quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Fora de foco



Há talvez quinze anos pediram-me para seleccionar operadores de câmara de televisão.
Teriam que ser operadores já feitos, prontos a trabalhar, que passariam apenas por um período de adaptação aos equipamentos e métodos usados na empresa em causa. Coisa de uma semana, pouco mais.
Este tipo de coisa não é fácil de fazer, já que quantificar desempenhos é sempre subjectivo. Muito mais subjectivo se incluirmos questões estéticas.
Mas lá aceitei o encargo. Concebi alguns exercícios práticos a serem executados pelos candidatos. Uns mais simples outros bem complicados. E, sem que algum deles soubesse, teriam sempre possibilidade de o fazer por três vezes. O objectivo seria o aquilatar da percepção que o candidato tivesse dos seus próprios erros ou falhas e de que forma os corrigiria. Que um exame para um emprego é sempre enervante e o não completo domínio do equipamento não ajuda.
Um dos exercícios passava por fazer uma panorâmica, (rotação da câmara) por uma mesa, que se encontrava na diagonal com o eixo da objectiva e em cima da qual se encontravam objectos pequenos. Um maço de cigarros, uma embalagem de medicamentos, uma chávena, uma lâmpada… Esperava-se que o movimento fosse regular e que a passagem de foco também o fosse.
Era difícil. Eu sei que era. Mas para aquilatar qualidade de desempenho não se podem apresentar apenas coisas fáceis.
Um dos candidatos, na primeira tentativa de três, sentiu a dificuldade. E, quando lhe sugeri que tentasse uma segunda vez, começou a procurar e experimentar botões. Na câmara, nos punhos, na objectiva.
Estranhando eu, perguntei-lhe o que procurava. A resposta foi elucidativa:
“O auto-focus, que isto é difícil de fazer.”
Não fiz, na altura, nenhuma observação excepto que aquela câmara não o possuía. Mas, e como se deve imaginar, este candidato não passou à fase seguinte de avaliação.

Nos tempos que correm, os automatismos e auxiliares (mecânicos ou electrónicos) tomaram conta da nossa vida que já não somos capazes de fazer o que quer que seja (ou quase) sem a eles recorrer.

Vem toda esta conversa a propósito de uma mocinha que conheço, com o que aparenta ser um sólido conhecimento sobre fotografia e sérios desejos de ir bem mais longe em questões criativas, que se me queixou que com uma objectiva 50mm e com o diafragma em 1,7 necessita mesmo do auto-focus, pois que, quando não, não tem a certeza de ter a imagem focada.
O seu problema não era dificuldade de visão nem a reduzida profundidade de campo era questão estética que a preocupasse.
Era mesmo o querer fazer a correr e ficar o assunto (e a fotografia) focada.
Uma vez mais, dependência da automação.

Lamento-a e à sua incapacidade de usar o equipamento.
Os grandes foto-reporteres que cobriram tão bem, tantos e tão complicados conflitos certamente que desejariam ter sistemas automatizados de focagem. Mas creio que, em muitas circunstâncias, preferiam ser eles mesmos a decidir, no lugar de um japonês inteligente mas automatizado a viver dentro da câmara.


Note-se: eu uso o auto-focus. Poupa-me trabalho e liberta-me para outras questões para além das técnicas. Mas quero ser sempre eu a decidir quando o uso e não que se transforme num hábito difícil de ultrapassar.

By me

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