E porque o Natal se aproxima a passos largos e com ele a
época das prendinhas, aqui fica uma histórinha, velha de mais de cinquenta
anos, que nada tem a ver com natais ou prendinhas.
Frequentava o então 2º ano do ciclo preparatório, hoje
conhecido por 6º ano. Os tempos eram outros e não havia cá mi-mi-mis: a partir
da 4ª classe, por vezes antes, ir para a escola era tarefa de cada um, fazendo-se
o trajecto sózinho a pé ou de autocarro. Que isso de ir acompanhado no carro
dos pais ou em transporte escolar era coisa de abastados, e nós não o éramos.
Entre a paragem do autocarro e a escola havia, numa esquina,
uma papelaria e tabacaria. Vendia cadernos, folhas para os cadernos, lápis,
borrachas, jornais, tabacos, fósforos e brinquedos.
O material escolar compravamo-lo na papelaria da escola: não
só era mais barato como as capas dos cadernos onde colocávamos as folhas tinham
que ser compradas lá, porque continham o nome e o logotipo da escola. As folhas,
pautadas, quadriculadas ou lisas, tinham aquelas duas riscas verticais
vermelhas, uma de cada lado, que em circunstâcia alguma estávamos autorizados a
ultrapassar.
Os cigarros não me recordo de lá ter comprado, ainda que
fosse por essa altura que lhes comecei a dar uso. Talvez fósforos, caixas pequenas
de quarenta, que as carteiras eram mais caras.
Já os brinquedos... esses eram apenas cobiçados nas montras,
que só pelo Natal ou pelos anos tínhamos direito a novos. Eventualmente, se a
passagem de ano fosse algo que valesse comemorar... mas não era, que passar era
o que se esperava que acontecesse.
Acontece que numa ocasião a montra foi mudada. E, lá na
ponta e a meia altura, foi colocada uma pistola. Nem sequer era de fulminantes,
as que mais cobiçávamos. Nem sequer era trabalhada com relevos no seu plástico
brilhante e metalizado, a imitar as dos heróis da banda desenhada. Era uma
pistolinha desproporcionada, de coronha curta e branca e cano longo.
Apaixonei-me por essa pistola. Ainda não tinha bem idade
para me apaixonar por raparigas, mas a vida é feita de paixões e calhou ser
aquela pistola.
Bem que pedi por ela em casa. Nem pensar. Não era Natal, eu
não fazia anos e nada justificava uma prenda fora de tempo. Nem sequer, se bem
recordo, as minhas notas da escola. E o preço, dezasete escudos e cinquenta
centavos, era uma exorbitância para um capricho.
Mas não desisti! Passei a sair do autocarro umas paragens
antes para que o bilhete fosse mais barato (nem se sonhava então com passes
sociais ou escolares), passei a saltar os lanches ou a encurtá-los e, ao fim de
uns meses acabei por comprar a bela da pistola que ía namorar na montra todos
os dias, sempre com medo que outro apaixonado a levasse.
Claro que tive que explicar em casa a sua posse, que a minha
muito parca semanada não a justificava. Não me ralharam os sacrifícios e creio
terem feito bem, que foi o brinquedo que mais durou na minha mão, tendo perdido
a conta aos índios e bandidos que com ela matei. Recordo que pelos meus vinte e
tal anos, numa mudança de casa e no fundo de uma caixa, ainda havia o que
sobrava dela.
A papelaria e tabacaria ainda existe no mesmo local. Não sei
se com o mesmo nome e, muito provavelmente, com outros donos e empregados. Mas
com a mesma montra lateral, incuindo a tal do lá fundo. E se ainda se exibem alguns
poucos brinquedos (que estes serão muitos e sem vidro a proteger nos super e
hipermercados e a preços muito mais acessíveis, mesmo nos tempos que correm)
vemos também, onde em tempos brilhou a minha paixão, lenços descartáveis,
pantufas, detergentes, papel higénico, desodorizantes e guardanapos.
O que acaba por ter graça no meio de tudo isto, é o ter sido
junto a esta mesma montra, quase meio século depois, que aguentei a pé firme, e
por muito tempo, por aquilo que viria a ser uma outra paixão, essa ainda viva e
a ser vivida. Mas isso são outras histórias.
By me
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