Nem
sempre às quatro da madrugada há inspiração para escrever ou fotografar.
Por
isso volta e meia recorro a conteúdos antigos, escolhidos usando apenas como
critério o estar hoje de acordo com o que então usei.
É
o caso.
Datado
de 2006 e ainda que as palavras, se hoje escritas, pudessem estar organizadas
de outro modo, as ideias estão impolutas com o tempo.
Espero
apenas que tenhais tempo e paciência para elas.
Li,
há uns dias num blog sobre fotografia, uma frase provocante:
“Todas
as imagens que hoje vemos, especialmente as postadas nos flickrs são todas
absolutamente iguais.”
E
concluiu o autor com uma outra, repleta de ironia:
“Na
verdade, vivemos hoje uma estética flickeriana pós-moderna!”.
Estas
duas afirmações mexem fundo comigo e sobre elas não posso deixar de aqui
colocar o que penso, em concordância e em discordância.
Entenda-se,
no entanto, que tento aqui ser sintético, o que não apenas não é fácil com este
tema como não é uma característica que eu mesmo possua.
Comecemos
por pensar no que o cidadão comum pensa ser um fotógrafo dito “profissional”.
É
aquele que, qual caçador solitário, vai a lugares exóticos ou situações
perigosas, e regressa com troféus sob a forma de fotografias. Ou aquele que
priva com as beldades, aquelas que enchem o olho e que, ainda por cima, lhes
diz o que fazerem e como se exibirem. Ou ainda, é aquele que está onde estão os
grandes, os decisores, os que governam o mundo. É alguém que, por ser
fotógrafo, é um privilegiado.
Claro
está que esse tal cidadão comum ignora o quão difícil é aceder-se a alguns
lugares, o quão complicado é conseguirem-se algumas credenciais, o quão
violento pode ser o lidar com alguns seguranças, privados ou não. Ou quanta
frustração pode estar (e em regra está) atrás de cada fotografia de sucesso!
Assim,
e tal como sucede com as princesas, desportistas e gente do mundo do
espectáculo e cinema, há uma tentativa de imitar os ídolos.
Acontece,
porém, que fazer uma imagem é fácil, cada vez mais fácil. Uma câmara de média
gama não custa uma fortuna, um computador para pós-tratamento também não e
sabemos os que são programas pirateados, Desta forma, cada disparo em digital é
a custo zero, depois de adquiridos os equipamentos de base. E a luz e o mundo
estão aí para serem captados. Cada um à sua medida pode imitar os seus ídolos.
Por
outro lado, o acesso à divulgação da fotografia era, até há uns tempos,
difícil. Implicava arranjar uma galeria (e respectivo galerista) que estivesse
na disposição de disponibilizar tempo e espaço ou uma revista ou jornal (com o
respectivo editor fotográfico) que estive disposto a arriscar publicar.
Para
além de os espaços físicos ou os de imprensa não serem assim tantos quanto
isso, há ainda que passar pelos crivos dos galeristas, que decidem o que se
pode ou não vender ou expor, o que é “arte” ou não é, bem como os editores
fotográficos dos periódicos, que decidem se as imagens estão ou não em
consonância com a linha editorial em causa ou com os artigos a ilustrar.
Hoje,
os únicos filtros existentes são, ou podem ser, apenas as decisões dos
fotógrafos, o ter-se acesso à web e uma conta num qualquer flickr. As escolhas
do que se publica são, em exclusivo, dos autores dos trabalhos, sem qualquer
outro aconselhamento ou decisão. O que faz com que as escolhas do que é
colocado on-line se baseiem nos gostos e capacidades dos fotógrafos, seja qual
for o seu “calibre”, e não nas opiniões de “lentes” e comerciantes, cuja
opinião depende do seu conservadorismo, das modas estéticas vigentes e da
capacidade de venda dos trabalhos. Sejam estes bons ou maus.
Mas
também devemos considerar a quantidade de imagens que se produzem e os motivos
de tal produção. É que, para além do custo zero e da facilidade de exibição,
existe a efemeridade de cada fotografia.
Até
há alguns anos, o consumo de fotografia fazia-se nas galerias e museus ou nos
livros e revistas. E ia-se a exposições com o intuito de degustar o que lá
estivesse, ou comprava-se a publicação com o mesmo objectivo. E se uma visita a
um museu ou galeria fica na memória do visitante, as publicações ficam nas
caixas ou estantes, sempre disponíveis para uma revisitação ou consulta. Por
necessidade ou pelo simples prazer de ver trabalhos de que gostamos. Ou, melhor
ainda, passear numa livraria, encontrar “velhos amigos” ou “ novos conhecidos”
nas prateleiras e ter o prazer de as levar para casa e com eles passar uns bons
momentos. Ou de com eles aprender algo mais.
Em
alternativa, na web gastam-se uns escassos segundos a ver uma imagem, para logo
de seguida se passar à seguinte, que são muitas por ali e há sempre outras para
serem vistas. E, quantas mais são vistas, menos na memória se nos ficam. Meia
hora depois de se iniciar esse périplo, de quantas nos recordamos? Ou do nome
dos autores?
E
se, enquanto consumidores de imagens, o sabemos, enquanto produtores de imagens
igualmente. E para que o trabalho de cada um, seja produtor comum ou amador, ou
um “expert” ou profissional, há que apresentar quantidade, por vezes mais que
qualidade. Ser-se o último a publicar na web, no blog, no flickr (seja ele qual
for), por forma a que essas imagens fiquem na página de entrada ou nos
favoritos dos visitantes para que, de algum modo, fiquem em evidência. E serem
visitadas ou vistas, tão assiduamente que fiquem na memória e se evidenciem na
mole de fotografias vistas.
Sabemos
também que, em regra, a quantidade é inimiga da qualidade. E o fotógrafo comum
acaba por se repetir, ou repetir as fórmulas que conhece como eficazes na
comunicação fotográfica, nesse seu anseio de ser conhecido e visto.
Para
alicerçar a expressão “bombástica “No flickr as fotografias são todas iguais”,
devemos considerar também nós mesmos, os que vemos essas tais fotografias.
De
tantas imagens que vemos, mesmo que todas difiram em estéticas, técnicas e
conceitos, acabamos por ter uma noção do todo e não das partes e, porque somos
humanos e preguiçosos, um padrão no que vemos. Um padrão de heterogeneidade do
qual é difícil de sair. Do qual é difícil de sairmos!
Por
muito que nós mesmos possamos saber da matéria, tanto de estética como de
técnica ou ainda de semiótica, findo um pedaço de “surfar” nos flickrs,
acabamos por ficar com uma espécie de névoa, de criar padrões de análise que
nos conduzem, inexoravelmente, a classificações minimalistas e uniformes. E
ficarmos com essa tal ideia de que “no flickr as fotografias são todas iguais”.
Mas
para fazermos essa análise das fotografias do flickr, ou de quaisquer outras
fotografias ou de qualquer outra forma de expressão pessoal, haverá que
abandonar os nossos próprios conceitos de estética e de qualidade e analisar os
conceitos inerentes aos autores, bem assim como os contextos em que se inserem.
À revelia do que afirma Popper, no seu excelso “Mito do contexto”.
Os
fotógrafos que nos ficam na memória são, muito naturalmente, os muito bons,
alguns mesmo génios. E a genialidade não se encontra nas farmácias ou na foz de
um rio. É aquilo que alguns, poucos, têm e que muitos tentam imitar. E são
esses muitos que enchem as páginas web. E que se esforçam por fazer melhor e/ou
diferente as fotografias que apresentam. Sujeitos às limitações interiores que
possuem. E às limitações que a vida lhes impõe: Não saem dos seus bairros,
cidades, países, fotografam fora das horas de trabalho ou quando não há deveres
familiares ou escolares a cumprir.
Ou,
para ir ainda mais longe, estão formatados pela cultura em que se inserem, quer
seja a apreendida nas publicações impressas, quer seja a apreendida nas
publicações electrónicas. Ou ainda na TV e no cinema. Como seja a ditadura do
número de ouro ou a imposição do espaço útil com quatro cantos em ângulo recto.
Para
já não falar nas questões afectas aos respectivos países e regiões do globo.
Com as suas cores saturadas, composições e assuntos mais agressivos,
constatáveis nos climas quentes, ou as cores mais pastel e assuntos e estéticas
mais tranquilos, visíveis nos autores de países mais frios. Ou a existência ou
ausência de estabilidade sócio-económico-política que nesses países se possa
viver.
Até
porque sabemos que a inovação advém da inquietude e esta tanto pode ser
endógena como exógena!
Não
se pode deixar de parte a questão da facilidade da produção fotográfica. Se
hoje basta ter a câmara, fazer click e os automatismos de fabricante fazem
quase tudo o resto, se no photoshop a tentativa e erro são inconsequentes que
os originais não se perdem ou destroem, assim não era até há algum tempo atrás.
O grau de conhecimento sobre películas, exposição, químicos e afins era tal que
só quem a tal actividade se dedicava obtinha satisfação no seu trabalho. Por
outro lado, o custo de cada trabalho, aliado ao trabalho que cada imagem
implicava eram de tal monta, bem como o tempo que mediava entre o fotografar e
o ver a fotografia, que o simples premir do obturador obrigava à existência de
muitas certezas nas decisões e gestos. E a uma razoável antevisão mental do
resultado final.
Obrigavam
a pensar a fotografia e no acto fotográfico. O que hoje é incomum de encontrar.
Claro
que, no meio de todas estas considerações, para que a expressão ”No flickr
todas as fotografias são iguais”, há ainda que pensar no que é o flickr. Ou o
que são os espaços de publicação de fotografias na web, tenham o nome que
tiverem.
Muito
frequentemente, e bem mais do que se poderia esperar ou gostar, estes espaços
são mais pontos de encontro social que galerias virtuais de fotografia. Usando
a imagem, fotográfica ou não, busca-se reconhecimento de capacidades, pares no
pensamento, um “lugar ao sol” ou tão só a quebra de solidão.
Sintomático
de tal são os comentários deixados nas imagens publicadas e quem os deixa. Uma
grande maioria é do género “Gostei!” ou equivalente e escritos por quem constar
na lista de favoritos de quem é comentado. O número de visitas ao espaço de
cada um depende, sem sombra de dúvida, do número de comentários feitos a outros
e da quantidade de “adicionados”. As galerias virtuais são vistas em circuito
fechado, criando-se grupos de interesse que não dependem da qualidade das
imagens expostas mas tão só da assiduidade com que se comenta e se publicam
novas fotografias. E, uma vez mais, a quantidade é sobrevalorizada em relação à
qualidade.
Nestas
circunstâncias, é natural vir a constatar as semelhanças dos trabalhos
exibidos. As temáticas ficam restritas ao grupo, as estéticas também, para já
não falar nas linguagens de imagem empregues.
Deverá
ainda considerar-se um outro aspecto, vital do meu ponto de vista:
A
esmagadora maioria das fotografias na web são produzidas por gente jovem.
Porque é moda o uso das tecnologias de informação; porque é moda o uso da
fotografia; porque é uma forma de comunicação no grupo a que se pertence ou se
almeja pertencer.
Acontece,
porém, que o órgão da visão é o ultimo a ficar completo. Em termos de
maturidade fisiológica e em termos de maturidade de percepção. Ao invés do que
acontece com a audição, a primeira a surgir, a que mais cedo se completa. E a
comunicação sonora é a que mais cedo se pratica, até porque dispensa o contacto
físico ou o uso de qualquer instrumento. Dir-se-ia que é a mais “animal”.
E
porque a visão mais tarde se completa e mais complexa é, o seu uso exige mais
prática, mais maturação do indivíduo, fruto das experiências e da vivência.
Por
isso mesmo, é muito mais comum encontrar-se quem tenha sucesso na comunicação
sonora ainda jovem, ao invés da comunicação visual, seja fotografia, pintura,
cinema ou teatro, onde esse sucesso acontece bem mais tarde na vida.
Com
todo este “discurso” sobre a eventual normalização das fotografias no flickr,
não estou, de forma alguma, a retirar importância ou qualidade ao que ali é
exposto. Tanto uma como outra, como em qualquer forma de expressão pessoal,
devem ser avaliadas em função de quem as faz, bem mais que em função das regras
ou modas em vigor.
Ao
longo dos anos em que estive no papel de professor de fotografia e vídeo
(prefiro usar o termo “ajudante de aprendizagem”!), a avaliação dos trabalhos
que me eram apresentados era feita em função dos objectivos que aluno tinha com
cada trabalho e em função da evolução que cada um apresentava ao longo do
tempo. Considerando a mensagem que se pretendia transmitir e a eficácia com que
ela era recebida no grupo a que se destinava.
Que
uma fotografia pode ser particularmente boa, eficaz na comunicação e original
em forma e conteúdo e ser, ao mesmo tempo, pouco ou nada apreciada fora do
contexto a que se destina. Grupo etário, grupo social, grupo cultural. Quem
quer que esteja fora dele e olhe para o conjunto dos trabalhos apresentados,
verá uniformidade no conjunto, poucas diferenças ou originalidades. E cada uma
ser igual às demais. Mas, dentro do grupo de destino, cada uma poderá ser a
melhor, a mais comunicativa, a que mais sentimentos ou mensagens fará passar.
Caberá
ao fotógrafo em causa, aprendiz numa escola, Freelancer, assalariado de uma
publicação ou utente assíduo de um qualquer flickr, decidir se os trabalhos que
apresenta se destinam ao publico em geral se a um grupo restrito com o qual se
identifique.
E
caberá a quem as analise, interpretar esses destinos e saber avaliar em função
deles e não apenas com base nas regras e códigos aceites pela maioria. Para já
não referir a questão de essa “maioria” ser ocidental, do médio-oriente ou do
extremo-oriente. Que, para além de uma avaliação incompleta e,
consequentemente, incorrecta, será castrante para quem a receba. E castrante na
criatividade e capacidade de comunicação.
No
meio de tudo isto onde fica a arte?
Tenho
que admitir que eu mesmo não sei, até porque não sei o que é “Arte”,
fotográfica ou outra.
Mas,
sobre esta questão apenas, muito haveria que dizer e já aqui não tenho espaço
nem o leitor paciência.
Para
finalizar, repito que tudo o acima escrito não passa de uma síntese sobre a
matéria. E, a par com a criatividade, o poder de síntese não é uma das minhas
qualidades.
Espero,
no entanto, ter-me feito entender a quem por aqui passar e tenha a coragem de
tudo isto ler.
By me
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