quinta-feira, 19 de abril de 2012

Confrontos e memórias




Tal como há histórias que não esquecemos, há caras que não olvidamos.
Esta, vi-a durante alguns minutos e não bem de frente, algures em 1997 ou 1998. No decurso daquele episódio. Nunca mais a vi até hoje e, de imediato, a reconheci, bem como me relembrei uma vez mais da história, que já a tenho contado.
Esta sentado no comboio, a caminho de Lisboa. Na estação do Cacém, apercebo-me de uma troca de palavras entre o revisor e um passageiro. Era quase que uma conversa de surdos, que o passageiro só falava francês. Mas o tema era conhecido de muitos dos que ali estavam, aliás, conversa estafada: não tinha bilhete, afirmava o revisor.
A dado passo, o funcionário da CP, que já tinha levantado e bem o tom de voz e passado a vocabulário pouco cortês, agarrou por um braço o seu interlocutor e saiu com ele da composição. Percebia-se que o levava para o chefe da estação, que chamaria a polícia, etc. etc..
Os detalhes da conversa não os percebi, que o passageiro, negro retinto, quase azul, falava baixo e pausadamente, mas o certo era não haver por perto quem falasse francês, pelo que desci e segui o par, não gostando nem um pouco do que ia ouvindo da boca do revisor nem da forma como tratava aquele em que agarrava firmemente.
Quando entrei na estação já eles estavam lá dentro, na zona do chefe. A porta estava aberta e deixei-me ficar ali, na soleira, quase sendo atropelado pelo revisor quando saiu de volta para o comboio que o esperava.
Entrei e servi de intérprete.
O que se passava era um conjunto de mal entendidos, que até tinha passe válido, mas não de acordo com as regras em vigor. Mas, como o auto já tinha sido levantado, por muito boa-vontade que o chefe da estação tivesse, nada podia fazer. E também ele estava incomodado com o tratamento dado pelo revisor ao pacífico passageiro.
Acabei por ir com este ao gabinete de atendimento do utente, no Rossio, em Lisboa, para que a situação se resolvesse e não fosse ele alvo de multa.
Pelo caminho, soube que ele estava cá a trabalhar na construção do tabuleiro ferroviário da ponte 25 de Abril e que, com toda aquela história, já tinha perdido meio dia de trabalho, pelo menos.
Em chegados a Lisboa, e já no tal gabinete, soubemos que o chefe da estação já para lá havia telefonado a contar a situação. Quem nos atendeu falava fluentemente francês, pelo que a minha presença deixava de ser necessária. Excepto…
Excepto que decidi apresentar queixa do revisor, pela forma violenta como tinha tratado o passageiro. E a minha reclamação, escrita, fora corroborada pelo telefonema do chefe de estação, que havia dito que enviaria um relatório sobre o mesmo assunto.
Vim a saber, algum tempo depois, que o passageiro não fora multado. Da minha reclamação, nunca obtive resposta. Mas também não mais vi o agressivo revisor a trabalhar na linha de Sintra, que frequento diariamente. Até hoje.
Vi-o na estação do Oriente, em Lisboa, embarcando num outro comboio. De imediato o reconheci, mesmo passados todos estes anos e a brevidade do meu olhar sobre ele então. Pela forma como o seu olhar agora passou por mim, não me reconheceu.
Espero, sinceramente, que os passageiros das linhas onde tem trabalhado, não sofressem o que aquele coitado passou.

Creio que nunca nos esquecemos por completo das coisas. Apenas as temos arrumadas algures num cantinho a que não acedemos até que um qualquer estímulo nos faz abrir a porta do armário respectivo.

By me 

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