Recordo os meus tempos de estudante de liceu.
Os intervalos grandes da manhã e da tarde tinham vinte minutos,
ao invés dos demais que tinham dez.
Se o tempo estava bom (leia-se sem chover) era uma correria
ao largo em frente ao liceu. Na época só os actuais primeiro e segundo ciclos
tinham entradas e saídas controladas. No liceu nada disso acontecia.
Atravessávamos o asfalto do largo pouco movimentado,
passando por entre os carros estacionados. Recordo um, Fiat 850 verde, pertença
de um contínuo do liceu, que era escovado da poeira todos os dias, à chegada e
à partida e, se chovia, era coberto com lona. Pobre viatura, que sofria na
chapa o que ao dono não podíamos fazer, de bera que era. A interpretação que
faço hoje do seu comportamento de então passa por se vingar em nós, alunos, da
partida que a natureza lhe fez: baixa estatura. E fazia-o com ordens descabidas
e denúncias ocultas. Ao invés de um outro, que tinha a mais em altura o que a
este faltava. E força. E brutidade. Vi-o várias vezes a agredir quase
selvaticamente alunos mais rebeldes e, que me recorde, foram uns três ou quatro
ponteiros de madeira que quebrou nas costas de alguns de nós. E não adiantava
queixas formais ou grupais por parte dos alunos ou respectivos pais: O reitor do
liceu pré-revolução era deus todo-poderoso e os contínuos eram os seus agentes
de execução, intocáveis e de carta-branca.
Estas fugas no intervalo grande não aconteciam apenas para
nos fazer escapar destes “donos-da-chave-da-retrete”. Íamos ter com uma senhora
que abancava do outro lado do largo. Recordo-a de cabelo branco encaracolado e
avental preto. Do rosto, nada.
Mas dependurado do braço, ou já no chão a seus pés, bem
recordo o seu cesto de vime, grande e com asa igualmente grande. Forrado com pano
branco, com outro igual a cobrir, continha deliciosas e incomparáveis bolas de
Berlim com ou sem creme que, consoante o conteúdo dos nossos bolsos,
comprávamos ou trincávamos as de quem as compravam. Que por ali e então, a
solidariedade entre putos não era palavra vã.
Mas havia que o fazer rápido, que vinte minutos entre o
descer à rua, conseguir fazer o negócio, satisfazer a gula e regressar para a
aula seguinte, era coisa pouca e rápida. Entenda-se que o acesso aos pisos
superiores se fazia por uma rampa ou por uma escada. E a rampa, que desembocava
no átrio principal e junto da biblioteca e sala de professores, era reservada
em exclusivo a estes e aos contínuos. Que os pirralhos não tinham direito a por
ela subir ou descer em correria ou com ela encurtar o tempo de chegar à aula
antes do segundo toque.
As bolas de Berlim vendiam-se no exterior do liceu. Sem que
a ASAE ou o ministério influísse ou fiscalizasse. Suponho que uma simples
licença de vendedor chegasse. Hoje devem voltar às ruas, por imposição
ministerial de exclusão e por motivos sanitários, dietéticos e educacionais. Mas
não asseguro que as hoje tenham o mesmo sabor doce, rebelde e de partilha das
de então.
Nota fotográfica adicional: a tal luz de trás ou lateral de
que tanto gosto.
By me
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