domingo, 18 de janeiro de 2015

Três histórias, uma fotografia





I
A minha primeira segunda câmara não foi uma Pentax, contra todas as evidências. Foi uma Rolei SL35. Das primeiras.
Comprei-a barata, a um colega, e estava a testá-la, ali para os lados do Bairro Alto, antes de ir jantar com um compincha.
Estávamos por ali e ouvimos um sururu mesmo ao cimo elevador da Glória. Bons Tugas que somos, fomos cuscar.
À saída da viela ali existente, uma moto tinha sido abalroada por um automóvel, que se pôs em fuga.
O motociclista estava caído no chão, ainda de capacete na cabeça, e sua perna (tíbia e perónio) estava partida, fazendo uns estranhos noventa graus com o resto. Não havia sangue, pelo menos visível.
Em redor do acidentado já se havia juntado um grupo de pessoas, que nós fomos engrossar, e os socorros foram chamados pela então novidade das telecomunicações: um motorista de táxi que possuía um CB.
Confesso que descobri o espaço que havia no meu ventre para o estômago passear. Aquele ângulo esquisito não era vista agradável para ninguém. Incluindo uma “borboleta da noite” que estava em início de jornada, e que lhe perguntou se queria que lhe endireitasse a perna. Se for pessoa para ter nódoas negras por muito tempo, ainda terá o ombro negro-carvão, do apertão que lhe dei para a impedir, já que estava mesmo à minha frente.
Entretanto chegou uma ambulância e trataram de o socorrer, recordo que recorrendo a algo que não conhecia: talas de imobilização insufláveis. Suponho que novidade na altura também.
Certo é que foi a altura que entendi como certa para fazer uns dois ou três “bonecos” da actuação dos socorristas.
E certo é também que no exacto momento em que coloquei a câmara na cara e espreitei pelo visor, deixei de sentir fosse o que fosse. Aquela perna não estava partida, aqueles não eram gente a socorrer alguém em sofrimento, e aquela não era uma situação de emergência.
Apenas contava o enquadramento, a exiguidade da luz do fim de dia, o ter espaço para a perspectiva que eu queria, os ajustes da câmara… Recordo ter dado alguns encontrões, mas já não sei a quem.

Ficou-me desta história, e para além do agora contado, duas outras recordações:
O ter ficado sem a câmara, poucos dias depois, num assalto doméstico de que fui vítima. Só levaram esta câmara, felizmente, mas nela estava ainda o rolo de teste e as fotos feitas nessa ocasião.
O ter tido a consciência, em primeira-mão, do como nos transfiguramos quando começamos a ver o mundo pelo rectângulo tirânico do visor. Tudo se foi quando o mundo deixou de ser real e passou a ser volumes, luzes, cor, aberturas, tempos de exposição, ângulos e perspectivas…


II
A fotografia que acompanha este texto foi feita em Daca, Bangladesh, em 1971 por Horst Haas.
Trata-se de um fotógrafo de guerra alemão, notável e de renome, mais conhecido por duas outras imagens igualmente terríveis mas icónicas: a menina que corre nua na estrada e em direcção à câmara, queimada com um bombardeamento de napalm, no Vietnam e uma outra, no mesmo país e conflito, de um prisioneiro a ser executado com um tiro de revolver na cabeça.
Esta outra fotografia, não tão conhecida, tem também uma história:
Aquando da conquista da cidade, as forças vencedoras chamaram a um lugar público (um campo de futebol, ao que sei) os jornalistas e fotógrafos que os acompanhavam e, como a imagem documenta, executaram a golpe de baioneta, alguns prisioneiros de guerra.
Alguns fotógrafos e jornalistas fizeram o registo e o relato. Outros abandonaram o local, recusando-se a tal.
As argumentações apresentadas posteriormente por uns e por outros ainda hoje são motivo de polémica e estudo:
Os que fizeram o registo defenderam que haveria que mostrar ao mundo aquela barbárie, denunciando-a; os que recusaram afirmaram que se lá não tivessem estado aquilo não teria acontecido, já que se tratou de um acto público para demonstrar o poder dos vitoriosos e que, se não houvesse divulgação, não teria havido a chacina.
Qual a atitude certa? Cabe a cada um interpretar, no momento exacto e em face dos acontecimentos, os seus próprios sentimentos e conceitos éticos.

III
O comboio que nos trazia para a cidade parava naquela estação, ainda velhinha, sempre atrasado. Os passageiros habituados a tal, apressavam o passo para a saída, em busca da paragem onde um autocarro os haveria de distribuir pela cidade. Eu não era excepção.
Naquela manhã, ao passar junto da cabina do maquinista, ele apitou como de costume para avisar do retomar da marcha. Mas foi de tal modo longo o apito que estranhei e olhei para ele. Estava de olhos bem abertos e de pé a olhar para a linha à sua frente.
Não pude deixar de olhar eu também.
Uns quarenta ou cinquenta metros mais à frente, alguém estava deitado na linha. Presumivelmente à espera do comboio fatal.
Corri para lá e ajudei a retirar aquela senhora idosa em direcção ao edifico da estação. Eu e mais dois ou três funcionários da CP que comigo se acercaram.
Não esqueço o cheiro estranho que senti, de tão perto a abracei. Um aroma animal que não reconheço nem voltei a sentir. Nem esqueço o pedacinho de uma nota de cinquenta escudos que se entrevia do seu punho direito, cerrado com força.
Não fotografei, apesar de o saco correspondente me ter atrapalhado o levar da senhora.
Há momentos que, de tão íntimos que são, mesmo que praticados desta forma, que nunca me senti ou sentirei no direito de os devassar com a minha câmara!


Três histórias que demonstram, do meu ponto de vista, como a presença, posse ou uso da câmara fotográfica pode modificar comportamentos atrás e à frente da objectiva, moldando o curso dos acontecimentos nalguns casos.

By me

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