quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sobre uma fotografia que não mostro





Sobre uma fotografia que não mostro (*)



Tropeço, numa rede social, numa fotografia que me deixou a olhar demoradamente.

O título dado, e sem mais texto, é “Mary Miller’s last seconds by Russel Sorgy, May 1942”.

A fotografia mostra a esquina de uma rua onde está a entrada de um hotel. É vertical e vemos o piso térreo e o primeiro andar. Neste espaço vemos a indicação de hotel e seu nome, anúncios na montra e um clássico americano de barbearia.

A meio caminho, entre o topo e a base da fotografia, uma mulher. Que cai. Está horizontal, de braços e pernas abertas, meio descomposta no que toca a roupas. Deduzimos que não sobreviverá à queda. E, se não pela imagem, o próprio título no-lo diz.

Fiquei quedado na imagem. Pelo instante aqui registado, único como todos os instantes da vida, pelo fim de vida aqui antecipado, pelo insólito da tranquilidade aparente apesar da morte anunciada, pela perfeição da composição de imagem.

E fiquei curioso. Não conhecia a imagem, nem quem seria Mary Miller, nem o fotógrafo. Tratei de ir saber um pouco mais.

Encontro um excelente artigo no servidor de blogues “wordpress”, sob o título “The 1942 Genesse Hotel Suicide”.

Conta-nos a articulista, de seu nome Mary W. Mathews, alguns detalhes sobre quem cai e a sua história, retirados de jornais da altura, relata-nos as circunstâncias em que a fotografia foi feita, oportunidade e equipamento, faz-nos um enquadramento histórico da época que se vivia e do hotel propriamente dito, e leva-nos a navegar um pouco pelas suas suposições que os registos históricos nos não contam. Excelente e apaixonante de ler e ver.



E é aqui que a porca torce o rabo!

Diz-se que “uma fotografia vale mais que mil palavras”. Talvez que seja.

Mas é um instante, uma fracção da vida, um recorte do universo, sem enquadramento espacio-temporal, sem que nos conte o que foi e o que lhe sucedeu. Deixa à nossa imaginação tudo isso, limitando-se a testemunhar, com a credibilidade da fotografia, aquela fracção de segundo da obturação.

É isto que faz a fotografia: retalhos do universo. Que, todos somados, farão sentido, mesmo que com lacunas. Sempre com lacunas!

Por mim, que consumo e produzo imagem, não me chega!

A vida é bem mais que apenas instantes, reticulados no tempo e no espaço. Falta-me sempre o resto, o que cerca o enquadramento, o que está e o que prima pela ausência, o que foi e o que se lhe seguiu.

Uma boa fotografia provoca-me isto: além de gostar do que vejo, quero sempre saber mais. O antes e o depois do instante decisivo.

É exactamente por isso que eu, que não sou bom fotógrafo, recorro às letras para complemento. Ou, porque não sou bom nas letras, recorro à imagem como complemento.

Que o retalhar da carcaça da vida, como o magarefe no matadoiro, me não chega.

A tirania do rectângulo formal, seja qual for a proporção, mais não faz que excluir tudo o resto. Que um fotógrafo, no seu visor, não está a mostrar isto ou aquilo: está a excluir todo o espaço e todo o tempo em prol do que ali vê. Não me chega!



(*) Este sou eu, retalhando o espaço e o tempo. A fotografia descrita no texto? Procurem-na, e ao texto sobre ela também, se ficaram curiosos.

By me

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