quinta-feira, 13 de maio de 2021

(A)normal


 


Uma ocasião, há já muitos anos, fiz uma brincadeira com um compincha de fotografias:

Escolhemos uma zona delimitada na cidade, poucas vielas de uma “vila operária” e combinámos fotografá-la em conjunto. Duas condicionantes: teríamos apenas uma hora e haveria que usar todo o rolo de 36 exposições. Quando reveladas, compararíamos os trabalhos.

Não havia nenhuma competição. A ideia foi compararmos abordagens e visões, nas suas diversas vertentes: luz, perspectiva, momento…

Foi tão divertida a experiência, tanto na tomada de vista como na comparação, que repetimos o exercício noutras ocasiões e noutros locais, acrescentando outros compinchas à brincadeira. Que era muito séria, diga-se de passagem. E com a qual nos fartámos de aprender.

Uma das coisas interessantes que daqui resultou foi apercebermo-nos da objectiva preferida de cada um. Havia quem optasse por usar a grande angular, havia que preferisse a “normal”, havia quem fotografasse maioritariamente com “meia tele”. Com tudo o que isso implica de variações nas imagens resultantes. Nem melhores nem piores, apenas outras visões, outros problemas, outras soluções.

Acabámos por perceber que o conceito de “objectiva normal” era (é) um quase perfeito disparate, uma formatação técnica e comercial dos fabricantes.

Em boa verdade (e falando de câmaras que produzem negativos com 24mm por 36mm, vulgo reflex ou SLR ou nas full frame) a objectiva que mais se usava ou usa é de 50mm.

Dizem os entendidos que é a que tem o ângulo de captação mais próximo da visão humana. Mas também é que mais facilmente se constrói com maior abertura de diafragma, o que acaba por a transformar numa objectiva multi usos, prática e luminosa.

Mas se dermos um conjunto variado de objectivas fixas ou zoom a vários fotógrafos com alguma experiência e domínio de perspectiva, acabaremos por verificar que talvez nem metade deles a use preferencialmente, se as condições de luz não forem exigentes. Optam por grande angular (24mm, 28mm, 35mm) uns, por meia tele (85mm, 90mm, 100mm, 135mm) outros.

O que levará, então, a esta variedade?

Em boa verdade, a nossa capacidade de visão é particularmente estreita. Considerando a nossa “objectiva”, o cristalino, e a área “útil” da nossa retina, variará entre 1º e 3º, dependente do individuo estudado. A objectiva de 50mm (novamente em película de 35mm ou full frame) tem um ângulo de captação de cerca de 46º.

As diferenças entre uma e outra, para que à segunda se chame de “normal” prendem-se com a nossa capacidade de concentração, com a capacidade imobilizar mais ou menos os movimentos do globo ocular, com a densidade de terminais nervosos sensíveis à luz na retina, desde a zona mais “útil” até à “visão periférica”. Isto do ponto de vista meramente fisiológico.

Por outro lado, haverá que considerar a forma como cada um se relaciona com o mundo envolvente.

Gente há que vive mais interventivo, mais próximo dos acontecimentos e interagindo mais com o que o cerca; gente há que tem uma atitude mais distante, mais de observador que de “actor”, ficando um pouco mais afastado da acção envolvente. Isto não é nem bom nem mau, é apenas personalidade e forma de viver. Que se reflecte, naturalmente, nas preferências sobre o ângulo de visão da sua câmara.

A isto acrescente-se o factor comunicacional. Pretende o fotógrafo mostrar o que viu e sentiu ou colocar o espectador consigo e ver sentir com ele? Cada uma destas abordagens tem necessidades diferentes de perspectiva e, como é óbvio, necessidades diferentes de ângulos de captação. A grande angular coloca o espectador lá, no meio da acção, a meia tele cria um espaço de segurança ou de conforto.

Por fim, haverá que considerar as condições em que o fotógrafo costuma trabalhar. A reportagem (eventos, guerra, política…) implica estar perto dos acontecimentos, pelo que a solução é, em regra, a grande angular. Excepção feita ao desporto, em que a posição possível é distante.

Já a paisagem, a arquitectura, a publicidade, o retrato, permitem ou exigem um maior distanciamento, com uma perspectiva que conduz a uma reprodução mais “geométrica” dos assuntos.

O muito abordar um determinado tema e com as soluções técnicas correspondentes acaba por “viciar” o fotógrafo em algum tipo de ângulo de visão, acabando por ser esse a sua “visão normal”. E procurando a objectiva correspondente.

Tenho para mim que não há um “objectiva normal”, tal como não haverá uma “visão normal”. As condições de trabalho e respectivos “vícios”, aquilo e como queremos e gostamos de contar e a personalidade do fotógrafo condicionam em muito essa normalidade.

No meu caso específico, a objectiva com que mais gosto de trabalhar (35mm ou full frame) é a 90mm. Em formato APSC (crop 1,5) é a 50mm.

Mas se há coisa que me dá prazer é forçar-me a encontrar soluções com ângulos que não os meus habituais. Quer seja usando o telemóvel, com a sua grande angular, quer seja saindo de casa com o firme propósito de fotografar nesse dia sempre em tele ou sempre em grande angular. E encontrar as soluções técnicas e estéticas para contar o que quero.

Recomendo este exercício a todos os que se querem conhecer melhor na prática do que fazem, seja qual for a experiência fotográfica que tenham.

Na imagem, algumas das teleobjectivas que possuo, mas que uso apenas em ocasiões especiais.


By me

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