terça-feira, 17 de abril de 2012

Café com sorriso




Uma ocasião, já depois de jantar, oiço chorar na escada. Não era um choro muito alto, mas era um choro, coisa que não é habitual, como se calcula. E fui ver de que se tratava.
Sentada num degrau das escadas do sétimo andar em que mora então, uma mocinha, dos seus quinze ou dezasseis anos. Todo o corpo chorava, em perfeita sintonia com as lágrimas que lhe escorriam pela cara.
Claro que lhe perguntei o que se passava e se a poderia ajudar. E, claro está, que me respondeu que não, que apenas estava à espera de uma colega que estava “ali”. E o ali era um apartamento do meu piso. Onde residiam uns tipos que, confesso, nunca me tinham granjeado simpatia, se bem que nunca me tivessem feito coisa alguma de mal. Apenas não simpatizava com eles, que tinham o que se chama de “má pinta”.
Obviamente que insisti, até porque, em olhando ela para mim, a reconheci: já a havia visto, com mais uma ou duas outras da mesma idade, na entrada do prédio, com umas intimidades com os tais vizinhos, que me não haviam agradado. Menos agora ainda.
O mais que consegui com a minha insistência foi saber que vivia para os lados da Damaia, um tanto ou quanto longe, considerando os horários dos comboios e o seu fim de serviço. Quanto ao resto mais não disse e percebi que não adiantava.
Desceu ela o elevador e regressei eu a casa, mas com um profundo amargo de boca. As suspeitas que já tinha tido avolumavam-se agora: tratava-se de prostituição de menores, e ali no prédio havia clientes.
Não gostei! Nem um nico! Mas, mais que não gostar, entendi que não poderia ficar de braços cruzados e que alguma coisa haveria de ser feita por ela e pelas amigas (colega, como lhe chamou).
Depois de pensar e trocar ideias com uma casal amigo, acabei por entrar em contacto com a linha SOS Criança, que me encaminhou para o tribunal de menores. Foi-me dito que este tipo de denúncia, anónima ou não, tinha tratamento prioritário.
Deixei de as ver ali no prédio. Aliás, pouco tempo depois, os vizinhos desagradáveis deixaram de ser vistos também. Nunca soube ao certo o que sucedeu ou havia sucedido. Ou mesmo se as minhas suspeitas conduziram a algo de real ou não passariam de imaginação minha.
Um ano e pouco depois vi a mocinha em causa. A trabalhar num café do meu bairro, um em que muito raramente entro. Não me pareceu nem bem nem mal, mas fiquei satisfeito por isso mesmo. Nem sei se me terá reconhecido ou não, que nada mo indicou.
Hoje, mais de dez anos passados, tornei a vê-la. No mesmo café onde entro, talvez, uma vez a cada dois ou três anos, se tanto.
Já quase eu não me lembrava da história mas, pelos vistos, lembrava-se ela, que o sorriso que me dirigiu quando me viu foi um pouco para além do que se espera receber num café onde se não é cliente. Sorri-lhe de volta, também um pouco mais que o habitual de um cliente não habitual. Bebi o café, comi o pastel de nata e saí. Sem mais saber que fosse ela parecer-me ter bom aspecto e que tinha uma aliança na mão esquerda.
Não sei se os meus telefonemas surtiram algum efeito. E espero continuar nessa ignorância para sempre. Espero acreditar que sim, que foram úteis e que serão úteis os que volte a fazer em circunstâncias semelhantes. Que o número de telefone do SOS Criança continua na minha lista.
Mas esta bica e bolo muito matutina vão fazer-me adormecer suavemente com um sorriso na memória.

By me 

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