sábado, 3 de janeiro de 2015

A sopa





Quando eu era pequeno não gostava de sopa. Mas não gostava mesmo, à imagem e semelhança de muitas outras crianças de aquém e alem mar.
Fazia fita, argumentava, amuava… E só as fortes ameaças (algumas concretizadas) ou brilhantes engodos me faziam deglutir aquela coisa que não era nem liquida nem sólida, que não se bebia nem mastigava. Ainda hoje é um pouco assim.

Aquele dia não foi diferente dos outros. Não queria mesmo comer a sopa! Mas uma ideia brilhante assolou a mente de quem estava comigo e propôs-me um acordo: eu comeria apenas metade da sopa. A metade do lado direito. Com a colher, traçou um risco a meio do prato da sopa e do seu conteúdo e mostrou-me qual a minha metade e qual a metade a deixar ficar no prato.
Aliciado com esta indulgência súbita, ataquei o prato de sopa. Com todas as cautelas, a colher mergulhava exclusivamente na minha metade, deixando virgem a outra. E rapidamente, não fosse mudarem de ideias.
Claro está que quando rapei a última gota da minha metade a outra fora comida também!
Olhei desconsolado para aquele prato vazio, percebendo que a tinha comido por inteiro. E fiquei furioso!
Furioso por ter sido enganado, por ter acreditado em quem deveria acreditar e que me havia enganado!
Furioso por ter aceite um negócio insuspeito e ter sido levado a fazer o que não queria!
Fiquei tão furioso que ainda hoje, passados que são quase cinquenta anos, me recordo do episódio, das circunstâncias, dos intervenientes, das sensações!

Ficou-me de lição! Talvez tenha sido nesse dia que acordei para a hipocrisia e mentira, para os engodos e aldrabices.
Hoje continuo a desconfiar das ofertas muito generosas. Dos bancos, dos vendedores, dos governos, dos empregadores, por vezes até dos anónimos.
Perante as promessas de “apenas metade” lembro-me sempre das outras metades que haveria que engolir a contra-gosto se nelas acreditasse.

Lá diz o povo e com razão: “Galinha gorda por pouco dinheiro, choca vai ela!”

By me

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