sábado, 28 de agosto de 2021

Sociedade versus humanidade

A propósito da retirada ou fuga do Afeganistão e dos refugiados que recebemos, recordo uma declaração de um nosso político há dias.

Dizia ele que estávamos na disposição de receber como refugiados os que, lá, tivessem colaborado com as forças e diplomatas portugueses, bem como filhos e esposa. Uma esposa.

E foi dado algum ênfase ao facto de ser apenas uma.

Não irei discutir sobre as contradições culturais da monogamia versus poligamia. Cada uma é o que é, baseada em conceitos que a própria sociedade define.

O que nesta questão me atrapalha é saber que esses cidadãos masculinos terão tido o estranho dilema de salvar uma esposa, deixando as demais entregues a si mesmas naquele país e no actual cadinho complicado e perigoso.

E se pensarmos que a poligamia em países islâmicos se baseia no conceito que a mulher não deve existir sozinha e que deverá ter um homem para a proteger, o que lhes vai suceder, agora que deixaram de o ter?

Obviamente que a questão não se colocaria por cá. A protecção masculina não é uma necessidade ou obrigação e a mulher vive como entende, acompanhada ou não. É o nosso conceito e estou particularmente satisfeito por ele existir e nele viver.

Mas, pensando do ponto de vista afegão…

Eu não gostaria de ter que deixar para trás uma esposa nestas circunstâncias, tal como não gostaria de ter que escolher sobre a sobrevivência de um filho em desfavor de outro.

Entendo que as nossas autoridades tenham feito esta opção para tranquilidade da nossa sociedade, onde a poligamia não é aceite e é punida. Formalmente seria complicado.

Espero no entanto que, e para além das formalidades públicas, se tenham considerado “jogos de cintura” não publicitados, tendo por objectivo as questões humanitárias que nos levaram a querer receber refugiados afegãos.

 

By me 

Uma pérola na noite




Entretido que vinha a ler, nem me apercebi da chegada à estação do meu bairro. Quando levantei os olhos do livro, já as portas do comboio se fechavam, deixando-me com a solução única de descer na seguinte e apanhar um táxi de volta, que a noite já não era jovem, o trajecto longo e o cansaço bastante.
Quando, já desembarcado, cheguei à praça de táxis, uma mulher, na casa dos trintas, com uma criança pequenita, encostavam-se à parede, tentando em vão proteger-se da aragem promovida a vento que arrefecia os corpos, em contraste com o valente calor do dia. E se a maior tiritava, a pequena optava pela estratégia comum naquelas idades: saltava, abanava-se, saracoteava-se, tentando que o sangue, em correndo, a aquecesse.
Dei a saudação e perguntei se esperavam um táxi, que primavam pela ausência. O que também não estranhava, já que a noite era o que era e Agosto estava em plena maturação. Anuíram, que certamente não estavam à espera do horário de abertura da farmácia a que se encostavam. E deixei-me ficar, ignorando a aragem, que a camada adiposa me protegia, e matando o tempo com um cigarro de impaciência. Sem mais palavras trocadas.
Ao fim do segundo cigarro, eis que surge um táxi. Um apenas, que me iria deixar solitário na escuridão da noite e na esperança que houvesse mais motoristas a trabalhar àquela hora e em mês de férias.
Abrindo a porta e empurrando a pequenita para o interior, diz-me a mulher: “Vai para São Carlos?”
Pois eu não ia, seguindo mesmo a direcção oposta.
Mas a invulgaridade da oferta alumiou a minha noite. Em mais de vinte anos de uso habitual daquela praça em circunstâncias semelhantes, não me recordo de ter ouvido tal pergunta com a implícita proposta de boleia.
E porque a noite estava escura, que os candeeiros por ali não abundam, não consegui fixar as suas feições de igual tom. Mas ficou a alvura daquele coração, qual pérola rara, a brilhar bem mais que os faróis do carro que se afastava.

By me

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Três gerações, três continentes


D'arquivo de há pouco mais de dez anos

Fui buscá-lo não apenas pelo texto mas porque a imagem bem demonstra o tipo de luz de que gosto: vinda de lá.


Chegaram, mãe filho, este ao colo dela. Aliás, teria que ser assim se para trajectos maiores, que o pirralho era tão piquinino que o seu andar pouco mais era que pôr um pé à frente do outro para não cair.

Falámos um pouco e fizemos a fotografia. E quedámo-nos na conversa, mesmo depois da função terminada.

O pequenote, esse, é que pouco se interessou no que dizíamos. Partiu para descobrir novos mundos, na imensidão de uns dez metros em redor. E, sendo o seu caminhar o que era, cedo caiu.

À distância a que estava, a mãe constatou que nada de grave acontecera. Tal como eu. O minorca, estendido ao comprido, de barriga para baixo, olhou em redor, sem choro ou beicinho, verificou a proximidade da mãe e lá se levantou para mais uma caminhada. Que acabou em queda de igual gravidade.

Afinal, é assim que aprendemos a caminhar, caindo, levantando-nos e continuando. E aprendendo como usar o que temos e onde e como pôr os pés.

A sua inexperiência era tal que, passado pouco, ei-lo de novo no chão.

A mãe, estrategicamente colocada na nossa conversa, ia verificando o resultado das quedas, ao mesmo tempo que se certificava que o seu trajecto não coincidia com o das bicicletas, skates ou patins que por ali pululam. Estava tudo controlado e tranquilo.

Quem assim não pensou foi uma velhinha, com ar de avó tremida mas extremosa, que à terceira queda do aprendiz de caminhante, achou que era demais.

Levantou-se do seu banco de jardim e, com uma dificuldade em caminhar equivalente à da criança, abeirou-se dele e levantou-o do chão. Regressando de seguida ao seu lugar sentado, não fora ser este selvaticamente ocupado por algum dos muitos outros idosos do jardim.

Pouquinho tempo depois, a cena repete-se: o pimpolho cai, a velhinha levanta-se e levanta-o e regressa ao seu repouso. Tudo sob o olhar vigilante da mãe, que ia cavaqueando comigo, à beira da minha câmara e tripé.

À terceira a coisa foi diferente: Depois de levantar o pequeno, que continuava sorridente como sempre, caminhou para nós com ele segurando-lhe o dedo. E a sua expressão advertia das advertências que haveria de dar à mãe “descuidada”.

Nada ouvi, que se encontraram a meio caminho, com troca de dedo agarrado. Trocado por calças, à altura dos joelhos, quando regressaram para junto de mim.

Com um sorriso, disse-me ela que este era um dos motivos para gostar do Jardim da Estrela: Fora aqui que ele dera o seu primeiro passo e era aqui que estava a aprender a andar. Bonito de ouvir!

Como que inspirado na conversa, o rapazinho afastou-se caminhando, de novo em direcção ao local onde a boa da velhinha continuava sentada. E a mãe, continuando a sorrir e fazendo contrastar o tom dos dentes com o da pele, acrescenta: “É melhor ir busca-lo antes que ela venha cá de novo!”

E foi, regressando ele ao colo e com a mãozinha esticada para a pelagem branca que me cresce no queixo e cara.

Quando, passado um pouco, se foram de vez, fiquei pensando que, na verdade, a melhor forma de aprender é ir caindo até aprender a coisa. E aproveitar a pequenez da altura para que as quedas sejam pequenas e pouco dolorosas.

Acontece, porém, que há sempre uma avozinha, cheia de boas intenções, que se intromete e tenta mudar o curso natural da vida. E que, ou bem que já se esqueceram que foram crianças e mães, ou bem que mais nada lhes resta fazer que interferir na vida dos outros, queiram ou não eles que isso aconteça.


E quem é que está na imagem? Pela certa que não se esperaria que eu aqui mostrasse os intervenientes neste episódio em torno do meu “Oldfashion”!

Em alternativa mostro este retrato. Que em comum com a estória apenas tem o local onde foi feito e minha câmara de madeira. Que a estória falou de três gerações dois continentes e aqui mostro a Ana, vinda de um terceiro continente.

É que o Jardim da Estrela é assim como que um centro do mundo, onde de tudo acontece e onde de tudo converge.


By me

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

As perguntas sem respostas




A fotografia tem o terrível defeito de nos levar a fazer algumas perguntas quando a vemos:

O quê, quando, quem, onde…

Ao contrário da pintura, que aceitamos não ser factual, da fotografia esperamos algum tipo de semelhança com a realidade. “O fotógrafo estava lá” ou “Documento” ou ainda “Para mais tarde recordar”.

Se não tem uma leitura ou interpretação imediata, se as respostas àquelas perguntas não forem instantâneas, a imagem fotográfica é desprezada, não se gastando com ela mais que o tempo de passar à seguinte.

Parar um pouco para deixar que sejamos nós a encontrar dentro de nós as tais respostas, a deixar que seja a nossa imaginação ou vivência a completar aquilo que o nosso racional não discerne, permitir um diálogo entre quem vê e o que vê em vez de uma atitude passiva…

Da fotografia não se espera que nos ponha a pensar, que isso dá muito trabalho. Mas isso também raramente nos permite sonhar.


By me

terça-feira, 24 de agosto de 2021

D'arquivo




De um outro tempo e bairro. Mas com as mesmas convicções

Não se trata de nenhum fetiche esconso e inconfesso. Apenas entendo que sapatos jogados fora contam bem mais que outras peças de roupa.
De um casaco, camisa ou calças caídos na rua pouco consigo imaginar sobre os seus donos anteriores, quer estejam perto ou longe de um contentor de lixo. Agora calçado…
Sapatos só se jogam fora quando já não têm recuperação possível. Mesmo aqueles que fazem questão de andar à moda sabem que se para o ano já não se usa talvez daqui a uns três ou quatro volte a estar na berra. E os sapatos, botas ou chinelos guardam-se.
Quanto às peças de roupa, se jogadas fora, tanto pode ser por estarem estragadas sem remédio ou por o seu dono ter crescido para além das medidas, na vertical como é suposto, ou na horizontal como se desgosta.
Em qualquer dos casos, em encontrado calçado abandonado, fotografo-o, sendo que já vou tendo uma colecção razoável, de todos os tipos, formatos e utilizações.
Pois um destes dias, estava eu lá no bairro, disposto a fotografar mais uns exemplares e esperava que uns quantos transeuntes passassem entre mim e o local onde jaziam os sapatos.
Uma senhora, aí dos seus sessentas bem medidos, fez-me sinal para eu fazer o que tinha a fazer, que ela esperaria. Quando retomou o caminho, aproximou-se e perguntou-me:
“Anda a fotografar o lixo do bairro?”
A minha figura, de facto, não é das mais discretas e o meu apontar de objectiva também não é o que há de mais comum, pelo que ela já me deveria ter visto por ali. Mas sempre lhe disse que não era bem isso que se passava, que morava por ali e que ia fotografando o que me dava na veneta.
Nem me deixou acabar o discurso. Em tom exaltado, recomendou-me que fosse ali, àquela rua nas traseiras do seu prédio, onde o lixo se ia acumulando sem rei nem roque. E que o barulho que ali ia acontecendo também teria que ser fiscalizado.
Fiquei a olhar para ela e para a sua fragilidade e desabafo, e fui-lhe explicando que essa não era a minha função e onde poderia ali por perto – o gabinete do munícipe – fazer tais reclamações.
“Ai é?!” respondeu “Pois não sabia. Mas, de qualquer maneira, não vou lá! Eles é que têm que andar por aí, a ver o que se passa. E, sei lá, se lá fosse os que andam aí afazer essas festas ainda se vingavam… Não, eu não vou!”

Pois é, são estas atitudes de retraimento e de alijar responsabilidades que fazem com que uns quantos ponham e disponham da vida de todos os outros.
E, se bem que os diversos serviços – segurança, higiene, urbanismo, que nós pagamos através dos impostos – devam estar alerta e funcionais, não podemos esperar que estejam em toda a parte e a todo o momento.
É função nossa, enquanto cidadãos, intervir com elogios e divulgações o que temos de bom e denunciar e corrigir o que temos de mau.
Quando não teremos um pastor, uns quantos cães e a imensidão de ovelhas no rebanho – nós!

E ela lá foi, com o seu saco de compras, tal como eu com o meu saco de fotografia. Com a diferença que, neste, havia com que fazer essas denuncias e divulgações. E refutar a classificação de ovelha, negra ou não!


By me

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Efeméride



 

Esta fotografia tem uns quarenta e tal anos.

Consto nela, tal como o meu chapéu e o meu primeiro tripé Gitzo. A câmara, uma Pentax MX, não está na imagem porque foi usada para a fazer.

O que consta, apesar de muito discreto, é o meu relógio, usado como sempre no braço direito.

Comprado a um preço simpático, tinha um detalhe pouco comum então: Sendo digital, usava um método misto de mostrar o tempo: ponteiros e mostrador numérico. E tinha uma característica que me levou a ficar com ele, no meio de muitos outros.

O seu cronómetro também funcionava em regressivo mas sem iluminar o mostrador. Detalhe vital para quem revelava negativos de grande formato em preto e branco, usando tinas abertas e na escuridão total. Marcava-lhe 50 segundos e quando apitava era o momento da agitação de dez segundos. Sempre no escuro, como impõe o uso de materiais pancromáticas. Só algum tempo depois encontrei e comprei um tanque estanque à luz que me permitia trabalhar com mais conforto, bem tarde na noite, já que usava a casa de banho da família como laboratório. Fartei-me de usar fita adesiva para bloquear o interruptor da luz no seu exterior.

Um compincha destas andanças, com as mesmas limitações, usava um gravador de cassetes com um tema musical de que gostava cuja batida rítmica lhe servia de guia temporal.

As técnicas, limitações e complicações evoluíram, facilitando (ou dificultando) os processos. Mas o objectivo sempre foi o mesmo: fazer Fotografia. Cujo dia hoje se comemora.


By me

19 de Agosto




Nunca foi lá muito fã dos dias comemorativos.

Fico sempre com a sensação que só nesse dia é importante aquilo que se comemora.

No entanto, e como hoje é o dia mundial da fotografia…

Neste dia costumo usar por aqui, na virtualidade das relações, algumas fotografias em particular. E a minha escolha recai, as mais das vezes, sobre a “primeira fotografia”, feita por Niepce em 1826.

Este ano opto por esta. Feita por mim, é o que é e vale o que vale. Não a tenho por muito boa nem sequer fácil de entender. Mas foi o que me apeteceu fazer, sem outro objectivo que não a minha satisfação.

E, no fundo, é isso que importa em primeiro lugar na fotografia, se a entendermos como forma de expressão, a que alguns chamam de arte (não tenho eu essa presunção):

Se eu não encontrar satisfação no que faço, nem vale a pena dar-me ao trabalho de fazer, tentar, falhar e repetir, aprender, melhorar…

Tenham um bom dia da fotografia.


By me

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

As bolas de Berlim




Recordo os meus tempos de estudante de liceu.

Os intervalos grandes da manhã e da tarde tinham vinte minutos, ao invés dos demais que tinham dez.

Se o tempo estava bom (leia-se sem chover) era uma correria ao largo em frente ao liceu. Na época só os actuais primeiro e segundo ciclos tinham entradas e saídas controladas. No liceu nada disso acontecia.

Atravessávamos o asfalto do largo pouco movimentado, passando por entre os carros estacionados. Recordo um, Fiat 850 verde, pertença de um contínuo do liceu, que era escovado da poeira todos os dias, à chegada e à partida e, se chovia, era coberto com lona. Pobre viatura, que sofria na chapa o que ao dono não podíamos fazer, de bera que era. A interpretação que faço hoje do seu comportamento de então passa por se vingar em nós, alunos, da partida que a natureza lhe fez: baixa estatura. E fazia-o com ordens descabidas e denúncias ocultas. Ao invés de um outro, que tinha a mais em altura o que a este faltava. E força. E brutidade. Vi-o várias vezes a agredir quase selvaticamente alunos mais rebeldes e, que me recorde, foram uns três ou quatro ponteiros de madeira que quebrou nas costas de alguns de nós. E não adiantava queixas formais ou grupais por parte dos alunos ou respectivos pais: O reitor do liceu pré-revolução era deus todo-poderoso e os contínuos eram os seus agentes de execução, intocáveis e de carta-branca.

Estas fugas no intervalo grande não aconteciam apenas para nos fazer escapar destes “donos-da-chave-da-retrete”. Íamos ter com uma senhora que abancava do outro lado do largo. Recordo-a de cabelo branco encaracolado e avental preto. Do rosto, nada.

Mas dependurado do braço, ou já no chão a seus pés, bem recordo o seu cesto de vime, grande e com asa igualmente grande. Forrado com pano branco, com outro igual a cobrir, continha deliciosas e incomparáveis bolas de Berlim com ou sem creme que, consoante o conteúdo dos nossos bolsos, comprávamos ou trincávamos as de quem as compravam. Que por ali e então, a solidariedade entre putos não era palavra vã.

Mas havia que o fazer rápido, que vinte minutos entre o descer à rua, conseguir fazer o negócio, satisfazer a gula e regressar para a aula seguinte, era coisa pouca e rápida. Entenda-se que o acesso aos pisos superiores se fazia por uma rampa ou por uma escada. E a rampa, que desembocava no átrio principal e junto da biblioteca e sala de professores, era reservada em exclusivo a estes e aos contínuos. Que os pirralhos não tinham direito a por ela subir ou descer em correria ou com ela encurtar o tempo de chegar à aula antes do segundo toque.

As bolas de Berlim vendiam-se no exterior do liceu. Sem que a ASAE ou o ministério influísse ou fiscalizasse. Suponho que uma simples licença de vendedor chegasse. Hoje devem voltar às ruas, por imposição ministerial de exclusão e por motivos sanitários, dietéticos e educacionais. Mas não asseguro que as hoje tenham o mesmo sabor doce, rebelde e de partilha das de então.

 

Nota fotográfica adicional: a tal luz de trás ou lateral de que tanto gosto.


By me

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Alonguei-me, desculpem-me.



 

Relacionamo-nos com o mundo que nos rodeia conhecendo o espaço em que existimos. A tridimensionalidade, que conhecemos através da visão, da audição e do tacto, é vital para a sobrevivência do individuo.

Apercebemo-nos do espaço através das posições comparadas dos globos oculares quando olhamos para algo. E da comparação no cérebro das diferenças das duas imagens retinianas correspondentes.

Mas apercebemo-nos do espaço usando de outros “truques”. Melhor dizendo, a mente usa, que o fazemos sem que disso nos apercebamos.

O tamanho aparente dos objectos, a que chamamos de perspectiva, é um auxiliar preciso. O mais pequeno está mais longe, muito naturalmente.

Tal como a sobreposição de dois objectos. Se um tapa o outro, então está mais perto. Isto é óbvio e nem pensamos no assunto.

De igual forma as sombras e suas orientações nos situam no espaço, definindo o posicionamento da fonte de luz, sol ou candeeiro, e respectivas sombras e zonas com luz. Os volumes e formas de um objecto ou ser vivo são assim percebidos.

Nós, os fotógrafos, temos que mostrar a quem vê o nosso trabalho o espaço e volumes em frente da nossa objectiva. E como só temos um olho – a nossa objectiva – temos que bem trabalhar todas as outras técnicas para suprir essa falta ou característica.

Uma das duas principais ferramentas será a perspectiva. Os tamanhos aparentes, as linhas condutoras de olhar – ditas de fuga – são vitais na produção de imagem.

A outra é a luz, a nossa matéria-prima, o que é reflectido por aquilo para onde apontamos a câmara. E, consequentemente, as sombras que a luz provoca (ou não provoca). São as sombras que dão volumes às rugas que tantas vezes queremos disfarçar. São as sombras que nos situam num determinado ponto do espaço/tempo, ajudando a entender a perspectiva. São as sombras projectadas sobre um fundo – parede, cortina, calçada, arbusto – que ajudam a definir as distâncias entre ambos.

Uma outra forma de usarmos a luz para nos ajudar a definir distâncias – ou volumes, ou espaço – será o criarmos como que uma “cortina de luz” entre o primeiro plano e o que estiver lá atrás. Chamamos-lhe “luz de recorte”. Ou “Hair Light”. Ou “Back Light”. Uma luz que, vindo de um ponto bem definido ou nem tanto, crie como que um contorno mais intenso ou discreto no primeiro plano. Com isso, mostramos que haverá diferença ou distância entre o que está próximo e o que está mais afastado. Ou, dito de outra forma, com o uso dessa “luz de recorte” o assunto – humano ou não – salta do fundo, muitas vezes aumentando a interacção entre ele e quem vê a imagem.

Quem der uma olhada nos trabalhos de estúdio (ou não) de fotógrafos irá constatar que, as mais das vezes, os que mais gostamos, aqueles que mais falam connosco, são os que tiram partido do uso dessa técnica de criar profundidade ou volume com uma luz que não aquela que ilumina o assunto de frente. Um bom exemplo será alguns trabalhos de Sebastião Salgado, na sua abordagem à natureza, humana ou não.

 

Claro que, ao dizer tudo isto, sou suspeito. Gosto - e muito - de usar a luz “vinda de lá”, quantas vezes considerando que ela é a principal e que todas as demais existem apenas para que o assunto seja tecnicamente perceptível. Por vezes só um pequeno apontamento, outras com intensidade e força. Mesmo em reportagem na rua, procuro colocar-me de tal forma que essa seja a luz dominante.

Não é coisa fácil de dominar e demasiadas são as vezes em que o resultado é um fiasco. Porque não aquilatei bem a qualidade de luz, porque não medi bem a quantidade de luz ou porque, de tanto querer usá-la no limite, o pára-sol não foi eficaz o suficiente.

Mas vou tentando e se a luz vier da minha frente, perpendicular à minha objectiva ou nem tanto, quase de certeza que gosto e tentarei fazer um registo. Melhor ou pior, isso já é outra conversa.


By me

domingo, 15 de agosto de 2021

O cano de uma pistola pelo cu




Em 2012 Juan José Milás publicava no jornal El País esta crónica, a que deu dois títulos: "O cano de uma Pistola pelo cu" e "As relações impossíveis: Economia real- Economia financeira".

Apesar de nove anos se terem passado, e descontados que sejam nomes e detalhes temporais, haverá quem possa dizer que está errado?


O cano de uma pistola pelo cu

Se percebemos bem - e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.


Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer.


Se o preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.


Para exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.


A primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país - este, por acaso -, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades imobiliárias a fingir.


Quando o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.


E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.


Tu e eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.


A ti e a mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas.


A economia financeira, se começamos a perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A atividade principal da economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.


Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço.


Na economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado.


Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.


Imagem: by me

sábado, 14 de agosto de 2021

Públicos e imagens - prazeres




Quem produz imagem tem dois motivos principais para o fazer: porque lhe apetece ou porque tem que ser. Por outras palavras: porque necessita disso para alimentar a alma ou porque o faz para alimentar o corpo. Idealmente será a conjugação das duas.

Por mim, desde há muito que tento conjugar ambos os motivos. Usando como suporte o foto-químico ou o electrónico, mono ou policromático, preocupado com a tomada de vista ou com o seu tratamento depois da objectiva, estática ou animada. A imagem tem feito parte da minha vida quase desde que me conheço.

E se há coisa que aprendi nestas andanças foi que o público mais difícil é o infantil e aquele para quem dá mais “gozo” trabalhar é o juvenil.

O primeiro porque, e ao contrário dos adultos, as crianças não são muito dadas a concessões: ou gostam ou não gostam! Enquanto os adultos consomem por hábito, por relaxe, porque não têm mais nada que fazer, as crianças ou bem que gostam e consomem, ou bem que não gostam e vão procurar qualquer outra coisa para fazer.

Isto implica um cuidado acrescido no que é feito, se queremos ter sucesso no que fazemos. Forma e conteúdo. Na forma para lhes captarmos a atenção, no conteúdo para que não lhes transmitamos ideias e conceitos que, absorvidos por essa mesma atenção, possam influenciar negativamente a forma como vêem o mundo e a sua noção de bem e de mal.

Sobre isto há todo um mundo de argumentos que podem ser esgrimidos, desde pedagogia a conceitos morais, passando pela relação entre pais e filhos. Não me alongo no tema, até porque não sou especialista na matéria.

Já com os jovens a coisa é diferente. O jovem adolescente ou o jovem adulto procura o seu lugar na sociedade, tentando afirmar-se enquanto individuo e enquanto membro de um grupo. E isto passa, entre outros aspectos, pela contestação, em particular à geração anterior, pais incluídos. Nada de novo até aqui!

No consumo de imagem, estática ou animada, formas e conteúdos, se aquilo que se lhe é apresentado for de algum modo contestatário ele aderirá. Se romper com os princípios da geração anterior, por pouco que seja, ele irá gostar.

E é aqui que nós, produtores de imagem, podemos dar azo á criatividade, ainda que controladamente. Fazer diferente do habitual, experimentar novas formas de contar estórias e histórias, nas formas e nos conteúdos. Quebrar regras, inventar “absurdos”, apresentar “non sense”, mostrar o mundo (real ou ficcionado) sem estar preso aos standards da composição, das cores, dos conteúdos,…

Implica este tipo de trabalho muito cuidado. Ponderar bem até que ponto se pode ser diferente, até que ponto essa diferença é aceite, até que ponto o uso de novos códigos de comunicação são entendidos. Que, se não forem aceites ou entendidos pelos destinatários, todo o conceito de “comunicação” se perde por ausência de ponte de contacto.

Quem trabalha com ou para jovens na produção de imagens tem neste público o terreno fértil dar azo à sua própria imaginação, com muito menos limites que para qualquer outro público, de menor ou maior idade. Mas, também, asseguro que é particularmente difícil largarmos as nossas próprias convenções e regras para lhes conseguirmos chegar.

E se isto não é a conjugação perfeita entre o alimentar a alma e o alimentar o corpo de quem produz imagem, não sei muito bem o que o possa ser!


By me

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Pensando e comentando sobre fotografia




Alguém que prezo pelo trabalho que faz e pelas observações que emite lançou um desafio de retórica (ou não) na sua rede social. Eu “alinhei” e deixei dois comentários, entre os diversos que foram feitos. 
Como não sou autor dos demais comentários, não os transcrevo, mas tão só os meus. (Narcisismo, dirão alguns). Mas o certo é que exprimem parte do que penso sobre fotografia e a sua relação com o público.
Aqui fica:

O desafio:
“Tenho para mim que a maior parte das pessoas que vêem fotos não gostam de fotografia apenas gostam do que vêem.
Alguém concorda?”

Meus comentários:
“Vou entrar na discussão, mas não sei se sou capaz de ser breve no tema.
A generalidade das pessoas não reage à qualidade do que vê (fotografia, cinema, vídeo) mas antes às emoções que lhe provoca aquilo que vê. E dou um exemplo concreto: a execução de Hassan Hussein.
O seu enforcamento foi registado clandestinamente, com um telemóvel de baixa qualidade e o registo era, de facto muito mau. Mas não só existia como foi o único que foi feito. E não houve quem não reagisse, dos que puderam ver antes de ser banido dos media e web. Entre os que ficaram incomodados por verem um homem morrer, aos que ficaram satisfeitos por aquele homem ter morrido, todos reagiram aos que viram.
Estas reacções, mesmo as negativas, não aconteceram porque gostaram (ou não) do que viram, mas pelas emoções que sentiram perante o que viram.
O mesmo se pode dizer sobre a esmagadora maioria das fotografias galardoadas no World Press Photo. Ao júri, tal como ao público, pouca importância é dada à fotografia de per si mas aos sentimentos que têm ao vê-las: a história que relatam, as memórias que são assim chamadas, o medo irracional que aquilo possa acontecer connosco…
Igual acontece com fotografias “belas”. Um pôr-do-sol recorda-nos aqueloutro que vivemos com alguém, uma ilha paradisíaca dá-nos vontade de mergulhar nas águas, numa figura humana apreciamos as formas, (quiçá acordando o libido), um prato de comida dá-nos fome…
À grande maioria das pessoas pouco importa o suporte ou a qualidade do que vêem. Importa, antes sim, o que se sente perante o que se vê.
Acrescente-se que será o facto de uma imagem conseguir provocar emoções que a define como “boa”. Mesmo que tecnicamente seja muito má.
No fim de contas, fotografar é uma forma de comunicar. E quando há reacções por parte do público o seu objectivo foi conseguido.”

“No meu ofício costumo dizer que o que me preocupa é saber se o público gosta ou não. O porquê de gostar ou não já é uma questão “técnica” que nós, profissionais, temos que analisar e agir em conformidade.
Pondo mais uma acha na fogueira, é importante deixar algo a quem vê para completar o que vê. E é aqui, no equilíbrio entre contrastes (espaço, luz, cor) que se dá azo à imaginação. Considerando também a cultura e o contexto do fazer e do observar o feito.
A cor do luto em função da teologia é um bom exemplo. O conforto ou desconforto de uma cor em função da utilização que damos (o quente e frio, por exemplo. Ou a cor dos alimentos – conhece algo azul na natureza que seja comestível?) Sobre cor, interpretações e usos, sugiro o excelso livro “Dicionário das cores do nosso tempo”.
Mas também o espaço dado dentro dos limites da imagem, se corrobora ou contraria o conforto ou desconforto, se é explícito ou sugestivo…
A semiótica da imagem é todo um mundo que encheria toda uma biblioteca! Dominá-la, quer seja porque a estudámos, quer seja por somos instintivos, será, do meu ponto de vista, a pedra de toque.
Depois, é todo um conjunto de técnicas e abordagens, cuja importância é bem maior para quem produz que para quem observa.
Eu diria que uma fotografia pode provocar três tipos de satisfação: desde logo a do autor, por sentir que conseguiu materializar o que imaginou; em seguida a do público, com as emoções que tem ao ser confrontado com ela; por fim a dos demais que, sendo “mestres no mesmo ofício”, tentam descodificar as técnicas e truques usados para com isso aprender algo para a sua própria prática.
E desculpem de novo o alongar-me.”

By me

domingo, 8 de agosto de 2021

Estereótipo arcaico



 

Das velhas ideias formatadas do início da fotografia uma há que sobrevive nas mentes de fotógrafos e fotografados: a fotografia é um momento único.

Claro que cada instante é único e irrepetível. A ciência e a filosofia atestam-no e pouco se alguma coisa se pode dizer em contrário.

E a fotografia, cada fotografia, regista um único momento, uma fracção do continuo espaço/tempo.

Donde, cientifica e filosoficamente, cada fotografia é única e irrepetível, mesmo que se trate de natureza morta, em estúdio e com a mesma luz. É única.

Mas o que me leva a concluir que o conceito de “imagem única” está enraizado muito para além disso é outro aspecto.

A fotografia enquanto registo único já é coisa rara de acontecer. Ainda não há muito tempo, ir ao fotógrafo era algo de quase solene. E mesmo o fazer de fotografias para documentos corriqueiros, como títulos de transporte ou bilhete de identidade, era algo que sucedia de quando em vez.

Nessa raridade da função, todos faziam questão de serem retratados bem arranjados e com um sorriso. Queriam-no os fotografados, sugeriam-nos os retratistas. Queria-se deixar uma imagem de felicidade, de satisfação, de estar de bem com o mundo. E que melhor forma para isso, mesmo que num vulgar documento de identificação, que um sorriso?

Mesmo hoje, com a mais que banalização da fotografia mais ou menos a sério, mais ocasional ou mais de circunstância, o sentir-se a objectiva voltada para nos provoca o sorrirmos. Instintivamente. Mesmo que a vida de pouco nos sorria.

Um exemplo típico da obrigatoriedade de um sorriso na fotografia é a estorieta, velha de muitos anos:

 

“- Sorria, dizia o fotógrafo.

E ele, sentado no banco e sob as luzes, nada.

- Sorria, insistia o profissional.

Nada.

- Oh homem: sorria para a fotografia!

- Não posso, retorquiu o outro.

- Como não?

- Esta fotografia é para um documento profissional e eu sou agente funerário.”

 

Para além de uma simples anedota, veja-se como gente conhecida, do nosso círculo mais próximo ou mesmo das revistas cor-de-rosa, exibe as suas próprias fotografias, de festas ou não: sempre a sorrir, muitas e muitas vezes com um sorriso forçado, ensaiado diria eu, tão artificial na expressão facial como na corporal que já nada conta do que possa estar na alma e que, eventualmente, se possa traduzir num sorriso.

Esta atitude de “um sorriso p’ra fotografia” é um estereotipo arcaico que impõe o conceito de que cada fotografia é um momento único e para mais tarde recordar. E, mesmo que o seja, não conheço ninguém que, em todos os minutos da sua vida, estivesse a sorrir.

Para os que dizem que uma fotografia vale mais que mil palavras e que a fotografia não mente, sugiro que revejam os vossos conceitos.

 

By me

sábado, 7 de agosto de 2021

Regras ou culturas




A regra dos terços tem origem na proporção dourada e esta, por sua vez, no Φ. A que os antigos chamaram divina proporção.
Os antigos misturavam ciência com filosofia e religião e procuravam explicações para o que encontravam no mundo que conheciam. O Φ é, sem dúvida, uma proporção ou razão comum na natureza, ao relacionarmos um sem número de valores. Nos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral.
Assim sendo, consideraram os antigos que a perfeição divina se baseava nessa proporção e, querendo aproximarem-se dos deuses, passaram a incluir essa relação numérica naquilo que faziam: pintura, escultura, arquitectura…
Este conceito foi sendo mantido, como maior ou menor importância até aos dias de hoje.
No entanto, se procurarmos em civilizações que não oriundas na Grécia e Roma, vamos encontrar inúmeras ou uma esmagadora maioria de actos criativos onde o Φ não se encontra. África, Ásia, América, Oceânia. Olhamos para o que fizeram antes da influência europeia e chamamos de “belo”, apesar de a proporção divina ou dourada lá não se encontrar. 
Donde, o número de ouro não é uma regra universal. Não sei se terá alguma coisa de divino, que não o saberia reconhecer, mas não será certamente algo que todas as culturas, em todos os tempos, entenderam como base importante para o conceito de belo.
Acontece que a influência cultural europeia se expandiu de tal forma que muitos dos seus conceitos foram incorporados noutras. E aceites como naturais. 
E os seres humanos, que aprendem desde o berço as noções do certo e do errado, também aprendem a distinguir o belo do restante. Aquilo que os pais e os académicos dizem ser belo é belo e ponto final.
Na comunicação de massas, cada vez mais dominante nos tempos que correm, haverá que satisfazer os destinatários ou público, agradando-lhes nas mensagens que recebem. Comunicação visual incluída. Leitura e interpretação fácil e pouco elaborada. Respeitando códigos simples e por todos reconhecidos como válidos. E isso inclui o vetusto Φ, proporção áurea ou, simplificando, regra dos terços.
Não usar tal implica menor aceitação por parte do público. E menores vendas, menores agrados nas redes sociais, exclusão das galerias de arte comerciais, menos publicidade associada na web, cinema e televisão. 
E, no entanto, como são belas as paisagens pintadas no extremo oriente há séculos! Como são belas as esculturas pré colombianas! Como são belas as ilustrações animistas ou as decorações de tecidos tradicionais!
A todos aqueles que procuram exprimir-se usando o belo: por favor não se atenham às regras ancestrais! Se vos apetecer, alterem-nas, subvertam-nas, ignorem-nas. Procurem o belo dentro de vós, deixando de parte quase tudo o que aprenderam na escola, na academia, na web.
E, principalmente, quando vos disserem sobre um trabalho vosso “Isto não é bonito”, saibam entender que o que vos estão é dizer é antes “Isto não respeita as nossa regras culturais”.

By me

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Desde sempre




Por motivos de ordem logística, hoje tive que transportar a minha câmara ao pescoço.

Não tenho dúvidas: continuo a não gostar de a ter a bater-me na barriga e de a não controlar com o braço.


By me 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Do professor




O assunto tocou-me de perto. De muito perto.

Uma pergunta feita num grupo de fotografia:

“Um bom professor de fotografia necessariamente precisa de ser um bom fotógrafo?”

Achei que teria algo a dizer e, sendo que o poder de síntese não é o meu forte, alonguei-me na resposta.

Aqui fica, com uma imagem de arquivo.


“Não creio que assim seja.

Se começarmos por aceitar que um bom professor não é o que ensina mas antes o que ajuda a aprender, centrando a sua actividade na qualidade da aprendizagem do aluno e não na qualidade do ensino do professor, constatamos que o que importa é que os alunos aprendam.

Na aprendizagem importa que existam as dúvidas, provocadas pelo professor ou surgidas naturalmente no aluno. Na aprendizagem importa que haja curiosidade e vontade de esclarecer as dúvidas, junto do professor ou no restante do mundo.

O papel do professor é, e para além de fornecer, disponibilizar e fomentar os conhecimentos e competências no aluno, o de o levar a procurar o seu próprio caminho, mesmo e principalmente contestando o professor. De preferência, ir mais longe que ele.

Conheço alguns bons fotógrafos que dão aulas, que nada percebem de pedagogia e que são incapazes de levar os seus alunos ou aprendizes tão ou mais longe que eles mesmos.

E conheço alguns professores de fotografia que, sendo medianos fotógrafos, sentem prazer ao serem ultrapassados pelos alunos/aprendizes. São estes que nunca esquecemos com o passar dos anos.

Encontrar alguém que conjugue a excelência nos dois campos é coisa rara.


Os meus cinco cêntimos.”


By me 

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Informação




“Como Serge Daney gosta de dizer, “ficamos cegos diante da hipervisibilidade do mundo.” De tanto ver já não vemos nada: o excesso de visão conduz à cegueira por saturação. Essa mecânica contagia outras esferas da nossa experiência: se antigamente a censura era aplicada privando-nos de informação, hoje, ao contrário, consegue-se a desinformação imergindo em uma superabundância indiscriminada e indigerível de informação. Hoje, a informação cega o conhecimento.”
By Joan Fontcuberta, in “A Câmara de Pandora”

E eu acrescentaria:
O mesmo se pode dizer, sem sombra de dúvida, da fotografia.
De tanto vermos fotografias sofríveis ou medíocres, perde-se a noção do que é bom ou não, afinando os nossos padrões por baixo.
É aqui que livros, exposições e alguns sites, em que as escolhas podem ter duvidosa qualidade mas não costumam ser, servem para definirmos e aferirmos os padrões do que entendemos por bom e muito bom.
E por bom não entendamos apenas o clássico, as abordagens convencionais e os jogos de cor, luz e composição de acordo com as regras habituais.
A experimentação, o fazer diferente, o insólito abordar de algo que estamos fartos de ver mas que nunca imaginaríamos registado daquela forma, mesmo e principalmente que à margem do convencional, fazem parte do “bom” ou “muito bom” desde que falem connosco.
As mais das vezes, não é isto que encontramos nas redes sociais ou nas revistas massificadas de fotografia.
Vendo a quantidade quase que incontável de imagens fotográficas que são disponibilizadas todos os dias, quase que podemos ficar com a ideia que foram feitas por apenas um pequeno punhado de pessoas, de tão semelhantes e inócuas que são.

O ruído provocado pela superabundância de fotografias sofríveis, ou nem isso, impede-nos de ver ou reconhecer boas imagens.

By me

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Férias grandes



 

Não! Na época não existia esta placa. Nem o ar condicionado. Nem a papeleira aparafusada no chão. Não me recordo se o café, à direita, teria toldo mas estou em crer que não também. E, se a memória me não falha, também não existiriam tantos carros nesta rua.

Mas, há mais de cinquenta anos, os prédios eram estes, pelo menos os mais pequenos. Tal como a central rodoviária era esta.

E como sei que era assim, em Santiago do Cacém, em pleno Alentejo? Uma terra onde nunca pernoitei, onde não tenho familiares e onde, tanto quanto recordo, nunca trabalhei?

Era aqui, no edifício da esquerda, que a camioneta parava para almoço.

Camioneta onde eu embarcava de manhãzinha, depois de cruzar o Tejo com os meus pais, num cacilheiro e ainda de calções e estudante do ensino primário, a caminho de casa de meus avós. Na longínqua zona algarvia.

E embarcava sozinho, ao cuidado do motorista e cobrador, levando comigo o farnel para o almoço, comido nesta paragem, na pausa de uma hora.

Para os que hoje fazem os ICs de automóvel ou expressos, viajando no conforto do ar condicionado, saiba-se que era viagem de um dia, com calor abrasador nesta altura do ano. Percorriam-se as estradas nacionais, parando em todas as povoações e paragens de estrada, malas, cestos e sacas acondicionadas no tejadilho.

E eu, pirralho que era, não estava autorizado (nem me atreveria a quebrar as ordens) a sair do edifício. Que os meus cuidadores estavam a almoçar e eu estava por minha conta.

No entanto, nem imaginam como me senti crescido, já ao nível de todos os demais que por ali andavam, quando pela primeira vez levei dinheiro e não farnel, e me disseram para ir almoçar no café em frente à garagem. Creio que o mesmo que aqui se vê. Comido a correr, sempre com um olho no relógio do café e, de seguida, no relógio da sala de espera. Que o medo de ficar em terra era enorme e eu ainda não tido direito a possuir um relógio de pulso, só aquando do exame da quarta classe.

Mas embarquei, já homem-crescido, com um sorriso nos lábios e a sensação de ser o centro do mundo.

No final da jornada, o meu avô esperava-me (ou eu esperava por ele) numa aldeia intermédia, onde subiríamos para outra camioneta que nos levaria ao nosso destino.

Hoje, creio, ninguém se atreveria a colocar um miúdo com menos de dez anos sozinho numa viagem de 300 km para umas boas dez horas de autocarro.

Não sei se o mundo está mais perigoso ou se os receios são exagerados. Por mim, sobrevivi para contar a história, sem mais sobressaltos que o medo de ficar em terra ao almoço.

 

A imagem foi roubada do sítio do costume: a net. Talvez um dia por lá passe, bem na hora do almoço, e vá comer uma sandocha no café. E faça uma fotografia, também.


By me

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