Quando
falamos de ética, de códigos de conduta, de deontologia, regra geral falamos de
situações que aconteceram a terceiros e cujo resultado motivou essas meditações
e definições.
Mas
quando digo “regra geral” significa que, por vezes, falamos com conhecimento de
causa, que alguma ou algumas coisas nos aconteceram ou fizemos que nos conduzem
a esses pensamentos e conclusões.
Agora,
e neste casos específico, falo de terceiros.
A
fotografia é de Horst Haas, bem conhecido repórter de guerra, com imagens impressionantes,
algumas premiadas. Foi feita em Dacca, no Bangladessh, em 1971. Sugiro que se
procure mais informação sobre esta situação em particular.
O
texto é um excerto do livro “O pintor de batalhas”, da autoria de Arturo
Pérez-Reverte, escrito em 2006.
Recomendo
a sua leitura, não apenas enquanto romance, mas por aquilo que nos diz sobre a
actividade fotográfica.
“…
Agora
Markovic riu-se com vontade, contente. Um riso franco, sincero. Acabou o seu
cigarro, apagou-o no frasco de mostarda e riu-se de novo. Depois ficou mais um
tempo a olhar para o mural e, por fim, apontou para “The eye of war”, que
continuava em cima da mesa. Há duas fotografias suas muito conhecidas, disse.
Estão nesse livro. De África. Um homem que espancavam entre vários e que depois
mataram a golpes de machete diante da sua máquina. Sabe a que me refiro?
-
Claro. Freetown, na Serra Leoa. O homem que mataram ali. Uma fotografia antes e
outra depois.
Markovic
concordou novamente, satisfeito. Era interessante, disse, comparar essas duas
fotografias com as imagens de uma reportagem que vi na televisão sobre
fotógrafos de guerra. Ignorava se Faulques estava a par, mas também aparecia
nessa reportagem, numa sequência gravada durante esse acontecimento. A respeito
das fotografias, na primeira via-se como espancavam a vítima e lhe batiam com
machetes, e na segunda como jazia no chão, sangrando, cheio de cortes. No
entanto, nas imagens de televisão que gravavam nesse momento, filmadas um pouco
mais atrás, aparecia Faulques disparando a primeira fotografia, e depois, de
joelhos, pedindo para não matarem o homem. Numa posição de quem reza, ou
implora.
O
pintor de batalhas fez má cara.
-
Não fui convincente.
Isso
também não figurava entre as suas melhores recordações. Se qualquer guerra
significava um caminho até ao inferno, África era o atalho. Tchac, tchac.
Aquele estalido de machetes acertando em carne e ossos era uma coisa que também
não se podia fotografar ou pintar. Alguns sons eram perfeitos em si mesmos e
tinham cor: o verde delicado nos tons médios e longos de um violino, o
azul-escuro do vento nocturno, o cinzento do bater da chuva na janela. Mas era
impossível compor aquele estalido na paleta. Os seus contornos desapareciam tal
como a cor nos planos de Cézane.
-
Não os convenceu, efectivamente. – Markovic olhava para ele com atenção. –
Embora confesse que me surpreendeu vê-lo fazer isso. Achava-o uma testemunha
indiferente.
-
Aí tem a sua resposta. Às vezes é compatível fotografar e pensar.
-
De qualquer forma continuou a trabalhar. Tirou a segunda fotografia com o homem
morto aos seus pés… Pensou, no intervalo, que talvez o tenham matado porque
você estava ali?... Que o fizeram para que o fotografasse?
O
pintor de batalhas não respondeu. Evidentemente que o pensara. Suspeitava mesmo
que era isso que tinha acontecido. Agora sabia que nenhuma fotografia era
neutra ou passiva. Todas se repercutiam no meio, nas pessoas que enquadravam.
Em cada um dos infinitos Markovic de cujas vidas a lente se apropriava. Por
isso Olvido só fotografava lugares e objectos, nunca pessoas; tinha sido
objecto das máquinas fotográficas tempo demais para ignorar os perigos. As
responsabilidades. Enquanto viajaram juntos pelas guerras, fora ela quem
conseguira manter-se à margem, não ele.
-
Acha que ajoelhar-se durante dez segundo o redime? – insistiu Markovic.
Faulques
voltou ao presente devagar: a torre, o homem que estava ao seus lado olhando
para o mural. Depois de meditar um momento, encolheu os ombros.
-
Outras vezes a minha máquina evitou algumas coisas.
…”
.
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