segunda-feira, 4 de maio de 2015

(uma) História





A conversa surgiu com uma naturalidade que lamento.
Uma vez mais declarei que não queria dar o meu NIF para uma factura e que, se ela tivesse andado a fugir à PIDE também não daria.
E conclui dando um exemplo, hipotético mas que a história nos diz poder ser verdade:
“Imagine que passa por uma livraria e compra um livro. Tempos depois. Bate-lhe a polícia à porta, questionando-a sobre esse livro, que eles sabiam que havia comprado, e que entretanto passara a proibido.”
A resposta abanou comigo. E já conheço a senhora há anos, pessoa por quem tenho respeito. Aliás, só poderia ter respeito por quem confecciona e serve o prato onde como regularmente.
“Sabe, eu não gosto de ler. Tenho alguns livros em casa, mas não gosto. Canso-me, aborrece-me, não tenho paciência. Até mesmo quando tenho que fazer as entradas e saídas da dispensa para cozinhar, me aborrece ter que escrever aquilo tudo.
Eu sei ler e escrever. Tirei a quarta classe já depois de casada, para um emprego que o exigia, na câmara, mas depois não calhou ficar com ele. Não tenho paciência para ler ou escrever.”
A senhora em questão em 58 anos, uma tatuagem feita num braço aos 16 (contou-mo ela) e que lhe valeu uma valente tareia da mãe, que não queria. A conversa é sempre brejeira, bem disposta e mete-se com toda a gente com uma graça que lhe é única.
Disse-lhe:
“Teve azar com os livros que leu. Ou com a ou o professor que teve, que não lhe mostrou o mundo maravilhoso que há nos livros.”
“Pois, mas agora já é tarde. Não há nada a fazer.”
“Há sim senhora! Vou fazer-lhe uma proposta desonesta!”
“As desonestas é que têm graça. Conte lá!”
“Se lhe oferecer um livro, que acho que a senhora é capaz de ler e de gostar, a senhora lê-o?”
“E acha que eu sou capaz?”
“Acho que sim. Eu escolho um pequenino, para não cansar, sem palavras complicadas e com uma história bonita. Quem sabe se não passa a gostar? Olhe que os livros, em nós aprendendo a gostar deles, são um mundo lindo, de sonho. Se os soubermos escolher, claro.”
“Combinado! Traga-o lá que eu vou ver se sou capaz e se gosto. Eu até faço anos logo no princípio do mês que vem!”

A conversa foi ontem. Não foi mais longa que o meu tempo era curto e, entretanto, chegou mais gente que não tinha que ouvir aquela combinação.
Hoje não calhou passar por uma livraria. Daquelas a sério, com livreiros e tudo.
Mas amanhã, nas voltas que penso dar, passarei por uma ou duas. E tenho dois ou três títulos na cabeça. E o primeiro surgiu-me logo à cabeça na altura: “História de uma gaivota e de um gato que a ensinou a voar”, de Luís Sepúlveda.
Vou meter conversa com quem estiver atrás do balcão, pedir a sua opinião e logo vejo.
Mas, raios me partam: aquela senhora há-de descobrir os livros. Mesmo que, no final, continue a dizer que não gosta de ler. Mas há-de o fazer depois de ter nas mãos algo de bom e à sua medida.

Já agora: quem não conhece, aproveite a dica.

By me

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