Uma ocasião, já
depois de jantar, oiço chorar na escada. Não era um choro muito alto, mas era
um choro, coisa que não é habitual, como se calcula. E fui ver de que se
tratava.
Sentada num degrau
das escadas do sétimo andar em que mora então, uma mocinha, dos seus quinze ou
dezasseis anos. Todo o corpo chorava, em perfeita sintonia com as lágrimas que
lhe escorriam pela cara.
Claro que lhe
perguntei o que se passava e se a poderia ajudar. E, claro está, que me
respondeu que não, que apenas estava à espera de uma colega que estava “ali”. E
o ali era um apartamento do meu piso. Onde residiam uns tipos que, confesso,
nunca me tinham granjeado simpatia, se bem que nunca me tivessem feito coisa
alguma de mal. Apenas não simpatizava com eles, que tinham o que se chama de
“má pinta”.
Obviamente que
insisti, até porque, em olhando ela para mim, a reconheci: já a havia visto,
com mais uma ou duas outras da mesma idade, na entrada do prédio, com umas
intimidades com os tais vizinhos, que me não haviam agradado. Menos agora
ainda.
O mais que
consegui com a minha insistência foi saber que vivia para os lados da Damaia,
um tanto ou quanto longe, considerando os horários dos comboios e o seu fim de
serviço. Quanto ao resto mais não disse e percebi que não adiantava.
Desceu ela o
elevador e regressei eu a casa, mas com um profundo amargo de boca. As
suspeitas que já tinha tido avolumavam-se agora: tratava-se de prostituição de
menores, e ali no prédio havia clientes.
Não gostei! Nem um
nico! Mas, mais que não gostar, entendi que não poderia ficar de braços
cruzados e que alguma coisa haveria de ser feita por ela e pelas amigas
(colega, como lhe chamou).
Depois de pensar e
trocar ideias com uma casal amigo, acabei por entrar em contacto com a linha
SOS Criança, que me encaminhou para o tribunal de menores. Foi-me dito que este
tipo de denúncia, anónima ou não, tinha tratamento prioritário.
Deixei de as ver
ali no prédio. Aliás, pouco tempo depois, os vizinhos desagradáveis deixaram de
ser vistos também. Nunca soube ao certo o que sucedeu ou havia sucedido. Ou
mesmo se as minhas suspeitas conduziram a algo de real ou não passariam de
imaginação minha.
Um ano e pouco
depois vi a mocinha em causa. A trabalhar num café do meu bairro, um em que
muito raramente entro. Não me pareceu nem bem nem mal, mas fiquei satisfeito
por isso mesmo. Nem sei se me terá reconhecido ou não, que nada mo indicou.
Hoje, mais de dez
anos passados, tornei a vê-la. No mesmo café onde entro, talvez, uma vez a cada
dois ou três anos, se tanto.
Já quase eu não me
lembrava da história mas, pelos vistos, lembrava-se ela, que o sorriso que me
dirigiu quando me viu foi um pouco para além do que se espera receber num café
onde se não é cliente. Sorri-lhe de volta, também um pouco mais que o habitual
de um cliente não habitual. Bebi o café, comi o pastel de nata e saí. Sem mais
saber que fosse ela parecer-me ter bom aspecto e que tinha uma aliança na mão
esquerda.
Não sei se os meus
telefonemas surtiram algum efeito. E espero continuar nessa ignorância para
sempre. Espero acreditar que sim, que foram úteis e que serão úteis os que
volte a fazer em circunstâncias semelhantes. Que o número de telefone do SOS
Criança continua na minha lista.
Mas esta bica e
bolo muito matutina vão fazer-me adormecer suavemente com um sorriso na
memória.
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário