terça-feira, 3 de dezembro de 2019
O tempo e a fotografia
Há uns anos valentes a escola onde eu leccionava organizou uma visita de estudo a Mérida, Espanha. Inseria-se ela na disciplina de História e tinha por objectivo o contacto de perto com a civilização Romana.
Aproveitei o ensejo e fui com a maralha. Foi francamente divertido e bastante instrutivo
Divertido porque os alunos fizeram questão que fosse com eles visitar os diversos bares que estavam abertos nessa noite. Alguns deles perceberam a segunda parte de uma “arengada” que lhes dava na primeira aula que tinha com eles, de permeio com a “apresentação e etc.”: “Preparem-se que quando for para trabalhar serei o último a cair de cansado e quando for para ir p’ros copos serei o último a cair de bêbado.” A primeira parte já tinham constatado, nesta noite perceberam que a segunda não era fanfarronice minha.
Instrutivo com aquilo que aprendi sobre a cidade e os Romanos, que o professor de história sabia o que fazia.
Assisti, por exemplo, ao acordar da cidade, após uma curtíssima noite de sono pouco reparadora. Faço sempre questão de ver despertar as cidades que visito. O limpar das ruas, os primeiros a vir ao pão, ainda de roupão, o abrir das lojas, a luz rasante…
Constatei também a enormidade de janelas gradeadas nos pisos térreos e nos primeiros pisos, que muito me contaram sobre a segurança e o nível de pobreza da cidade, incrustada numa zona agrícola e industrialmente pobre.
Assisti a parte da missa na principal igreja local. Conta-nos muito sobre as pessoas, o ver quem e como vai à missa dominical. Mesmo sendo agnóstico como sou. E, para meu espanto, a eucaristia foi co-celebrada por um sacerdote cego. Coisa estranha mesmo!
Claro que os vestígios romanos, museu incluído, encheram os dois dias e a memória. Com excelentes explicações a acompanhar. Uma delas não esqueço, por muito que viva.
Junto ao teatro romano, nas traseiras, admirava eu as monumentais colunas, com os colossais capiteis no topo. Decorados de modo intenso e difícil de ver cá de baixo.
Comentei a dificuldade e questionei a utilidade de tal trabalho, principalmente tendo em conta as técnicas de então. A resposta ficou-me até hoje: Tempo!
As festas na cidade, que era a segunda Roma do Império, duravam semanas. Vinha gente de toda a península para assistir ao teatro, aos combates, às corridas, fazer negócio, ver gente após longas separações… a cidade enchia e o tempo não faltava.
E não faltava tempo para se estar parado a olhar para cima e ver, mesmo que com dificuldade, os relevos gravados nas colunas e nos seus cimos. E as pessoas estavam.
Mais tarde nessa visita, e no museu, tive oportunidade de ver de perto um desses capiteis. Pedra única, monumental mesmo, finamente trabalhada, pese embora fosse para ser vista a uns bons metros de distância. Mas havia tempo para ver. E para pensar nos significados explícitos e implícitos.
Passados que são vinte séculos sobre o esculpir os capiteis, a questão do tempo de observação mantém-se tão actual quanto então. Com a diferença que as unidades de tempo usadas para se ver arte ou equivalente são bem díspares.
No caso da fotografia, e na forma como hoje é consumida, o tempo de observação é crucial. E depende do como e onde a vimos.
Se numa galeria ou museu, se numa revista ou livro, se num ecrã de computador.
Aqueles que já tiveram oportunidade de ver trabalhos impressos de Ansel Adams ou David Hockey ou Helmut Newton bem entendem o que quero dizer. Podemos estar uns cinco ou dez minutos a olhar para uma das suas fotografias na parede de um museu ou galeria que dificilmente nos cansamos. Mas gastamos uns dois minutos (120 segundos) se vistas num livro ou revista, mesmo que muito bem impressas. Já quinzes segundos para ver uma delas num site, por muito grande que seja a qualidade e resolução, será um exagero de tempo.
Consumimos imagens em função do suporte e da nossa própria disposição. E o tempo e disposição para ver fotografias numa parede não é igual ao que temos ou dedicamos a um livro. Já na web… bem sabemos que atrás de uma vem outra e não queremos perder nenhuma.
Esta forma de consumir fotografia conduz, sem sombra de dúvida, a condicionar a forma como são produzidas. A facilidade de leitura, o imediatismo da possível interpretação, os contrastes e saturações empregues, tudo em função do suporte. Não apenas da sua qualidade como também do seu tamanho. E do tempo que sabemos que durará a sua observação. Tal como da durabilidade que terá na memória de quem a vê Porque, assumamo-lo ou não, todos nós queremos que os nossos trabalhos fiquem na memória do público. Quer pela forma, quer pelo conteúdo.
Faz assim sentido que, quando fazemos uma fotografia (ou um conjunto de fotografias), consideremos o como serão elas vistas. E onde. E por quanto tempo. Se com todo o tempo do mundo, como então se observavam os capiteis, se na voragem de uma ligação rápida de net e mais rápido e efémero consumo.
E quando nos habituamos às velocidades vertiginosas das auto-estradas fotográficas, fotografamos em consonância: rapidamente, menos ligando aos detalhes dentro da tirania do enquadramento, simplificando mesmo tudo isso para que se adeqúe ao que sabemos vir a ser uma leitura na diagonal, sem tempo para digerir detalhes ou quantidade de informação visual.
E contra mim falo, no consumo e na produção. Mesmo tendo o hábito de, quando não em modo de ensaio, fazer apenas uma imagem, mas com a certeza de estar como quero.
Teríamos muito a aprender, se fotografássemos na mesma altura em que se construíam os capiteis de Málaga, Espanha.
By me
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário