Oh pah! Eu hoje
enganei uma mão-cheia de gente!
Enfim. Sempre foi
um engano honesto, já que eu mesmo estava enganado. Mas enganei, bolas!
Eu conto.
Apeteceu-me ontem,
em terminando o horário de trabalho por alturas do almoço, ir ver o que
constava numa das livrarias que tenho de referência em Lisboa: A livraria
Barata.
Conheço-a desde
antes da revolução, pese embora nunca tivesse desconfiado do que havia lá atrás.
Nem ele sabia que eu estaria interessado, estudante do liceu que eu era e nunca
apresentado por alguém de confiança.
A secção de
fotografia oscila entre o interessante e o não tanto, dependendo da época,
creio. Mas tem muita outra coisa boa de ser lida, incluindo as revistas, de que
já fui consumidor regular. E era lá que as ia buscar.
Nas calmas, que
apesar de frio e nevoeiro, o dia estava bonito e eu não tinha pressa, aproximei-me
da porta e sou abordado.
Talvez que de
origem ucraniana, p’lo sotaque, quis vender-me um Borda d’Água. Tinha dois na mão.
Não resisti ao
apelo. Ao longo dos anos mantive o hábito, mesmo que quase que inútil. Mas os
poucos cêntimos mensais a que corresponde são recompensados por mater esta
tradição minha e nacional.
Negociámos o
preço. Mas eu já sabia que assim seria.
Se tem o valor
impresso, estes vendidos na rua são sempre acrescidos de alguns trocos e
argumentados com necessidades várias. Sei que assim é e por vezes alinho,
outras não me apetece e procuro um quiosque convencional.
O que fez esta
compra transformar-se em algo de nada convencional foi o seguimento da
conversa.
Disse-me que tinha
uma factura para pagar (água, pareceu-me ao mostrar-ma) e perguntou-me se não
teria eu qualquer trabalho, de qualquer tipo, que ele pudesse fazer para o
conseguir. Obras, carregos, jardinagem…
Não tinha. Não
tenho. E lamento não ter tido ou ter agora. Que esta abordagem, mesmo que
talvez um pouco moldada às circunstâncias, sempre me parece mais honesta que
outras, com receitas de farmácia, ou crianças de colo ou muletas, ou…
Afastei-me para o
interior da loja menos contente do que minutos antes.
À saída, tendo eu
mais um livro para ler, saudou-me com um sorriso, esperando no frio do nevoeiro
que alguém lhe comprasse o almanaque que ainda restava ou lhe desse algum
trabalho.
Hoje, no meu próprio
trabalho, tirei o bendito almanaque Borda d’Água do saco e dispus-me a abri-lo.
Que ele vem, como sempre veio, apenas com as folhas dobradas e não cortadas. Uma
navalhinha ou, mais clássico, um cartão de identificação, fazem a festa, com um
sabor nostálgico a livros antigos, ao cheiro do papel recém-cortado, ao prazer
de aceder às primeiras páginas…
Com colegas
comentei a tradição e acrescentei que esta já não é o que era. Que este ano o
Almanaque Borda d’Água não vinha agrafado como sempre. Que talvez fosse sinal
dos tempos, tal como o é a mudança notória na forma de impressão, mais moderna
e “limpa”.
Olharam para mim,
alguns deles, no desconhecimento do que fosse o almanaque, na ignorância do ter
que o assim abrir e no espanto de estarem as folhas soltas.
Já em casa, fui
melhor comparar que de memória a qualidade da impressão. E descobri que os tinha
enganado. Tal como a memória me enganara.
O Borda d’Água não
vinha agrafado. Pelo menos nenhum dos exemplares de anos anteriores que possuo.
O que vem
agrafado, ou vinha no exemplar que ainda possuo, é o Seringador.
Editado pela Lello
Editores no Porto, ao invés de pela Minerva em Lisboa, o Seringador “reportório
crítico-jocoso e prognóstico diário (sic)” é o concorrente directo do Borda d’Água.
Não tão conhecido por cá, talvez que no norte o seja, não é fácil de encontrar.
Sugere-se a
leitura de um ou do outro, consoante sejam de uma ou outra região. Não
concorrem com os Googles actuais, mas são mais divertidos, genéricos, de previsões
incertas e sabedoria popular a gosto.
E se é certo que já
poucos se lembram da página da net que leram na semana passada, na minha
estante estão todos os calendários de há uns anos a esta parte. Sempre com uns
sorrisos associados.
Uns com e outros
sem agrafos.
By me
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