quarta-feira, 18 de agosto de 2021

As bolas de Berlim




Recordo os meus tempos de estudante de liceu.

Os intervalos grandes da manhã e da tarde tinham vinte minutos, ao invés dos demais que tinham dez.

Se o tempo estava bom (leia-se sem chover) era uma correria ao largo em frente ao liceu. Na época só os actuais primeiro e segundo ciclos tinham entradas e saídas controladas. No liceu nada disso acontecia.

Atravessávamos o asfalto do largo pouco movimentado, passando por entre os carros estacionados. Recordo um, Fiat 850 verde, pertença de um contínuo do liceu, que era escovado da poeira todos os dias, à chegada e à partida e, se chovia, era coberto com lona. Pobre viatura, que sofria na chapa o que ao dono não podíamos fazer, de bera que era. A interpretação que faço hoje do seu comportamento de então passa por se vingar em nós, alunos, da partida que a natureza lhe fez: baixa estatura. E fazia-o com ordens descabidas e denúncias ocultas. Ao invés de um outro, que tinha a mais em altura o que a este faltava. E força. E brutidade. Vi-o várias vezes a agredir quase selvaticamente alunos mais rebeldes e, que me recorde, foram uns três ou quatro ponteiros de madeira que quebrou nas costas de alguns de nós. E não adiantava queixas formais ou grupais por parte dos alunos ou respectivos pais: O reitor do liceu pré-revolução era deus todo-poderoso e os contínuos eram os seus agentes de execução, intocáveis e de carta-branca.

Estas fugas no intervalo grande não aconteciam apenas para nos fazer escapar destes “donos-da-chave-da-retrete”. Íamos ter com uma senhora que abancava do outro lado do largo. Recordo-a de cabelo branco encaracolado e avental preto. Do rosto, nada.

Mas dependurado do braço, ou já no chão a seus pés, bem recordo o seu cesto de vime, grande e com asa igualmente grande. Forrado com pano branco, com outro igual a cobrir, continha deliciosas e incomparáveis bolas de Berlim com ou sem creme que, consoante o conteúdo dos nossos bolsos, comprávamos ou trincávamos as de quem as compravam. Que por ali e então, a solidariedade entre putos não era palavra vã.

Mas havia que o fazer rápido, que vinte minutos entre o descer à rua, conseguir fazer o negócio, satisfazer a gula e regressar para a aula seguinte, era coisa pouca e rápida. Entenda-se que o acesso aos pisos superiores se fazia por uma rampa ou por uma escada. E a rampa, que desembocava no átrio principal e junto da biblioteca e sala de professores, era reservada em exclusivo a estes e aos contínuos. Que os pirralhos não tinham direito a por ela subir ou descer em correria ou com ela encurtar o tempo de chegar à aula antes do segundo toque.

As bolas de Berlim vendiam-se no exterior do liceu. Sem que a ASAE ou o ministério influísse ou fiscalizasse. Suponho que uma simples licença de vendedor chegasse. Hoje devem voltar às ruas, por imposição ministerial de exclusão e por motivos sanitários, dietéticos e educacionais. Mas não asseguro que as hoje tenham o mesmo sabor doce, rebelde e de partilha das de então.

 

Nota fotográfica adicional: a tal luz de trás ou lateral de que tanto gosto.


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