quarta-feira, 15 de julho de 2015

Azar de quem?



Estava no comboio a caminho do trabalho.
Sentado no meu canto, tinha no colo o PC portátil e estava entretido a grafar umas ideias que desde o acordar me vinham cutucando a cabeça. A imagem já estava escolhida, que a fora buscar ao arquivo antes de sair de casa, mas o texto só tinha começado a tomar forma na caminhada até à estação. E o embalo do comboio e o ruído neutro do mesmo e de quem nele viaja ajudam-me à concentração.
O banco em frente a mim esteve vazio mas não por muito tempo. Na estação seguinte sentaram-se uma senhora e um homem. Ambos cabo-verdianos, ele era bem mais velho que eu, ela rondaria os quarenta, talvez um nico mais.
E vinham à conversa. Conversa sobre se se iria migrar de novo para França, que isso seria um impedimento nos estudos dos filhos e haveria que os preparar para o futuro nos tempos que correm, de como são inúteis as reuniões e acções de formação dos centros de emprego…
Eu não vinha a prestar atenção, mas falando alto como falavam e próximos como estavam, não podia eu deixar de ouvir.
A certa altura ele desvia um pouco a conversa e faz notar o azar do Passos Coelho, tendo a mulher doente e com aquele aspecto e tendo que a levar a locais públicos.
Tenho tentado manter-me à margem desta polémica parva, estéril e preconceituosa, mas desta vez não me contive.
Interrompendo a minha escrita e pedindo desculpa por me meter na conversa alheia, fiz-lhe ver que azar, mas azar mesmo, tinha ela por estar doente. Com uma doença grave, dolorosa, cujo tratamento, além de doloroso faz cair o cabelo, afectando assim um dos elementos definidores de feminilidade e que todas as mulheres cuidam e usam como tal.
Disso é que é de ter pena: do sofrimento físico e psicológico daquela mulher.
E, bem para além disso e apesar de não gostar nem um nico do marido, tenho que lhe reconhecer a coragem pessoal de ter estado todo o tempo do seu lado, apesar do seu cargo ser bem absorvente de tempo e energia e de não ter tido vergonha estúpida e lamentável de com ela estar em público.
Azar o dela de estar doente com esta doença e tratamento, sorte a dela de ter um marido assim.

O homem ficou a olhar para mim, em silêncio. A mulher também.
Uns bons trinta segundos depois, diz ele em tom baixo, mas audível acima do barulho do comboio:
“Tem razão! Não tinha pensado na coisa dessa forma.”
Ela, em silêncio, sorria discreta.
Só passado um pedaço recomeçaram a conversa, apesar de eu ter voltado à escrita. Eu tinha que aproveitar enquanto as minhas ideias não perdiam forma.
E a conversa deles desviou-se para o onde saírem para irem para determinado ponto da cidade e em que carreiras de autocarro. O que fizeram duas ou três estações mais tarde.
Mas o olhar que a senhora me deitou, sorridente, quando se levantou para sair, fez com que eu ficasse com a certeza de que todo o meu discurso não tinha sido em vão.


Demasiadas vezes meto o meu nariz comprido onde não sou chamado. Por vezes vale a pena.

By me

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