sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pandemias e divinos


 


Tentando pensar como um crente, que não sou, a origem deste vírus e da consequente pandemia é divina.

Isto na medida em que dificilmente se pode atribuir ao ser humano a sua criação e porque todas as evidências até ao momento apontam para uma origem meramente animal, fora da esfera de influência da civilização.

Talvez por isso, e tanto quanto tem sido do meu conhecimento, a igreja, nas suas diversas organizações e credos, pouco se tem manifestado sobre o assunto.

Estará num limbo ideológico em que não pode acusar o humano do mal e é-lhe penoso atribuir ao divino a origem do mal. E, por outro lado, não será ético sugerir ao Homem que proteste ou combata a acção do Criador.

“Passar por entre os pingos da chuva” parece ser a posição da igreja, enquanto organização hierarquizada e hermética.

Mas talvez que eu, não crente e não frequentador de templos, esteja mal informado.

 

Nota fotográfica adicional: Este é o tipo de luz que mais gosto, vinda da frente e não das costas do fotógrafo.


By me

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Afectos e fotografia



 

Tenho vindo a afirmar, ao longo dos tempos, que fazer ou ter uma fotografia é o resultado de um sentimento de cobiça ou desejo de pose. Por aquilo que nela está iconoficado: o pôr-do-sol, a pessoa, o objecto.

Apenas para dar um exemplo que consubstancia esta afirmação, quantos serão os que fotografam e exibem objectos que possuem? Com que lidam todos os dias? A excepção será, talvez, quando a fotografia e a sua exibição sirva para demonstrar que se possui o retratado – pessoa ou objecto.

E quanto mais precioso é o iconografado mais sacramentalmente se guarda a imagem: álbuns especiais para aquelas férias ou casamento, molduras caras para este ou aquele retrato de um parente ou amado e, cereja no topo do bolo, a carteira onde constam as fotografias de parentes, em regra muito queridos, vivos ou não. Ou, nos tempos que correm, um telemovel onde a luminiscência do ecrã substitui o plástico das carteiras. E, quando se fala nos filhos, netos, namorado/a ou pais, aí está o arquivo de bolso onde se encontram as fotografias mais recentes ou significativas.

 

Mas a fotografia também é uma manifestação de afectos negativos! Fotografa-se o acidente, o insólito, o feio, o incómodo!

E, aqui, há dois tipos de motivos: Ou o exaltar o fotógrafo, mostrando assim com a fotografia, que ele esteve no local, que testemunhou aquela situação ou, menos frequente mas real, como forma de exorcismo do mal retratado, tentando assim que o iconoficado não passe disso e não seja parte integrante da vida do fotógrafo ou exibidor.

Um pouco como sucede com as anedotas, de que tanto nos rimos, e que, se bem as analisarmos, nunca falam de coisas agradáveis ou boas que tenham sucedido aos intervenientes. Pelo contrário, rimo-nos com o mal dos outros como se, com o riso, pudessemos afastar a possibilidade de o mesmo nos acontecer.

Mas há ainda uma terceira atitude negativa que é tida perante a fotografia. Neste caso, não perante o acto de a fazer mas antes para com ela enquanto objecto ou ícone: a negação ou destruição!

O rasgar, queimar, destruir de uma fotografia é uma forma de remover o que nela consta ou conta das vidas de quem assim age. Uma forma de negar o passado ou tentar, com isso, impedir que este se repita ou continue.

Exemplo mais ou menos corriqueiro é o que sucede aquando de uma zanga entre namorados ou quebra de votos de afectos. As fotografias do “outro” são destruídas, na tristeza do privado ou na raiva do público.

Acontece mesmo ser o retratado a exigir a devolução de fotografias que o “outro” possui de si, impedindo que o mesmo “outro” possua o que quer que seja de quem protesta ou reclama. Nem mesmo a sua imagem!

O gesto supremo, então, é a adulteração da fotografia, rasgando-a e destruindo apenas a metade em que se vê o “outro”, como que um afirmar que se continua por cá, vivendo, mas que o “outro” já não faz parte dessa vida.

Refira-se, também, nesta relação de afectos negativos para com a fotografia, a adulteração bem mais sofisticada da imagem que foi o caso (quem sabe se ainda é?) do apagar em fotografias a presença de gente caídas em desgraça perante o regime. Como sucedeu, por diversas vezes, na União Soviética ou na Alamenha Nazi, para citar apenas casos públicos e notórios.

 

É assim que se constata que a relação com a fotografia (ou com a imagem no seu todo) é uma relação de afectos, de desejos de pose ou de repúdio, como os agora descritos.

E você? Já destruiu alguma fotografia?


By me

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Orgulhoso ou nem por isso




 Fazemos coisas que queremos e coisas que não queremos.

Destas últimas são, por exemplo, o lavar da loiça, o pagar impostos, o suportar as filas de trânsito.

Não as queremos fazer mas é difícil (só difícil) fugir a elas.

Já das que queremos, pode-se referir tomar banho, amar ou, no meu caso, fotografar.

E se do banho não há motivo para ter orgulho, mas tão só a satisfação posterior, no amar também não há motivos para estarmos orgulhosos, excepto no que toca ao orgulho de sermos amados. Já a fotografia é motivo de orgulho. Aquilo que faço é o resultado do meu esforço, nem sempre bem sucedido, mas sempre de vontade. E conseguir superar-me e ir mais longe hoje que ontem é motivo de orgulho.

Mas há outras coisas que faço porque quero e porque a isso sou obrigado e das quais pouco, se algum, orgulho tenho. Uma delas é o ser cidadão e fazer questão de o ser.

A cidadania não se limita ao acto eleitoral, ao manter as ruas limpas e cumprimentar quem passa. Passa por se ser interventivo, participativo, contestatário e solidário, ter opinião e fazer questão de ser coerente, passa por ser e não apenas estar.

E isto é algo que quero mas também ao qual me sinto obrigado. Não o fazer, mesmo que uns dias de uma forma mais visível e outros bem mais discreto mas não menos frutuosos, é renegar aquilo que sou e aquilo que quero ser. É não fazer aquilo que quero e aquilo a que me sinto obrigado, bem para além de leis e governos.

De ser mais que estar não me orgulho. Sou, ponto final. Tal como sou barrigudo. Sou.

O único orgulho que pode advir deste ser é o constatar resultados disso. Não me orgulho de atravessar a velhinha na rua. Mas orgulho-me que ela possa lá estar. Não me orgulho das aulas que dei, mas tenho um orgulho imenso do sucesso dos alunos. Não me orgulho de levar um sobrinho a uma manifestação, mas fico inchado de o ver a manifestar-se porque percebe e acredita no que diz e faz.

Há quem se orgulhe do carro que tem, do emprego que conseguiu, das férias que fez, da corrida que ganhou. O meu orgulho surge do que me sai das mãos, tendo por único adversário eu mesmo e os meus próprios limites.

O resto é porque quero e porque me sinto obrigado a isso.


By me

sábado, 10 de outubro de 2020

Plasticidades - Verso e reverso




Verso

Um destes dias apresentar-me-ei no Parlamento, pedirei respeitosamente a palavra e, quando me a derem, lerei a minha proposta de revisão do código civil, penal, comercial, fiscal, …

Tratar-se-á de uma obra volumosa, de muitas páginas, tendo escrito na última a palavra “continua” e coisa nenhuma em todas as outras.

O bicho-homem, na sua busca de uma sociedade perfeita, justa e livre, acaba por fazer exactamente o oposto: usa uma teia intrincada de leis, regras códigos, normas, imposições e proibições que, ao invés de o libertarem, apenas o mantém limitado.

Na expressão plástica acontece o mesmo. Os autores vêem-se confrontados com os limites dos suportes. Definidos em formas padronizadas pela indústria e com regras concebidas em tempos de antanho e consideradas inabaláveis.

No caso da fotografia ainda se vai mais longe, levando o acto de distribuir as formas dentro do suporte com o nome de “enquadramento”. Colocar dentro de um quadro ou quadrado, com limites bem visíveis.

As indústrias de câmaras, papeis, molduras, imprensas, jornais, TVs, cinema, web, revistas… seguem pela mesma linha.

Um quarto ou meia placa, dois por três, três por quatro, widescreen, cinemascope, meia página, mancha inteira, duas colunas…

Estou em crer que o artista plástico mais livre da história do Homem, terá sido o nosso ante-ante-antepassado. Com as suas pinturas e gravuras rupestres e a ausência de limites ou imposições.

Talvez que o seu descendente actual seja o pintor de graffitis, mas mesmo assim é discutível.

Mas certamente não serão os fotógrafos que, nas artes plásticas, se comportam com mais liberdade ou a assumem, atados que estão a regras e limites.

P.S.: Não sei se sou fotógrafo, se não sou fotógrafo ou se sou uma coisa ambivalente, vivendo dentro das minhas próprias contradições!

 

Reverso

Vir aqui, ou onde quer que seja, gritar “Abaixo a regras e as leis! Viva a liberdade total!” é bonito.

Dá um aspecto de rebeldia, de excentricidade, de enfant terrible, agravado pelo facto de quem o diz não ser exactamente um adolescente a querer marcar um lugar ao sol.

Se a estas afirmações lhe juntarem um toque de anarquismo e se falarmos de artes, a classificação passa para um intelectual, eventualmente culto, que sabe do que está a falar.

Mas como a Terra gira sempre e mesmo nos pólos existe o dia e a noite, temos que ver a questão do outro lado também: as convenções, as razões da sua existência, a sua eficácia e necessidade. Mesmo que falemos de arte e de formas de expressão.

A espécie humana é gregária. Se exceptuarmos alguns excêntricos que decidem levar uma vida de ermitas, todos os indivíduos se juntam, tentando usar as suas próprias fraquezas individuais em proveito próprio e dos outros. Unidos temos mais força.

Mas esta vida em grupo só é possível se nos entendermos, se comunicarmos os nossos desejos ou necessidades e se os outros elementos do grupo (um continente, um país, uma religião, uma família) entenderem o que queremos dizer.

Até aqui nada de novo!

As artes, maiores ou menores - e incluamos nelas a fotografia - são uma forma de expressão individual mas também, quiçá principalmente, uma forma de comunicação.

Haverá alguns que dirão que fotografam (pintam, escrevem, compõem, etc.) para si mesmos, pouco lhes importando a reacção dos seus iguais.

Isto é uma mentira do tamanho de um comboio!

Por muito egocêntrico que se seja, por muito auto-suficiente que se se declare, por muito que se aparente uma indiferença total pela opinião dos demais, sempre se sente satisfação quando o nosso trabalho é reconhecido e agrada. Fotografias incluídas.

Para que este agrado aconteça, há que conhecer o que e como os outros gostam e, de algum modo, ir ao seu encontro. A mais das vezes até não é difícil, já que somos fruto de culturas semelhantes ou iguais e a globalização vai-as aproximando a cada dia que passa, estreitando os conceitos de bom e de mau – no relacionamento entre indivíduos ou grupos e nas artes e comunicação.

Os que hoje vivem, nasceram e cresceram sob a égide dos audiovisuais (fotografia, cinema, tv, web) que, de tanto divulgados, formataram os gostos e as preferências. E os códigos de comunicação, já agora.

Assim, é mais ou menos fácil de fazer um trabalho fotográfico que agrade. Basta usarmos como referência os gostos colectivos, escolhermos deles uma linha ou abordagem que mais nos agrade, introduzir um pequeno elemento de diferença que crie alguma surpresa et voilá: aí estamos nós a comunicar e a agradar!

Aqueles raros génios que rompem com os códigos e normas de comunicação e expressão artística estabelecidos são, em regra, repudiados. Pelo menos numa primeira fase. Porque o academismo não aceita a fuga aos cânones tradicionais, porque o comum do consumidor ou receptor da mensagem não o entende e aos seus códigos e não quer ter trabalho para o decifrar…

Com o passar do tempo, este novos códigos acabam por ser entendidos, vingam e, alguns, são elevados à categoria de mestria.

Mas a maioria dos indivíduos não têm a capacidade (ou não se querem dar ao trabalho) de inovar tão radicalmente. Contentam-se em usar os códigos de comunicação instituídos (ou não são capazes de deles se afastarem) e procuram que os seus iguais os descodifiquem de imediato, na busca do reconhecimento e da satisfação.

Esta atitude conservadora, que não é nem boa nem má, é tanto mais vital quanto quem está a comunicar é um profissional ou especialista de comunicação. O seu trabalho é fazer passar mensagens (escritas, pintadas, fotografadas) e quanto maiores forem as dificuldades na percepção do seu conteúdo, mais difícil se torna ele encontrar trabalho ou clientes.

Estes profissionais debatem-se diariamente com o mesmo problema: usando as regras para a facilidade e eficácia da comunicação (códigos conhecidos, estéticas reconhecidas, uma pitada de surpresa), ficam muitas vezes limitados no até onde podem ir na inovação. Em regra, não muito longe.

E isto passa-se com os fotógrafos também, que a fotografia é uma forma de comunicação. Quer se trate de fotógrafos amadores ou profissionais. Se pretendem que o seu trabalho, a sua expressão - individual ou a pedido - seja entendida pelos seus iguais, pelo público anónimo das revistas ou bem identificado na família, amigos ou conhecidos, tem que usar os códigos, as regras, os métodos reconhecidos por eles. E, se puder ou souber, colocar uma pitada de surpresa pelo caminho para fazer a diferença.

Terá se que se ater às paletes de cor dos suportes, aos formatos industrializados, às perspectivas convencionadas e inteligíveis, aos sentidos de leitura e aos suportes finais de exibição.

Não respeitar os códigos de comunicação, mesmo na fotografia, é correr o risco de ser recebido com um sorriso de condescendência ou mesmo a indiferença explícita.

E quem é que gosta de assim ser tratado?


By me

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Fotografia como espelho



 

O ser humano precisa de se afirmar no grupo a que pertence. Pelo que é e pelo que faz.

E um retrato, um registo para a posteridade, feito formalmente ou em tom de brincadeira, é uma forma de afirmação, sendo objecto de observação e critica cerrada por parte do retratado.

Curioso é de observar que como se manifesta ou critica sobre o que é ou o que faz expresso em retrato. E são dois grupos, manifestamente distintos. A fronteira fica algures na casa dos quarentas, nuns casos mais acima, noutros mais abaixo.

No grupo dos mais novos, o que é observado e/ou criticado é aquilo que faz.

As poses, as expressões, as posições corporais, os relacionamentos com outros retratados.

O eventual – ou frequente – desagrado não se manifesta sob a forma de “não gosto” ou “fiquei mal”, mas antes pela ironia, pelos comentários jocosos, pela auto-critica. Frequentemente, com o menosprezo da sua própria aparência e uma crítica acutilante sobre os demais no grupo retratado.

Para estes, o que é importante num retrato não é o que são mas antes o que fazem e como o fazem.

Por seu lado, os pertencentes ao grupo mais velho preocupam-se francamente mais com o que são ou aparentam ser.

As manifestações de idade constatáveis pelo peso ou volume, pela posição do esqueleto, pela cor da pelagem ou pelas rugas são os factores que mais procuram ver num retrato, numa tentativa inútil de verificar se não parecem ser o que são. Que os olhos dos outros não vejam aquilo que sabem ser.

Estou em crer que a felicidade passa por uma sã convivência com o “Eu” físico, tentando melhora-lo se se o entender, mas não o negando ou repudiando.

E, acima de tudo, não ligando a mínima à opinião que os outros possam ter sobre si. Ao vivo ou no papel.

 

Nota adicional: a imagem mostra o local onde pararam para serem fotografados umas muito largas centenas de pessoas, no âmbito do meu projecto “à-lá-minuta”. O enquadramento era sempre este, variando apenas as poses dos fotografados, de corpo inteiro e decididas pelos próprios. Ocasionalmente, havia quem usasse o banco como forma de “aparecerem no boneco”.


By me