Estava no comboio a caminho do trabalho.
Sentado no meu canto, tinha no colo o PC portátil
e estava entretido a grafar umas ideias que desde o acordar me vinham cutucando
a cabeça. A imagem já estava escolhida, que a fora buscar ao arquivo antes de
sair de casa, mas o texto só tinha começado a tomar forma na caminhada até à
estação. E o embalo do comboio e o ruído neutro do mesmo e de quem nele viaja
ajudam-me à concentração.
O banco em frente a mim esteve vazio mas não
por muito tempo. Na estação seguinte sentaram-se uma senhora e um homem. Ambos
cabo-verdianos, ele era bem mais velho que eu, ela rondaria os quarenta, talvez
um nico mais.
E vinham à conversa. Conversa sobre se se
iria migrar de novo para França, que isso seria um impedimento nos estudos dos
filhos e haveria que os preparar para o futuro nos tempos que correm, de como são
inúteis as reuniões e acções de formação dos centros de emprego…
Eu não vinha a prestar atenção, mas falando
alto como falavam e próximos como estavam, não podia eu deixar de ouvir.
A certa altura ele desvia um pouco a
conversa e faz notar o azar do Passos Coelho, tendo a mulher doente e com
aquele aspecto e tendo que a levar a locais públicos.
Tenho tentado manter-me à margem desta polémica
parva, estéril e preconceituosa, mas desta vez não me contive.
Interrompendo a minha escrita e pedindo
desculpa por me meter na conversa alheia, fiz-lhe ver que azar, mas azar mesmo,
tinha ela por estar doente. Com uma doença grave, dolorosa, cujo tratamento, além
de doloroso faz cair o cabelo, afectando assim um dos elementos definidores de
feminilidade e que todas as mulheres cuidam e usam como tal.
Disso é que é de ter pena: do sofrimento físico
e psicológico daquela mulher.
E, bem para além disso e apesar de não
gostar nem um nico do marido, tenho que lhe reconhecer a coragem pessoal de ter
estado todo o tempo do seu lado, apesar do seu cargo ser bem absorvente de
tempo e energia e de não ter tido vergonha estúpida e lamentável de com ela
estar em público.
Azar o dela de estar doente com esta doença
e tratamento, sorte a dela de ter um marido assim.
O homem ficou a olhar para mim, em silêncio.
A mulher também.
Uns bons trinta segundos depois, diz ele em
tom baixo, mas audível acima do barulho do comboio:
“Tem razão! Não tinha pensado na coisa
dessa forma.”
Ela, em silêncio, sorria discreta.
Só passado um pedaço recomeçaram a
conversa, apesar de eu ter voltado à escrita. Eu tinha que aproveitar enquanto
as minhas ideias não perdiam forma.
E a conversa deles desviou-se para o onde saírem
para irem para determinado ponto da cidade e em que carreiras de autocarro. O
que fizeram duas ou três estações mais tarde.
Mas o olhar que a senhora me deitou,
sorridente, quando se levantou para sair, fez com que eu ficasse com a certeza
de que todo o meu discurso não tinha sido em vão.
Demasiadas vezes meto o meu nariz comprido
onde não sou chamado. Por vezes vale a pena.
By me
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