negócio agora surgido na sede do meu concelho e sobre fotografia) acabei por falar de fundos, da sua importância para isolar o assunto principal, de como variando a quantidade de fundo para um mesmo tamanho de assunto principal contam histórias diferentes, de iluminar de lá para cá, nem que seja com a chamada “luz de recorte” para fazer sobressair do fundo e dar volume…
É curioso como a esmagadora maioria das pessoas, mesmo alguns profissionais, se esquecem que o tratamento do primeiro plano é tão importante quando o do fundo ou segundo plano.
Por vezes, é essa diferença de tratamento que transforma uma fotografia numa photographia.
E o meu cálice ainda precisa de ser tratado.

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terça-feira, 18 de maio de 2021

D'outros tempos


 


Dos tempos em que os cenários de um objecto eram fotografias num ecrã (frontal ou retroprojectada) e em que nem sequer sonhávamos o que seria photoshop ou digital.

Creio que hoje nem se imagina o que era controlar luz para que o fundo não influísse no assunto ou a luz deste alterasse o fundo.

Ou de ter imagens que, projectadas, possuam um contraste na tela compatível com a latitude de exposição da película que, como se sabe, nada tem de semelhante com a do olho humano.

A experiência que eu tinha aquando desta e de outras imagens deste projecto para um menú de um bar de cocktails era menos que quase nada. Tal como os meios técnicos disponíveis.

Mas o entusiasmo e a vontade de entrar num mundo altamente competitivo fizeram-me aprender imenso.


By me

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Nem há como explicar




Teria eu uns 18 ou 19 anos e soube por um programa de televisão de um coleccionador de miniaturas de automóveis. Uma grande colecção e, ao que constava, com grande rigor nos detalhes.

Sendo eu também um miniaturista, construindo os meus modelos a partir do quase nada e baseado em fotografias, consegui o seu contacto e fui a sua casa para fotografar alguns modelos e poder inclui-los nos dioramas que fazia.

Conversa vai, conversa vem, e entre admirar e registar o que tinha acabou por me confessar, mostrando-me um velho e pesado revolver (e cito de memória):

“Se eu tivesse menos 40 anos, carregava isto e ia para Israel, defender a terra prometida daqueles árabes selvagens que têm lá vivido. Sou velho demais, mas mandei os meus filhos. Já lá perdi um.”

Isto explica muita coisa, penso eu.


By me 

Finalidades




“O monumento tem por finalidade fazer reviver no presente um passado engolido pelo tempo.”, leio no livro “A alegoria do património”, de Françoise Choay.
Em contrapartida, a photographia tem por finalidade perpetuar no futuro a efemeridade do presente, digo-o eu.
Coisas!

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domingo, 16 de maio de 2021

Embuste


 


Nem sempre as fotografias são o que parecem!

Estes dois copos foram comprados num dia de Abril, meio de urgência, para com eles fazer uma fotografia de celebração. Algum tempo depois voltei a fotografá-los. E também para uma celebração.

Da primeira vez o cenário foi natural, o céu, fotografado de baixo para cima, e sob o olhar curioso e divertido de quem estava naquela varanda de um centro comercial, em Lisboa.

Desta feita foi executada com meios um pouco mais controlados, como se constata na imagem.

Em comum entre esta imagem feita em casa e a feita nessa tarde de Abril existem os copos. Que os tenho guardados para uma qualquer outra celebração. Mesmo, ou por isso mesmo, sendo de plástico e comprados numa loja baratinha. Tal como o conteúdo dos copos, que é o que de mais barato e fácil de encontrar que se pareça com o que é suposto usar-se nestas circunstâncias. No lugar de espumante, ginger alle.

Acrescente-se que, se na versão original aqui não mostrada, foi complicado segurar os dois copos na posição desejada com uma mão e fotografar com a outra, desta feita o posicionar dos copos foi feito com o recurso a objectos bem mais que comuns e úteis, existentes em qualquer casa e, garantidamente, em qualquer saco ou mala fotográfica que eu use: molas de roupa. Desmontadas, são óptimas cunhas para posicionar, ajustar ou prender objectos ou portas.

Repare-se que a Fotografia nada tem de real ou de cópia da realidade. Lemos nela aquilo que queremos ou que estamos dispostos a ler.


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sábado, 15 de maio de 2021

O telemóvel




Este foi o primeiro telemóvel que possuí que permitia fazer fotografias.

A sua compra aconteceu por dois motivos:

- Por um lado porque o anterior tinha já a bateria a “entregar a alma ao criador”. Apesar da a tratar tão bem e tão de acordo com o fabricante quanto pude, a verdade é que baterias e eternidade não pertencem ao mesmo glossário. Haveria que substituir apenas a bateria ou optar por outro. Acabei por optar por outro e pelo segundo motivo.

- Apetecia-me saber e entender o conceito e a prática de fotografar com tal tipo de dispositivo. O tipo de abordagem mental, a oportunidade, a total portatibilidade, o resultado técnico e as opções estéticas. E se a fotografia é algo que me interessa, haveria que experimentar.

Depois de ter analisado na web os modelos disponíveis, nas suas características técnicas e preços, acabei por querer ouvir as opiniões de vendedores que, mesmo que não usassem semelhante coisa, sempre teriam alguns comentários de clientes e poderiam ajudar-me.

Fiz então uma brincadeira: Entrando nas lojinhas de telemóveis, perguntava a quem estava atrás do balcão: “Procuro uma câmara fotográfica que também faça chamadas telefónicas. O que me aconselha?” Em regra, ficavam a olhar para mim como se me tivesse nascido um apêndice na testa.

Acontece que eu não estava errado. Era mesmo isso que eu procurava e explicava-o a quem estava a vender: eu queria fotografar e, acessoriamente, telefonar.

Acabei por me decidir por este, então já não o último grito da tecnologia mas que satisfazia os meus requisitos: qualidade de imagem, descrição no uso, durabilidade da bateria, volume, capacidade de armazenamento.

Tenho-o guardado, tal como os acessórios e periféricos respectivos. Acabou por ser substituído por um smartphone quando a bateria começou a dar sinais de moribunda. Sem nunca ter avariado ou deixado de fazer o que dele eu queria.

O que acaba por ter graça no meio de tudo isto é que a minha pergunta nas lojas, estranha então, estava apenas adiantada tecnologicamente.

Hoje, os smartphones e demais aparelhos equivalentes são publicitados e vendidos pelas suas capacidades de fotografar e, muito raramente, pela sua capacidade de fazer comunicações de voz. Indo mais longe, lojas há que dividem o seu espaço nos expositores entre câmaras fotográficas e smartphones, como se fossem equivalentes.

Não são!

Pese embora ambos possam fazer fotografias, todo o processo mental para as fazer é, regra geral, bem diferente. Nem melhor nem pior, apenas bem diferente.

A disciplina e o “trabalho” ao usar uma câmara (DSLR, mirrorless ou compacta e de bolso) é muito maior que com um gadget destes, levando a que o resultado seja mais pensado. Não forçosamente melhor, mas mais pensado.

A isto, junte-se a importância atribuída às fotografias feitas com um e com outro suporte.

Com uma câmara, o simples facto de a transportarmos, de a retirarmos do saco, tirarmos a tampa, ajustarmos os parâmetros, etc., faz com que seja algo que só fazemos quando achamos que o registo é algo de medianamente importante. Ou bem mais que isso.

Já uma câmara num telemóvel, porque sempre acessível, porque pouco ou nada exigente de calibrar ou afinar, porque leve e quase esquecida no bolso ou bolsa, é usada a torto e a direito, em selfies, refeições, situações menos próprias ou indiscretas de terceiros ou naquelas sempre iguais fotografias de grupo nos passeios e momentos gastronómicos, sempre numa perspectiva subida e à distância de um braço do primeiro fotografado ou, se for um aficionado, usando um “pau de selfie”. Imagens rápidas, para consumo rápido e olvido rápido. E, muito frequentemente, rapidamente apagadas dos arquivos, assim que são divulgadas numa qualquer rede social.

Não significa isto que fotografar com um aparelho multi-usos seja um erro. Nem pouco mais ou menos! Usar um smartphone, uma câmara DSLR, estonopeica, grande formato, chapa de vidro ou que quer que seja, está sempre certo. Desde que saibamos disso tirar partido, conhecendo-lhes as capacidades e as limitações, bem como o uso possível do resultado. E a satisfação que nos transmite o uso e o resultado.

Ou que saibamos ou queiramos transpor de um sistema para o outro as técnicas e processos mentais possíveis.

Por mim, admito-o, o smartphone faz parte integrante dos objectos que transporto sempre comigo, tal como carteira de documentos, caneta ou cigarros e isqueiro. E uso-o para fotografar nas duas vertentes: bloco de apontamentos do quotidiano (ou registo rápido de algo para não esquecer) ou como câmara fotográfica, no conceito geral do termo, para fazer fotografias que tenho por mais cuidadas ou pensadas.

Os resultados? Bem, dependem muito mais do olho e do cérebro que actua que da ferramenta que se usa.


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quinta-feira, 13 de maio de 2021

As férias do fotógrafo




Depois de ler um pequeno ensaio sobre o conceito de férias (em casa, na terra, em terras distantes, o descanso e o aburguesamento do descanso) fiquei com uma dúvida terrível:

Pode um fotógrafo, ou qualquer outra pessoa que tenha uma actividade criativa, estar de férias? Realmente de férias?

Um engenheiro, um amanuense, um talhante, um advogado, um mecânico, podem, em estando de férias, deixar para trás toda a sua actividade profissional, guardando numa gaveta da mente os problemas. E, estando de férias, não ser estimulado pelo que vê ou ouve para algo com isso relacionado.

Não creio que seja possível a um escritor ignorar os comportamentos humanos, guardando pequenos retalhos para os seus romances. Ou um compositor não pode não ouvir as melodias ou ritmos do marulhar das ondas ou do chilrear dos pássaros. Mesmo em tratando-se de uma tempestade ou do feio grasnar de uma gaivota.

Por seu lado o fotógrafo, e aqui falo com conhecimento de causa, mesmo que não tenha a câmara consigo, mesmo que não esteja a olhar para fotografias on-line, impressas no prelo ou expostas numa parede, não consegue deixar de apreciar uma perspectiva, um jogo de luz, um contraste de cores ou um momento único da fauna ou flora, humanos incluídos.

Quantos de nós, que fazemos da fotografia o alimento do estômago ou da alma, não comentámos ou pensámos “Que pena não ter aqui uma câmara”? Ou, mais utopicamente, quantos de nós não desejámos já que os nossos olhos fossem câmaras?

Não creio que um fotógrafo possa em algum momento estar realmente de férias.

O mais que pode acontecer, e uma vez mais falo com conhecimento de causa, é dizermos que estamos no defeso. Ou seja, que não materializamos o que vemos ou imaginamos que vemos, mas tão só estamos a guardar pistas ou quejando para trabalhos futuros.

Um fotógrafo que o seja realmente, artista ou artífice, nunca poderá fazer um real manguito ao que faz e ao que o cerca.


By me

(A)normal


 


Uma ocasião, há já muitos anos, fiz uma brincadeira com um compincha de fotografias:

Escolhemos uma zona delimitada na cidade, poucas vielas de uma “vila operária” e combinámos fotografá-la em conjunto. Duas condicionantes: teríamos apenas uma hora e haveria que usar todo o rolo de 36 exposições. Quando reveladas, compararíamos os trabalhos.

Não havia nenhuma competição. A ideia foi compararmos abordagens e visões, nas suas diversas vertentes: luz, perspectiva, momento…

Foi tão divertida a experiência, tanto na tomada de vista como na comparação, que repetimos o exercício noutras ocasiões e noutros locais, acrescentando outros compinchas à brincadeira. Que era muito séria, diga-se de passagem. E com a qual nos fartámos de aprender.

Uma das coisas interessantes que daqui resultou foi apercebermo-nos da objectiva preferida de cada um. Havia quem optasse por usar a grande angular, havia que preferisse a “normal”, havia quem fotografasse maioritariamente com “meia tele”. Com tudo o que isso implica de variações nas imagens resultantes. Nem melhores nem piores, apenas outras visões, outros problemas, outras soluções.

Acabámos por perceber que o conceito de “objectiva normal” era (é) um quase perfeito disparate, uma formatação técnica e comercial dos fabricantes.

Em boa verdade (e falando de câmaras que produzem negativos com 24mm por 36mm, vulgo reflex ou SLR ou nas full frame) a objectiva que mais se usava ou usa é de 50mm.

Dizem os entendidos que é a que tem o ângulo de captação mais próximo da visão humana. Mas também é que mais facilmente se constrói com maior abertura de diafragma, o que acaba por a transformar numa objectiva multi usos, prática e luminosa.

Mas se dermos um conjunto variado de objectivas fixas ou zoom a vários fotógrafos com alguma experiência e domínio de perspectiva, acabaremos por verificar que talvez nem metade deles a use preferencialmente, se as condições de luz não forem exigentes. Optam por grande angular (24mm, 28mm, 35mm) uns, por meia tele (85mm, 90mm, 100mm, 135mm) outros.

O que levará, então, a esta variedade?

Em boa verdade, a nossa capacidade de visão é particularmente estreita. Considerando a nossa “objectiva”, o cristalino, e a área “útil” da nossa retina, variará entre 1º e 3º, dependente do individuo estudado. A objectiva de 50mm (novamente em película de 35mm ou full frame) tem um ângulo de captação de cerca de 46º.

As diferenças entre uma e outra, para que à segunda se chame de “normal” prendem-se com a nossa capacidade de concentração, com a capacidade imobilizar mais ou menos os movimentos do globo ocular, com a densidade de terminais nervosos sensíveis à luz na retina, desde a zona mais “útil” até à “visão periférica”. Isto do ponto de vista meramente fisiológico.

Por outro lado, haverá que considerar a forma como cada um se relaciona com o mundo envolvente.

Gente há que vive mais interventivo, mais próximo dos acontecimentos e interagindo mais com o que o cerca; gente há que tem uma atitude mais distante, mais de observador que de “actor”, ficando um pouco mais afastado da acção envolvente. Isto não é nem bom nem mau, é apenas personalidade e forma de viver. Que se reflecte, naturalmente, nas preferências sobre o ângulo de visão da sua câmara.

A isto acrescente-se o factor comunicacional. Pretende o fotógrafo mostrar o que viu e sentiu ou colocar o espectador consigo e ver sentir com ele? Cada uma destas abordagens tem necessidades diferentes de perspectiva e, como é óbvio, necessidades diferentes de ângulos de captação. A grande angular coloca o espectador lá, no meio da acção, a meia tele cria um espaço de segurança ou de conforto.

Por fim, haverá que considerar as condições em que o fotógrafo costuma trabalhar. A reportagem (eventos, guerra, política…) implica estar perto dos acontecimentos, pelo que a solução é, em regra, a grande angular. Excepção feita ao desporto, em que a posição possível é distante.

Já a paisagem, a arquitectura, a publicidade, o retrato, permitem ou exigem um maior distanciamento, com uma perspectiva que conduz a uma reprodução mais “geométrica” dos assuntos.

O muito abordar um determinado tema e com as soluções técnicas correspondentes acaba por “viciar” o fotógrafo em algum tipo de ângulo de visão, acabando por ser esse a sua “visão normal”. E procurando a objectiva correspondente.

Tenho para mim que não há um “objectiva normal”, tal como não haverá uma “visão normal”. As condições de trabalho e respectivos “vícios”, aquilo e como queremos e gostamos de contar e a personalidade do fotógrafo condicionam em muito essa normalidade.

No meu caso específico, a objectiva com que mais gosto de trabalhar (35mm ou full frame) é a 90mm. Em formato APSC (crop 1,5) é a 50mm.

Mas se há coisa que me dá prazer é forçar-me a encontrar soluções com ângulos que não os meus habituais. Quer seja usando o telemóvel, com a sua grande angular, quer seja saindo de casa com o firme propósito de fotografar nesse dia sempre em tele ou sempre em grande angular. E encontrar as soluções técnicas e estéticas para contar o que quero.

Recomendo este exercício a todos os que se querem conhecer melhor na prática do que fazem, seja qual for a experiência fotográfica que tenham.

Na imagem, algumas das teleobjectivas que possuo, mas que uso apenas em ocasiões especiais.


By me

terça-feira, 11 de maio de 2021

A 50mm



 

A história é suficientemente antiga para que “digital” mais não significasse que “dedo”.

Uma turma de jovens adolescentes no primeiro ano de um curso de fotografia. Que, por sinal, era também o meu primeiro ano a leccionar.

Quando fomos falar de distâncias focais, ângulos de visão e perspectivas, resolvi ser brincalhão: disse-lhes que a 50mm era a objectiva normal porque era a que normalmente vinha com as câmaras. Ri-me da minha piada e seguimos com os conceitos certos e a relação entre objectivas e percepção visual.

Quando, uns dias depois, voltámos ao tema, usei a velha técnica de pegar no conhecido e seguir para o desconhecido. E perguntei-lhes porque é que a 50mm era conhecida como “normal”.

Uma aluna (lembro-me perfeitamente que estava na extrema esquerda da sala, do mesmo lado da janela), passou as folhas do caderno e leu os apontamentos: “Porque é a que normalmente vem com as câmaras”.

Fiquei varado! Eu tinha dito aquilo e, para ela, não havia dúvidas sobre o que eu dizia. E não poderia eu dizer que ela estava errada.

Brinquei com a coisa, corrigindo, dando eu a mão à palmatória pela brincadeira e sem a menosprezar pelo erro. Afinal, eu tinha dito aquilo.

Durante os anos em que trabalhei com alunos fui sempre assaltado por uma dúvida: “Quem aprendeu mais: eles, com o que lhes dizia e as descobertas que faziam, ou eu, com as dúvidas, perguntas e reacções deles?”

E este episódio foi, sem sombra de dúvida, uma das grandes lições que recebi: A credibilidade de alguém que ajuda a aprender é a sua maior ferramenta.

Levar os alunos (formandos, aprendizes…) a questionarem-me, a tentarem encontrar falhas ou erros no que lhes dizia ou nos “caminhos” que lhes sugeria foi um método que nunca deixei de usar e de cujos resultados (confesso cheio de imodéstia) sempre foram positivos.

No fim de contas, o sol sempre girou em torno da terra até que alguém demonstrou o contrário.


By me

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Pensar




Uma das principais preocupações de Ansel Adams, bem como de muitos outros fotógrafos, foi o conseguir reproduzir nos suportes fotográficos aquilo que o olho humano conseguia ver. Não em quantidade mas em qualidade.

Por que, e é sabido, a gama de contrastes que o nosso olhar consegue discernir é de longe superior à que qualquer suporte de imagem é capaz, por si só.

Daí o eles terem-se preocupado, uns mais, outros menos, em aquilatar dos contrastes do assunto a captar, das sensibilidades cromáticas (mesmo em preto e branco) e das capacidades de reproduzir os negros profundos e os brancos puros, com toda a gama de cinzentos intermédios.

Medições de luz no assunto, filtros coloridos, revelações controladas no negativo e no positivo… de tudo se usou (e usa) com esse objectivo. E com resultados de deixar qualquer um de boca aberta.

Hoje, pensam muitos, tudo se resolve com ajustes electrónicos no computador, eventualmente na câmara. Uns toques aqui ou ali e a coisa fica feita.

Como estão enganados!

Os grandes de hoje, por muito que saibam trabalhar sentados em frente do ecrã, deram-se ao trabalho de bem medir e controlar a luz antes do acto de premir o botão do obturador. E, muitas vezes, bem sabendo então o tipo de correcção que terão que vir a fazer.

E o resultado final, para além de encher o olho, tem toda a gama tonal do assunto, dos negros profundos aos brancos puros. E não, como muitos acham, do cinzento-escuro ao quase branco.

Claro que haverá sempre, repito o sempre, que considerar o suporte final onde a imagem vai ser observada ou consumida. E um dos problemas aqui inerentes passa pela calibração dos reprodutores da imagem, se não for impressa.

O fácil acesso aos equipamentos de captação de imagem, o preço zero de cada uma, as redes sociais e sites, a velocidade com que se quer que as imagens sejam degustadas e as aparentes fáceis edições posteriores fazem com que se baixe o nível qualitativo das imagens com que nos deparamos. E apenas porque, na esmagadora maioria dos casos, não se “pensa” no que se está a fazer mas tão só em fazer de qualquer modo, sabendo que depois “se dará um jeito”.


Pensar parece estar fora de moda: ou porque é lento ou porque é cansativo.


By me

sábado, 8 de maio de 2021

O rádio




Este rádio era de meus avós.

Viviam eles numa casa de lavoura, no limite da aldeia e a electricidade não chegava lá. Ainda. Portanto, o rádio funcionava a pilhas.

Quando por lá ia, nas férias de verão, era uma das minhas companhias das tardes infindas, em que o calor apertava cá fora, mas o fresco provocado pelas caiadas e grossas paredes convidava a uma sesta musical.

Quando eu por lá não estava, onze meses e tal por ano, o rádio era ligado apenas duas vezes por dia, para que se ouvisse o “teatro radiofónico”, o antecessor das telenovelas de hoje. Mas quando o catraio lá estava – eu – o consumo de pilhas era substancialmente maior, pelo que ficava eu encarregue, da minha semanada, de as pagar, compradas na venda da aldeia, onde se ía umas duas a três vezes por semana, em busca de algum feijão, arroz, talvez sal, e dois ou três dedos de conversa com os patrícios. Claro que havia o dia em que vinha o homem do peixe, na sua motocicleta e anunciado de longe pela sua corneta.

E porque é que o rádio, na minha ausência, só se ligava para o teatro radiofónico? Porque o que mais que lá se contava, as notícias, eram sempre iguais: alguma inauguração governamental, informações, raríssimas, sobre a guerra lá longe nas colónias, a previsão meteorológica, o vencedor do festival da canção e, casos bem raros, algum discurso ao país do títere. Nada de importante, que a política estava limitada à União Nacional, o partido sempiterno no governo. Não podíamos saber o que outros pensavam, os que outros diziam, o que outros faziam. E votar, então, se bem que não obrigatório, era quase que inconsequente, que os resultados se sabiam de antemão: vencia a União Nacional.


Os tempos mudaram, a electricidade chegou à casa de meus avós, foi acrescentado ao rádio, já não sei por quem, um transformadorzito, eu deixei de lá ir de férias, que a adolescência queria outras aventuras, e a União Nacional deixou de existir.

Veio a Democracia, a possibilidade de podermos decidir sobre o nosso próprio futuro, de escolhermos os nossos governantes, de ouvirmos na rádio e na TV o que outros fazem, dizem, pensam.

O rádio está aqui, testemunha muda porque já não funciona, do que foi, do que é e da transição dos tempos.

E se hoje temos os que temos, vivemos como vivemos e sofremos o que sofremos, não culpemos o rádio, que ainda tem a capinha diligentemente costurada por minha avó.

Culpemo-nos a nós mesmos, que podendo saber o que outros pensam, dizem, fazem, continuamos a escolher – quando vamos escolher – os mesmos de sempre. Mantemo-nos – ou muitos de nós – apáticos, não optando por mudanças realmente sérias, mas tão só por pequeníssimas nuances, que mais disto ou mais daquilo acabam por ser mais do mesmo.


Já não nos juntamos, à luz do candeeiro de petróleo, a ouvir o teatro radiofónico. Das notícias, quando as ouvimos, preferimos as das catástrofes lá longe, preferencialmente, que nos sublimam os nossos problemas. Vibramos com as revoltas nos países ditatoriais, mas somos incapazes de resolver os nossos próprios problemas. Porque continuamos convencidos que o acto eleitoral está previamente decidido, entre o A e o B, e que, seja qual for o resultado, as consequências serão as mesmas.


Este rádio está mudo, agora. Mas, de cada vez que para ele olho, ali na estante, grita-me ele que as mudanças estão na minha mão – na nossa mão – quer nas urnas quer no quotidiano. E que devemos passar de meros ouvintes do teatro radiofónico para o palco dos acontecimentos. De passivos a activos!

Que mais que ouvir a rádio devemos fazer ouvir a nossa voz! E fazer cumprir a nossa vontade!


By me

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Rigores




 - Oh pai? A água ferve a 90º?

- Não, filho, que disparate! A água ferve a 100º.

- Ah, pois… A 90º ferve o ângulo recto!


Piadas à parte, a verdade é que quantificamos tudo na vida. Pesos, volumes, distâncias, temperaturas, energias, tempo… Ainda não quantificaram os afectos, mas creio que não faltará muito.

Com as artes e as expressões pessoais, o mesmo se passa. Nas métricas, nos rimos, nas proporções, nos equilíbrios… As fórmulas algébricas definem à priori ou explicam à posteriori aquilo que apeteceu fazer, aquilo que o criador entendeu por bem materializar.

E estas quantificações impõem regras e normativos. Que, por um lado, definem e generalizam o conceito de qualidade e, por outro, padronizam técnicas e materiais usados por cada um para se exprimir. E tente-se lá encontrar uma tela redonda para pintar…

Com a fotografia sucede exactamente o mesmo!

Submergida que está à ditadura das normalizações dos fabricantes, é difícil a roçar a impossibilidade de se lhes fugir. E se fabricarmos nós mesmos os materiais (equipamento e consumíveis) é quase uma impossibilidade, as expressões de surpresa ou de desprezo por parte de quem atende o público ao lhe ser pedido um trabalho não normalizado acabaria por ser hilariante, se não fosse trágico.

Tente-se mandar imprimir uma fotografia a partir de negativo ou de ficheiro digital que tenha, por exemplo, uma proporção de 1:7,5. Suspeito que só alguma lei recôndita e obscura que impede os empregados de balcão de rirem, inibe o ouvir-se uma valente gargalhada. E provocaria uma chamada de urgência para o hospício mais próximo que pedíssemos um enquadramento trapesoidal irregular.

O alfa-numérico das regras, leis e normalizações é tão castrante quanto um capador de porcos.

E o ângulo recto da esquadria do nosso enquadramento, com os seus 90º exactos, é a cereja no topo do bolo!


By me

terça-feira, 4 de maio de 2021

O alicate, o porta-moedas e os selos




Teria eu 11 anos? Talvez, pelo que recordo do trajecto desta história.
No autocarro onde viajava naquele dia, a caminho da escola, levantou-se reboliço.
A altercação punha em campos opostos um façanhudo cobrador da Carris, que exigia o pagamento do bilhete, e uma senhora, que afirmava ter deixado o porta-moedas em casa e não poder pagar.
De alicate em riste, o zeloso funcionário ameaçava com multa, ameaçava com polícia, ameaçava com os quintos do inferno. Com os olhos já húmidos, a senhora bem que rebuscava a carteira em busca do porta-moedas, mas este não parava por lá. A coisa estava a ficar feia e nenhum de nós, passageiros, estava a gostar de ver.
Pegando no meu próprio porta-moedas, com uma coragem que não me conhecia, propus-me pagar eu o bilhete.
Quinze tostões (seriam?) depois, o bilhete regulamentarmente arrancado do bloco e obliterado pelo tenebroso alicate, e as coisas acalmaram.
Não me recordo de que mais coisas terei falado com aquela passageira, mas alguma coisa foi, certamente.
Passado algum tempo (dias, semanas?), foi um alvoroço em minha casa. Fora encontrada na caixa do correio uma carta que me era dirigida. Devidamente estampilhada e carimbada pelos correios. Nunca eu tinha recebido uma carta pelo correio e o espanto foi natural.
Do tamanho de um cartão de visita (correio normalizado era coisa desconhecida) continha um cartão e selos.
No verso do cartão de visita, a referida senhora escrevera umas palavras amáveis de agradecimento (não me recordo de quais) e os selos correspondiam ao valor do bilhete que lhe havia pago.

Não me recordo em que mês se passou este episódio.
Mas, fosse qual fosse, chamar-se-ia Dezembro certamente.
Afinal, é Natal quando um homem, mulher ou criança quiser.

by me