quarta-feira, 30 de abril de 2008

No taxi


É uma daquelas classes profissionais para a qual há que ter queda: taxista.
Horas a fio, solitários na viatura, enfrentando as frustrações mais que documentadas dos restantes condutores, aturando os feitios nem sempre sorridentes ou afáveis dos passageiros… Há que ter queda para isso.
Mas é também uma classe profissional onde vamos encontrar gente da mais diversificada, que estão neste ofício por este ou aquele motivo e que, tal como os barbeiros, engraxadores e outros, têm sempre uma conversa mais ou menos a preceito para os passageiros.
Eu gosto de ficar um pouco a tagarelar com eles e, garantidamente, aprendo sempre qualquer coisa. Ainda que fuja, quase como o diabo da cruz, das que versam futebol, que já me chegam os companheiros de trabalho.
Hoje, episódio vai, episódio vem, entre histórias de vivências como emigrante na Holanda e do seu relacionamento com os polícias de trânsito por lá, acabei por ouvir uma frase feita que me encheu o ouvido. E a alma também.

“Quando ris, o mundo ri contigo, quando choras, choras sozinho!”

Não lhe fixei a cara, que é difícil de fazer sentado no banco de trás da viatura. E esta era quase tão velha como quem a conduzia, sem nenhum dístico especial nem referencia a nenhuma empresa de rádio-chamada.
Mas quase que parece que adivinhava quando, ainda antes de começarmos à conversa, decidi fazer esta imagem.


Texto e imagem: by me (with a phone camera)

terça-feira, 29 de abril de 2008

Nádegas e peito


Esta é a capa de uma revista. Viajava no colo de uma jovem, sobreposta a livros e cadernos escolares.
Tenho que admitir que não conheço o conteúdo desta revista, que nunca comprei um exemplar. Mas o título de capa deste com toda a certeza que me desencoraja a fazê-lo!
E a lamentar que haja quem gaste não sei quanto para ler um artigo que fala da alteração do corpo de alguém, por muito mediático que esse alguém possa ser. E independentemente das partes do corpo que sejam modificadas.
Claro que a Merche terá interesse em divulgar essa alteração. Pelo menos tê-lo-à, já que, em parte, vive do seu corpo ou da imagem dele. Ou do que dele mostrará ao público. E publicitar que fica com mamas e rabo maiores poderá ser uma forma de angariar mais trabalho, o que lhe será conveniente.
Mas triste, triste mesmo, é que jovens estudantes gastem tempo e energia com estes artigos, quem sabe se com inveja de não o poderem fazer também.
Porque, entendo eu, ser feliz passa também por se estar satisfeito com o corpo que se tem, tenha ele o formato que ele tiver. Já que o que importa não será tanto a embalagem mas antes o conteúdo. E este não se vê através do corpo.

(with a phone camera)

domingo, 27 de abril de 2008

Up grade, down grade, maybe


Tenho, ao longo dos anos, afirmado que todas as câmaras são boas.
O que as diferencia, desde que funcionem sem avarias, são as suas capacidades ou potencialidades. Estará, assim, nas mãos de quem as usa tirar partido do que elas são capazes e aterem-se a isso sem quererem ir mais longe.
Mas se o tenho dito, admito, não o tenho feito muito. O equipamento que tenho vindo a ter tem sido, na medida das possibilidades, o que de melhor venho conseguido arranjar, tanto no que respeita a suporte como ópticas e métodos de exposição.
Desta vez resolvi inverter a tendência. Depois de procurar um pouco e de ter perguntado diveresas vezes em diversas lojas, se tinham uma câmara fotográfica que também fizesse chamadas telefónicas, acabei por comprar um telemóvel (ou telefone celular como assim deve ser chamado) com câmara fotográfica incorporada.
Algumas características se impunham desde logo:
3 MegaPixel de resolução de mínimo;
Funcionamento pelo método de “Idiot proof”, ou seja, totalmente automática, com possibilidade de controlar alguns aspectos, se o entendesse;
Que, para funcionar não tivesse que aumentar de tamanho, ou seja, que não fosse do tipo “slide”;
Que, caso possuísse flash, este pudesse ser anulado;
Que estivesse dentro de uma gama de preços que não o tornasse tão caro quanto uma câmara fotográfica convencional.
A escolha acabou por recair, passe-se a publicidade, no modelo k800i, da Sony-Ericsson. Tem muitas mais possibilidades em todo o seu sistema que as que irei usar, pela certa, mas como telefone portátil e câmara fotográfica cumpre os requisitos.
E, durante uns tempos, conto usar este equipamento a par com a câmara reflex, fazendo um exercício de estilo de me ater ao que ela pode fazer e sem usar dessa coisa asquerosa a que dão o nome de “zoom electrónico”. O que a objectiva, por si mesma, fornecer, será o que usarei, com eventuais correcções posteriores, como sempre fiz.
Veremos – eu e quem por aqui passar – se darei corpo ao que tenho afirmado!


Texto e imagem: by me (with a phone camera)

sábado, 26 de abril de 2008

Testemunhos


Quando cheguei para o almoço habitual na esplanada do Jardim da Estrela (hamburguer, salgado ou salada de frutas, cola e café), o dono veio meter conversa comigo.
Cliente habitual que sou, de há quase dois anos a esta parte, as conversas têm surgido em torno da vida no jardim, das melhorias e dificuldades, dos mercados e feiras, do tempo, aquelas conversas de uns minutos que, com o passar dos tempos, vão mais fundo e longe.
Desta feita, vinha ele mostrar-me um “troféu”: estes jornais!
Tinha lá aparecido um homem que os ia vendendo, ao preço de cinco euros cada um. Verdadeiras relíquias com mais de trinta anos, são por si mesmo testemunhos da história.
Claro que não resisti e, depois de ter comido, pedi-lhe que mos emprestasse para os fotografar. E ainda estivemos um pedaço a falar desses tempos, das vivências de cada um, das consequências de então e de agora e daquilo que agora falta e que então existia.

Passadas umas horas, já eu estava de banca montada fazia tempo e sem clientes, surge-me um cavalheiro. Vinha direito a mim, com uma braçada de jornais velhos sob o braço. E propôs-me o negócio: Todo o molho por cinco euros, que eram os últimos. Claro que não resisti e comprei. Mas estiquei a coisa e ficámos à conversa.
Da minha idade, fôramos companheiros então, sem que nos conhecêssemos. Eu no Padre António Vieira e no D. Leonor, ele no D. João de Castro, tínhamos partilhado os mesmos movimentos juvenis e, a ser verdade as datas e locais que recordámos, frequentado as mesmas reuniões e manifestações.
Este negócio de ocasião a que se dedicava neste dia era fruto dos seus arquivos de então. Mas reservava para si mesmo os exemplares mais significativos, comprados na época e à revelia da vontade paterna. E esses, nem num momento de crise total, ainda que lá caminhasse agora, os venderia.
Ainda estive para lhe dar os mesmos cinco euros e que conservasse os testemunhos. Mas não!
Mais que um negócio, aquilo quase que tinha foros de partilha e a caridade (ou solidariedade), naquelas circunstâncias, talvez que não fosse bem recebida. Que ele estava a escolher os “clientes”.
Fizemos ainda uma fotografia, com um jornal na mão, e ficou de voltar, um destes dias, com a filha e a neta, de quem mostrou as que tinha na carteira. E foi-se!

Até um dia, companheiro!

Um olhar


sexta-feira, 25 de abril de 2008

Sobre este dia


Sabemos que o passado não se deve viver de novo. Diz-nos o bom senso e uma ou outra experiência mal sucedida.
E assim deve ser devido a uma quase impossibilidade factual como também às frustrações que, em regra, advêm dessas tentativas.
Espero assim, que aqueles que nesta data festejem o feriado, não o façam apenas por ser um dia de não-trabalho e estar ameno na rua.
Que entendam que não os factos mas o espírito pode e deve ser mantido vivo, à imagem e semelhança do que foi vivido há 34 anos: Que o futuro está nas nossas mãos e que não podemos nem devemos deixa-lo ao mero sabor dos acontecimentos ou da vontade de uns poucos sobre todos os restantes.
Espero também que aqueles que são mais novos e que festejam com a alegria própria da idade, seja qual for a ideologia que perfilhem, o consigam fazer no futuro, que a geração anterior, aparentemente, desistiu de tal.

E, citando Almada Negreiros:
Não sou pessimista nem optimista! Entre mim e a vida não há mal-entendidos!

O Stor é - II


Em 25 de janeiro publiquei aqui esta fotografia sem o corte censório, naturalmente.
A acompanhar a fotografia coloquei o seguinte texto:

Numa das paredes de acesso à estação da CP de Sete Rios, em Lisboa, alguém escreveu: ‘O stor de TIC é gay e otário (Xxxxxx Xxxxx)’ [Entenda-se que os X’s são a supressão dos nomes que constam na parede]
Consigo imaginar um qualquer aluno frustrado com as notas, incapaz de fazer uma auto-avaliação isenta.
Mas quem é capaz de tal?


Entendi eu que o texto seria jocoso ou critico para com quem o escreveu e, de forma alguma, para o referido Stor de TIC. Entre outros motivos porque, tendo eu passado uns bons dez anos da minha vida em actividades lectivas, bem sei o que é o espírito mordaz da gente jovem e até que ponto são capazes de encontrar formas de se vingarem do que consideram não ser justo. O que nem sempre corresponde à verdade!

No entanto, dois meses passados da publicação do post (2008/04/24), alguém sob anonimato escreveu os seguintes comentários:
Ó amigo, uma vez que não encontrei o seu e-mail no blog agradeço que retire a referência ao meu nome e a imagem. Ao menos podia ter pensado em omitir o nome completo não é? Obrigado”
“Já agora fico grato se me puder dar uma ideia do mês/ano em que terão escrito isso (quando viu pela 1ª vez?)


Como disse acima, a minha intenção não foi, de forma alguma, ofender ou insultar o professor ali referido, pelo que aqui fica a imagem corrigida bem como o texto. Os meus pedidos de desculpa por qualquer incómodo causado.
Bem como os meus pedidos de desculpa por no blog não constar o e-mail. Aqui fica: jcduarte98@gmail.com .
Quanto a datas, sempre posso acrescentar correndo o risco de me chamarem ‘bufo’, que a fotografia foi feita enquanto fumava um cigarro ao fim de uma tarde de fotografias na cidade, num entretém entre andar de metropolitano e na linha de Sintra. E não costumo estar ali nesse local. Mas a fotografia possui a data de registo de 25 de Janeiro de 2008.

Claro que não se pode agradar a gregos e a troianos. Se deste meu post advier algum incómodo para o ou os autores do graffiti, os meus pedidos de desculpa também! Mas se não esperavam que fosse lido, melhor seria que não o tivessem escrito num local onde uns milhares de olhos o podem ler diariamente, ao invés das poucas dezenas que me dão a honra de por este espaço virtual passarem.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Sobre esta semana - VI


No constante fazer de imagens do quotidiano, as que são normais, regulares, habituais, vão-se desvanecendo, como papel fotográfico mal fixado, restando delas contornos vagos e imprecisos.
Do que recordo de há 34 anos, para além da festa da revolução por si mesma (o fim da guerra, da censura, da ditadura, da polícia política) ficam as imagens da festa do quotidiano!
Cada dia era um dia, razoavelmente imprevisivel e em que as suas consequências dependiam, em boa parte, do que fizessemos. Não deixávamos o futuro em mãos alheias e intervinhamos, a cada passo, nos que a nós dizia respeito e no que ao colectivo tocava.
Construíamos! Debatiamos! Sonhavamos! Faziamos!
É esse espírito de construção permanente, de almejar mais e melhor e de fazermos por isso (sem esperarmos que outros o fizessem por nós nem para eles passassemos as responsabilidades de tal) que recordo com mais força. São fotografias perfeitamente impressas e fixadas que jamais se desvanecerão. Apesar dos aspectos negativos (que os houve) que aconteceram então e que ainda hoje marcam parte da nossa vida.
No espelho do tempo vejo aquilo que agora faço porque aconteça: intervir na sociedade, estando lá de corpo e alma, melhorando o que de menos bom vamos tendo e celebrando o que de alegre e positivo existe.
Mas quando olho para trás e para o lado, lamento sinceramente que esta atitude interventiva, que então grassava, se tenha desvanecido, qual imagem velha e mal cuidada.
Quando, daqui por 34 anos, olharmos para as imagens deste tempo que vivemos, o que sobrará serão imagens cinzentas ou amareladas, mal fixadas e amarfanhadas.
Por que nesta sociedade, a alegria de ser passou a alegria de ter. E o consumismo dos tempos que correm transforma de um dia para o outro a novidade em velharia, pouco restando para recordar.
As fotografias que então fizemos com a alma repassam no tempo. As que hoje vamos fazendo, porque virtuais e afémeras, não sobreviverão à vertigem das novas novidades para consumir!

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Sobre esta semana - V



Trovas genealógicas








Minha avó era uma pulga
minha mãe era um sardão.
Sou neto dum corno velho
(não há pulga sem senão).

Refrão:
Nascemos intempestivos
dum coito de ideias tolas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas.

Arre lagarto lagarto
lagarta da geração
mais vale morrer de parto
que nascer de inspiração.

Refrão:
Nascemos intempestivos
duma réstia de cebolas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas.

De sete primos que tinha
quatro são peixes da horta
dois peixes da ribeirinha
e um peixe de retorta.

Peixe-espada peixe-cama
avó pescada do alto
titicaca citirama
paisagem de pó de talco.

Refrão:Nascemos intempestivos
do rolo das pianolas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas

Jesu jesu que não posso
dar passada no passado
sem que tropece no osso
de algum avô desusado.

Ossos que dançam o tango
caveiras valsificadas
orangonassaugotango
esgotado de almas panadas.

Refrão:Nascemos intempestivos
do tango das castanholas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas

Tíbias perónias famílias
rotuladas titulares
chi de burro chá de tília
esqueletos protocolares.

Sentimentos sedimentos
sacramentos sedativos
alimentos excrementos
mas nunca preservativos.

Refrão:
Nascemos intempestivos
duma união de santolas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas.

Jesu jesu que pecado
impedir a criancinha
de passar um mau bocado
quando sair da bainha
Jesu jesu que pecado
pôr o ovo na sentina.

Final:
Nascemos rebarbativos
dum coito de ideias tolas
estamos vivos estamos vivos
fomos feitos em ceroulas.

Nascemos intempestades
dum parto de ideias falsas.
Somos homens na verdade
assim o provam as calças.”





José Carlos Ari dos Santos

terça-feira, 22 de abril de 2008

Sobre esta semana - IV


Boa parte da população portuguesa pouco sabe sobre o que se comemora na próxima sexta-feira.
Sabe que se trata da revolução de Abril, que foi em 1974, que terminou com o regime ditatorial e com a guerra e com a censura e com a polícia política e que permitiu pensar e dizer… Mas sabe-o por ouvir contar a quem o viveu. Não tem culpa de tal, já que seriam muito novos, se acaso fossem nascidos. Porque, afinal, 34 anos é uma vida, mais que uma vida para muitos.
Mas aquilo que as artes e as letras, bem como os historiadores e demais investigadores, não têm contado é o espírito dos tempos que se lhe seguiram!
Com muitas asneiras e erros pelo caminho, com faltas de alguns bens essenciais, com aproveitamentos de toda a ordem e pressões não muito claras ainda hoje, a verdade é que os cidadãos queriam construir o seu futuro. Com as suas mãos!
E no meio das vicissitudes de então, havia uma alegria no ar, uma vontade de fazer, um constante ouvir “Então e se fizéssemos isto? Bora lá!” e as mangas arregaçavam-se e algo acontecia. E, apesar das dificuldades endócrinas e exógenas, encontravam-se sorrisos e alegria a cada esquina. O entusiasmo era a tónica dominante!

Hoje, quem quer se se passeie em Portugal, vê semblantes carregados, olhares postos no chão, cores escuras e uniformes. E os comportamentos centrados nas actividades e vidas de cada um, ignorando ou fazendo por ignorar o que acontece fora do circulo mais fechado das suas vivências. Poucos são os que dão de si e do seu tempo para construir o amanhã da sociedade e, no lugar de se ouvir “Vamos fazer!” ouvimos tão só “Eles têm que fazer!”
É um muro de indiferença, é um alijar de responsabilidades, é um comprar resultados feitos. E as culpas caiem sempre em cima dos outros, esquecendo-se cada um de cumprir a parte que lhes cabe no colectivo que somos.
Porque se “O povo é quem mais ordena!”, é também ele quem constrói! Quando não, continuaremos num cinzentismo emparedado, numa mera antecipação da tumba que nos espera!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Sobre esta semana - III


As revoluções são feitas e depois a vida segue o seu curso normal. É fácil.

O que é mesmo difícil é fazer a revolução das mentalidades.
Há mais de dois séculos, estas foram as palavras de ordem na revolução francesa.

Ainda hoje estão por cumprir!

domingo, 20 de abril de 2008

Sobre esta semana - II


Os Estados Unidos da América não têm uma religião oficial, ao contrário da maioria dos países ocidentais.
Foi mais ou menos assim o texto que a jornalista leu antes de apresentar uma reportagem sobre a campanha eleitoral nos EUA.
Esta afirmação até que acaba por ter graça, já que no dinheiro oficial desse país consta “In god we trust”, ou seja “em deus confiamos”.
Mas o que é mesmo grave é o que está meio escondido nesta frase: Que a maioria dos países ocidentais possuem uma religião oficial. Que isto não é verdade em geral e muito menos no que respeita a Portugal!
Na altura dei um salto na cadeira e apresentei o meu protesto junto de quem poderia ser considerado responsável pela afirmação. Inútil!
Com a determinação de quem entende estar certo à revelia de evidencias, foi-me afirmado que, ainda que a constituição portuguesa afirme o contrário, que a relação com o Vaticano seja apenas de acordos, tal como com outros países, e que a lei separe os poderes políticos dos religiosos, visto que a maioria da população portuguesa era católica isso tornava Portugal um país oficialmente católico e, portanto, religioso.

Aquilo em que se acredita é do foro íntimo de cada um e, no que toca a religião um pouco mais. Mas daí a levar as crenças e convicções pessoais a verdades indesmentíveis e universais e fazer passar isso num noticiário vai uma grande distância.
Não pode o jornalista, seja qual for o cargo que ocupa, misturar factos com opiniões. Sob pena de o conceito de isenção jornalística ser deitado às urtigas e de poder ser acusado, quiçá com motivos para tal, de querer usar os órgãos de comunicação social como forma de manipulação da opinião publica e de distorcer a verdade dos factos em prol de interesses ou convicções privadas.

Foi uma das conquistas da Revolução de Abril: a liberdade de imprensa e de informação. Mas foi também uma das obrigações que dela adveio: a responsabilidade de cumprir a ética jornalística.
Deixar que tempo volte para trás e permitir que os media sejam veículadores de opiniões como se de verdades se tratem, subversores dos factos e indutores das vontades de uns quantos é algo que não podemos, enquanto cidadãos conscientes e participativos, permitir que aconteça!

sábado, 19 de abril de 2008

Sobre esta semana






Para ouvir enquanto lê AQUI


Eram folhas de papel encerado.

Com uma área útil igual ao A4, possuíam ainda no topo um acréscimo de papel perfurado que servia para prender no tambor rotativo do policopiador.
Os textos eram ali colocados à máquina, sendo que cada erro tinha que ser tapado com um verniz especial. Tanto um como outro eram roubados na secretaria da escola que os pais de um de nós possuía.
Os tipos da máquina de escrever portátil agrediam a cera na garagem, onde era suposto estarmo-nos a divertir com as actividades normais para rapazes dos 15/17 anos. Na altura eu ainda me ficava pelos 14.
Copiado que estivesse o texto, era a vez do artista do grupo se chegar à frente para que, com um estilete, rasgasse na cera os traços que resultariam nos desenhos previamente criados. Originais ou apenas cópias de algum outro.
Com a folha feita e religiosamente guardada entre cartolinas para que não se estragasse, subíamos então para a secretaria. Como isto acontecia ao fim-de-semana, esta estava vazia, o que nos dava tempo de, a coberto da música dos EP’s ou LP’s da garagem, dar à manivela do stencil e imprimir duas ou três centenas de panfletos.
Distribuíamos o molho entre nós e cada um ficava encarregue de os colocar na sua escola ou liceu.
Uma ocasião fui apanhado, mas foi inconsequente.

E se não fossem estes panfletos, seriam os do MAEESL (muitas siglas se usavam então e muitas mais nos tempos que se lhe seguiram).
Deste movimento ainda fui assistir a algumas reuniões, algures ali para os lados do jardim da Estrela, sempre com sentinelas estrategicamente colocadas, não fossem as forças da autoridade, fardadas ou à civil, irromperem.
Recordo em particular algumas sebentas de textos para a disciplina de ciências que eles editaram. O livro que tinha sido adoptado era particularmente caro, pelo que se fizeram cópias e distribuíram pelos estudantes. Sempre com o risco de sermos apanhados pelas autoridades. Porque nos tinham visto ou porque tínhamos sido denunciados.
É curioso como, no Liceu Padre António Vieira em Lisboa e ao contrário de outros, ninguém foi incomodado com esta sebenta. Até a minha professora tinha uma…

Até que um dia, ao chegar às aulas, nos disseram que não havia, que fossemos para casa, que tudo estava a mudar, que era chegado o dia…


quinta-feira, 17 de abril de 2008

Sobre "Jail - at work"


Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, uma fotografia não é uma representação do que foi fotografado!
Claro que, ao olharmos para ela, vemos as pessoas, os locais, os objectos. Aquilo que o fotógrafo viu com os olhos e com a objectiva. Vemos o pedaço de espaço-tempo que ele imortalizou com a sua perspectiva.
Mas também vemos, e isso é o principal numa fotografia, o seu estado de alma, a sua perspectiva interior. O facto de ele ter escolhido aquele instante e não um pouco antes ou depois, de ter optado por aquele ponto de vista e não um pouco mais ao lado, o ter sido com aquele ângulo de visão e não mais aberto ou fechado, mostra-nos como ele se sentiu naquele momento, ao olhar, ver e captar.
Indo ainda mais longe, mostra-nos, caso ele – o fotógrafo – nos mostre a fotografia que realizou, que ela é de facto um reflexo dos seus sentimentos e estados de alma. Porque senão o fosse, e ainda que tivesse obturado a câmara, teria ficado esquecida num qualquer arquivo ou caixa.
O corolário desta afirmação (A fotografia é um retrato do fotógrafo e não do fotografado) é fácil de encontrar.
Aqueles que, por um qualquer motivo, transportam consigo em permanência uma câmara fotográfica, acabam por fotografar inúmeras vezes o mesmo assunto. Com variações de luz, de hora, de circunstância. E de elementos variáveis como pessoas, animais, sombras…
O que faz, então, o fotógrafo fotografar o que já fotografou? Registar o que já está registado? A forma como viu o que já está visto! Como sentiu aquilo que conhece de perto. E os sentimentos, tal como a luz, mudam ao sabor dos acontecimentos. Umas vezes abordagens positivas, outras negativas, um pôr-do-sol pode ser um fim de dia ou um inicio de noite. A mesma porta será uma entrada ou uma saída. O mesmo sorriso um convite ou um sarcasmo.
A fotografia não retrata o que está à frente da objectiva mas antes o que está atrás do visor!
A fotografia é uma impressão digital da alma, em que a luz mais não é que a tinta!

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Jail

At work!

Mineral, vegetal, animal


Racord


Sobrevivência, a quanto obrigas!


Num quartel de bombeiros voluntários onde, supostamente, a actividade dos seus elementos e corporação será abnegada e em prol da comunidade, a sobrevivência económica depende de patrocínios e publicidades.
E os cidadãos, quando passam, no lugar de verem os que, voluntariamente, arriscam a vida e dão o seu tempo livre pelos outros, apenas vêem mais um cartaz a incitar ao consumismo desenfreado.
Para já não falar na arquitectura do edifício, que já poucos haverá com este traço, escondida atrás de um telão de qualidade estética duvidosa.

terça-feira, 15 de abril de 2008

007, ordem para comer


Trinta lugares, divididos por sete mesas. Escondido na rua Sargento Mor.
Na ementa, informam-nos que nos serve há trinta anos. E não o conheço por tantos, mas por pouco menos, que é um dos meus pousos regulares, desde as minhas primeiras visitas à cidade.
E atesto, sob minha honra, a qualidade do que ali é servido, bem como a simpatia imutável ao longo dos tempos.
Trata-se do restaurante 007. Numa rua da cidade velha.
Objecto de modernizações, não muitas e fruto dos tempos e da ASAE, suponho.
Para além da qualidade e simpatia, tem mantido o nível baixo de preços e o insistir que serve cozinha tradicional portuguesa, como atesta o letreiro que exibe no exterior, quase atravessando a rua, de estreita que é.
Tropecei nele aquando de uma das minhas primeiras visitas aos “Encontros de Fotografia de Coimbra”. E fiquei cliente regular desde então.

Os bifinhos com molho tinto, acompanhados por esta meia garrafa da casa e encimados, por sugestão de quem me atendia, por um pudim de gemas, deixaram-me na boca vestígios tão agradáveis que nem pedi o clássico café, não fora eles perderem-se.

Fim do dia


Lá do fundo do buraco,
de onde ainda
consigo descortinar
uma nesga de céu,
foi assim que ontem vi
o final do dia!

domingo, 13 de abril de 2008

2/3 em cheio e prémio de consolação


Os Encontros de Fotografia de Coimbra extinguiram-se há algum tempo. Devido à idade ou devido às políticas. Mas, certamente, devido às pessoas.
Mas isto não significa que Coimbra tenha morrido para a fotografia. Mais ou menos herdeiro dos Encontros, surgiu o Centro de Artes Visuais. E outras pessoas mantiveram, por sua vez, a actividade fotográfica viva, tanto na produção como na exibição.
Assim, justifica-se regressar, volta e meia, à cidade dos estudantes para ver fotografia. E aproveitar a ida, a vinda e a estada para pensar fotografia, imaginar fotografia, cogitar fotografia, questionar fotografia. Foi o que fiz!
Na lista do que a ver, tinha o CAV, onde ia às cegas sem saber o que iria encontrar, uma exposição de JMF Coutinho, um criador fotográfico que ali reside e que mantém viva a actividade, para si e para os outros (bem haja!), e um exposição, também individual, de Frederico Neves.

A primeira era no local onde o CAV está instalado – o Pátio da Inquisição. E é curioso pensar que um local com um passado tão sinistro como este serve hoje para ver e degustar trabalhos criativos e inovadores. E o que por lá vi surpreendeu-me e deixou-me a pensar. E com umas pistas de trabalho para fazer.

O segundo destino está localizado na Galeria Almedina. Sendo que está fechada ao sábado, o acesso faz-se pelo Edifício Chiado, que é um espaço de exposições municipal. O local é soberbo, com uma arquitectura única, e recomenda-se a visita, quanto mais não seja por isso.
Quanto às fotografias, é curioso encontrar uma exposição cujos trabalhos se sintonizam em pleno com a minha própria forma de fotografar e pensar. Foi uma meia hora particularmente estranha e agradável.

A terceira exposição situa-se no hotel D. Luís, em Santa Clara. Integra-se no projecto “Photographya Project”, de que é mentor JMF Coutinho.
Mas não vi os trabalhos desta. O hotel em causa fica fora da cidade, um bom pedaço fora da cidade. Um esticão valente para quem está apeado como eu. E a informação que me deram no posto municipal de turismo, logo à chegada à cidade, é que o único autocarro que serve o local não funciona aos fins-de-semana. Ainda iniciei o trajecto a pé, mas desisti a meio por via da distancia e da chuva.

Portanto, dois terços dos objectivos previstos cumpridos não é uma má média, ainda que tivesse preferido os 100%.
Mas a falta de 33% foi suprida por dois prémios de consolação, ambos também relacionados com fotografia.
O primeiro foi dar de caras, logo no desembarque, com um conhecido. Trata-se de uma das minhas visitas mais ou menos regulares ao “Oldfashion”, no Jardim da Estrela. Um militar da GNR, que presta serviço na Assembleia da República e que gosta, nos tempos livres, de pintar. As nossas conversas têm versado a fotografia, a pintura e os comportamentos humanos, temas que, admita-se, não são o que se espera de alguém abaixo dos trinta e com este ofício. Encontrava-se ali em trânsito para a sua terra natal nos arredores, já que de licença de fim-de-semana.
Quem diz que Portugal é grande? É pequenino que nem uma aldeia, onde todos se conhecem.

A segunda surpresa ou prémio foi ver fotografia em acção.
Promovida por um estabelecimento comercial na área da cultura, decorria na cidade a 2º Maratona Fotográfica XYZ de Coimbra. E era ver, um pouco por toda a cidade, fotógrafos sozinhos ou em pequenos grupos, com o cartão identificativo ao peito, a olharem, a verem e a captarem. Até dava gosto.


Vale a pena ir a Coimbra por motivos fotográficos

Imagem, direito e justiça


Esta foi uma semana simultaneamente triste e alegre pelos mesmos motivos.
Por duas vezes soube que cidadãos, a título individual ou organizados, protestaram contra o que consideram a violação do seu direito à reserva da imagem.

No primeiro caso, trata-se de um homem, residente no Porto, que não gostou de ver a sua imagem publicada no boletim municipal. E recorreu aos tribunais, responsabilizando o presidente da câmara pelos factos.
A fotografia mostra-o na sua actividade de arrumador de automóveis que exerce, segundo o próprio, por ser doente e não poder trabalhar. Acrescenta ainda que não é nem nunca foi toxicodependente. E o artigo que acompanha a fotografia induz o leitor a aliar as duas condições (arrumador e toxicodependência). A fotografia foi feita sem o seu conhecimento e, consequentemente, a sua utilização sem a sua autorização.

No segundo caso, foi a DREN (Direcção Regional de Educação do Norte) que apresentou queixa contra alguns órgão de comunicação social (uma estação de televisão e alguns jornais) por terem exibido as imagens “malditas” do caso da professora, da aluna e do telemóvel na escola Carolina Micaelis. Segundo a argumentação da DREN, a queixa deve-se ao facto de as imagens terem sido exibidas sem ter havido o cuidado de preservar ou ocultar as identidades dos intervenientes.

Entristece-me saber que entidades idóneas e com responsabilidade, como um município ou órgãos de comunicação social com grande experiência e público, tenham cometido estes delitos, infracções à ética ou, se quiserem, crimes.
Deveriam ser os primeiros a respeitar em pleno os direitos dos cidadãos, que se trate do mais óbvio direito à vida quer seja dos mais subtis ou polémicos como o direito à reserva da imagem e à privacidade.
Que se os exemplos não forem dados por quem nos representa na organização da sociedade ou na divulgação e formação da opinião pública, dificilmente os cidadãos menos avisados ou informados terão o cuidado ou se sentirão na obrigação de respeitar os códigos de conduta.

Alegra-me saber que, seja qual for o estrato social, o direito à indignação e ao acesso à justiça existe e é praticado.
Que aqueles que têm uma vida humilde, de dificuldades e a raiar a indigência, ainda têm orgulho em si mesmos e dignidade suficiente para dizerem “Não quero” quando os seus direitos são violados grosseira ou subtilmente. Seja qual for o tamanho aparente de gigante que o “violador” possa ter.
E agrada-me saber que uma organização de educação decide e actua no sentido de resolver uma situação polémica, tanto no seu seio como no exterior, seja qual for a mediatização do caso. Entendendo que em local privado, como o é uma sala de aula ou todo o estabelecimento de ensino, é tão errado o recolher imagens sem autorização dos visados como a sua divulgação. Que “É tão ladrão o que vai à vinha como o que fica a ver!”, como diz o adágio popular.

Claro que estes dois casos de pedido de intervenção da justiça poderão ter outros motivos não confessos. Questões meramente materiais e de oportunidade ou ligadas a vertentes de política, partidária ou não.
Também sei que os media, como é seu hábito, tendo dado a notícia do início, não darão a do desfecho. Quer seja pelo tempo de mediará até ele, transformando-o em “velho e ressequido”, quer seja por alguma inoportunidade política na altura, quer seja pelo incómodo que qualquer um dos casos é ou será para o quarto poder todo-poderoso.

Seja como for, será bom que cada um de nós, na condição de “Objecto de registo de imagem” ou na condição de “Produtor ou recolector de imagens” pense até que ponto podemos ou devemos exigir o cumprimento do direito à reserva da imagem e até que ponto podemos ignorá-lo e divulgá-las.
Que o poder dos media (TV, imprensa, web), que não é democrático porque não é sufragado, não pode ser omnipotente nem se considerar acima dos direitos dos cidadãos.

sábado, 12 de abril de 2008

Uma historieta de comboios


O Zé vivia em Coimbra.
Mas não estava lá muito satisfeito. O romantismo do fado de Coimbra, os estroinas dos estudantes, um país que vivia do sol e de uns eventos que aconteciam lá longe, na capital… Não estava satisfeito!
Mas desde pequeno que tinha ouvido falar de Vladivostok, cidade lá no outro extremo do outro continente, onde as pessoas viveriam bem, em paz umas com as outras. Sempre ouvira falar bem de Vladivostok e criara um desejo enorme de para lá ir viver. Até sonhava com isso de noite.

Um dia perdeu vergonhas e acanhamentos, fez a trouxa, pequena, e sem sequer se despedir de quem quer que fosse, partiu para a terra dos seus sonhos. Foi à estação de comboios e pediu:
Um bilhete para Vladivostok, por favor.
Na estação não conheciam, pelo que lhe disseram:
Leva este até Paris e aí pergunta como lá chegar.
Embarcou e foi. À chegada foi ao guichet e pediu:
Um bilhete para Vladivostok, por favor.
Não constava dos horários das ferrovias, mas suspeitavam que fosse para Leste. Disseram-lhe:
Para lá não temos, mas leva este até Berlim e lá vê como seguir.
Pegou no bilhete, subiu para a composição e foi. E assim que pisou o cais, à chegada, foi à bilheteira onde pediu:
Um bilhete para Vladivostok, por favor.
Do outro lado do vidro olharam uns para os outros, encolheram os ombros e responderam-lhe:
Não temos. Mas podemos passar-lhe um para Varsóvia. Lá deve haver.
Encolhendo os ombros também, porque estava no caminho de qualquer forma, foi. E, já na estação central de Varsóvia e em chegando a sua vez na fila para bilhetes, pediu:
Um bilhete para Vladivostok, por favor.
Também ali não lho venderam, mas deram-lhe um para Moscovo com a recomendação de por lá perguntar. E foi.
E o vendedor de bilhetes moscovita, ao ouvir o pedido: “Um bilhete para Vladivostok, por favor.” entregou-lho logo, com desejos de boa viagem. Que ele fez com satisfação.

Acontece que a terra dos sonhos nem sempre é como a imaginamos. Neste caso tratava-se de uma cidade fria, escura, com poucas horas de sol e onde a bonomia e boa-disposição não se encontravam a cada esquina como na sua terra natal – Coimbra.
E passado algum tempo as saudades começaram a roer-lhe a alma e morder forte a ponto de decidir regressar.
Dirigiu-se à estação de caminho de ferro e pediu:
Um bilhete para Coimbra, por favor.
Com certeza”, responderam-lhe, “Coimbra-Cidade ou Coimbra-B?

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Vergonhas!


Foi numa véspera de Natal, e eu tinha a mania que era foto-repórter.

De arma em punho ia para a rua disparar sobre tudo o que mexia ou não e que pudesse fazer sentido.

Mas não fazia sentido este rapaz vender estes jornais, neste dia, com frio.
Nem com calor.
Nem em qualquer dia.
Nem nenhum jornal.

Nunca com esta idade.


Então ou agora!

Quatro photos


Do que aqui está exibido, o que é que possuo?
Possuo a película original em que foi registada a luz reflectida por estes corpos e matérias. Em exclusivo!
Possuo a memória de as ter efectuado: em que circunstâncias, em que datas, o que as antecedeu e sucedeu. E isso é meu!
Possuo a autorização para as efectuar, já que em qualquer dos casos conheço ou conheci as pessoas retratadas. O fazer destas fotografias resultou de uma cumplicidade entre fotógrafo e modelo, agindo um em função do outro. Foi um tempo e vivências minhas! Nossas!

Mas será que eu sou o dono integral destas fotografias? Será que o simples acto de fazer um click e aqui as publicar é um gesto legítimo? O simples facto de possuir a matéria que reproduz uma experiência comum, será me dá o direito de a partilhar desta forma?
E se as fotografias tivessem sido efectuadas à sorrelfa, sem autorização dos retratados? Poderia eu exibi-las da mesma forma? Os originais continuavam meus, o acto de fotografar continuava a ser meu, mas…

O possuir uma fotografia - simples reflexo meio pavloviano do desejo de possuir algo ou alguém ou alguma situação – não me dá o direito de o divulgar à toa, em qualquer circunstância e por qualquer meio. Existe uma obrigação ética e moral de respeitar a pessoa fotografada e de, no mínimo, questioná-la sobre a sua vontade em divulgar as suas fotografias.
Na sociedade de informação em que vivemos, onde a imagem é a imperatriz, não é por estarem banalizados os meios de produção e reprodução de retratos que os podemos usar e abusar a nosso bel-prazer.
O simples facto de aqui publicar quatro retratos, quatro interpretações pessoais de quatro pessoas, sem as suas autorizações, é uma agressão aos retratados. E, por isso, corro o risco de ser questionado e responsabilizado.

Posso partilhar o que é meu. A imagem de outra pessoa só em parte me pertence!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Preço da chuva


Poucas vezes me tinha acontecido. Umas duas ou três, no máximo.
Mas talvez devido à gripalhada que andou por aqui a rondar ou, quem sabe, ao maldito dente com mau feitio que tem manifestado um carácter de uma tarântula com uma crise hepática, a verdade é que fui apanhado de surpresa. E o meu guarda-chuva virou, na verdadeira acepção da palavra. Deixou de “me” guardar da chuva para passar a guardar “a” chuva no seu côncavo invertido. Uma forte rabanada de vento de direcção insuspeita assim o levou a tal.
Eis-me, assim, com um inútil feixe de varetas metálicas e tecido nas mãos, tentando em vão fazê-lo regressar à sua função original: proteger-me. E, entretanto, tomando o segundo banho do dia, bem massajado de todos os lados, sem esquentador ou toalha por perto. Que também não ficaria por ali por muito tempo, por via do vento.
Furioso mas conformado com a inevitabilidade dos factos consumados, tratei de o colocar num contentor de lixo próximo e, protegendo-me como podia nos beirais e soleiras de porta, continuar o caminho para o trabalho, sabendo que lá mais em baixo, perto da estação, haveria onde comprar outro, a troco de trocos ou pouco mais.
Foi assim que me estreei a entrar naquela loja de bairro que, em tempos, terá sido “dos trezentos” e que ainda não foi abarbatada por gente de tez amarelada, sem “R’s” na fala e com um sorriso permanente no rosto.

Guarda-chuvas, tem?”, perguntei pingando como se eu mesmo fosse um.
Ainda tenho aqueles dois ali e outros modelos aqui, neste cesto.” Foi o que ouvi da rechonchuda senhora que fazia guarda junto à caixa.

Os tais dois eram mais ou menos convencionais, de tamanho moderado e robustez mediana. Os outros eram de encolher para transporte, óptimos para essa função mas pouco práticos quando abertos e sob as intempéries.
Peguei num dos grandes, sopesei-o, abri-o (“Pode ser aqui dentro que não sou supersticiosa. E já abriram tantos hoje aqui…” disse-me ela sorrindo), constatei da sua praticabilidade e decidi-me:
Está vendido! Quanto é?
E fiquei de boca tão aberta quanto o maldito dente permitiu, pouco faltando para parecer o bendito guarda-chuva propriamente dito.
Um euro e setenta. É o que está na etiqueta.
E era. E era igualmente incrível como poderia ser tão barato. Menos que um maço de cigarros! Menos que uma refeição, mesmo das económicas! Menos que uma viajem para o trabalho!
A minha cara deve ter espelhado isso mesmo. E foi a vez do garoto, de uns treze anos e que estava ao lado da lojista, se pronunciar:
Não se preocupe com o preço! Se se estragar ou se o perder não lhe fará pena e sempre poderá comprar outro!

Ora batatas! Ainda este não saberá bem o que é ganhar a vida ou dar um presente a uma namorada, e já está integralmente imbuído do espírito consumista e facilitista da sociedade moderna! Usar e deitar fora, não importa o quê!
Não me fiquei e, enquanto procurava os trocos para o negócio, perguntei-lhe pelo relógio. Não o tinha. E perguntei-lhe pelo telemóvel. Claro que tinha! E perguntei-lhe ainda se o tinha comprado por ser barato e descartável ou se por ser bom e fazer aquilo que se queria dele.
“Porque gostei dele e não quero deitar fora! E ainda foi barato!”

Espero que tenha entendido (mas não acredito) que na vida, tal como nos guarda-chuvas e nos telemóveis, o factor preço é apenas um elemento da equação e nem sempre o mais importante.
E o belo do guarda-chuva, a preço da chuva, tem feito nestes dias de tempestade o seu trabalho regular e solidamente, valendo bem mais que o que paguei por ele.
E valendo, certamente, muito mais que o salário que uma qualquer criança asiática terá recebido para o fazer!

Passageiros

A conversa já estava a azedar. Não era nada comigo, mas levantei o nariz do livro para a seguir, que as vozes já se alteravam
Estávamos no comboio suburbano, parados numa estação. A troca de palavras era entre o revisor e um passageiro. Mas a comunicação mal se fazia.
O passageiro, preto retinto, praticamente não falava português, tentando fazer-se entender em francês. Muito polidamente, mas em francês.
Por seu lado o revisor pouco ou nada sabia ou queria saber daquela língua. Apenas lhe interessava que o bilhete não era válido e havia que pagar a multa. Principalmente aqueles “escarumbas borlistas”, que tinham que pagar como todos os outros
A dado passo, agarra o passageiro por um braço, arranca-o do banco e arrasta-o para fora da composição. Os modos violentos do funcionário da CP pareceram-me muito para além do aceitável perante a atitude do passageiro.
Sabendo que o francês não é uma língua universal (e é pena porque até é bonita) resolvi intervir, quanto mais não fosse como intérprete. Pelo caminho que as coisas levavam, aquele fulano até que iria passar um mau bocado se ninguém o entendesse
Quando cheguei ao edifício, cruzei-me com o revisor que regressava à composição. Espumava e praguejava como poucos.
No cais, passageiros largavam impropérios contra a CP, o revisor e o passeiro borlista. Nada justifica estes atrasos!
E o comboio partiu.

Entrei meio a medo no gabinete do chefe da estação, onde este estava com a dificuldade que eu previa: a língua. Mas agora o tom da conversa tinha baixado para níveis civilizados.
Ofereci-me para traduzir, e a história assentava em mal entendidos. Tinha ele comprado uma senha de passe, aquando da sua mudança de residência para aquela zona, havia dias. Tinha perguntado se valia por um mês, o que lhe disseram que sim. O que não lhe explicaram era que se tratava de um mês de calendário e não de trinta dias a contar da data de compra.
E os bilhetes anteriores que tinha consigo comprovavam a veracidade da história.
Acontece, porém, que o chefe da estação já nada podia fazer. Apesar de estar incomodado com os modos do revisor, o auto já estava levantado. A multa teria que ser paga, até porque o infractor já estava identificado.
Havia apenas uma coisa a fazer: Apresentar a história no Gabinete de Apoio ao Cliente, no Rossio, e esperar que a sede resolvesse a questão. Ele próprio telefonaria para lá para contar a história.

Já que estava apeado, decidi acompanhar o caso. Fui com o passageiro até lá. A probabilidade de encontrar gente que fale francês é pequena nos tempos que correm.
Pelo caminho contou-me a sua história, rica de detalhes de países pobres e de dificuldades. Migrante clandestino, tinha conseguido legalizar a situação havia pouco, mas este tipo de situações só lhe estragavam as possibilidades de ficar em permanência.
Na altura, trabalhava na construção do tabuleiro ferroviário da ponte 25 de Abril. No turno da noite. E a jorna já estava perdida, que não lha iriam pagar com aquela atraso todo.
Chegados ao Rossio, apresentei o caso, mas nem tive muito que fazer já que a simpática senhora que ali estava não só já sabia do caso como dominava o francês.
Apesar disso, e tomadas as notas necessárias sobre a questão do bilhete, eu não me fiquei, que a questão da atitude do revisor me incomodava.
Ali mesmo formalizei queixa contra ele, por comportamento racista, impróprio e violento para com os passageiros.
E fiquei de voltar a saber o resultado das duas situações.

Passadas duas ou três semanas, recebi uma carta das relações públicas da CP, onde era informado do arquivamento do processo contra o passageiro, por terem sido provadas as suas argumentações.
Quanto à minha queixa sobre o revisor, nunca me responderam, mas deixei de o ver naquela linha, como era hábito. Suponho que tenha levado a sua raiva latente contra outras cores para outro lado. Pobres utentes dessa outra linha!

E o passageiro? Durante algum tempo cruzei-me com ele na estação. Depois deixei de o ver e aos seus conterrâneos. Parte da comunidade Zairense migrou deste subúrbio para um outro qualquer mais barato, e ele deve tê-la acompanhado.

domingo, 6 de abril de 2008

Dá cá, toma lá!

Olá! Bom dia! Você gosta mesmo dessa música que está a ouvir no seu telemovel em alta-voz?
Claro que sim! Qual é a sua?
Bem, é que eu não gosto mesmo nada dela e sou obrigado, aqui no comboio, a ouvir o seu “catchapum, catchapum, catchapum” com muito ritmo, melodia imperceptivel e harmonia duvidosa. E como não faz sentido ter que ouvir uma coisa de que não gosto num local onde não é suposto haver música, que tal apagar o aparelhou ou usar de uma invenção já antiga, chamada “aucultadores”?

Esta é uma conversa inventada. Mas muitas vezes imaginada, nos tempos que correm.
Mas consigo igualmente imaginar a sua continuação, com uns impropérios lançados pelo meu ineterlocutor e seus amigos, eventualmente com uns apelos à ignorancia consubstanciados por uns encontrões e outros mimos de cariz físico.
E não me apetece passar por isso. E também não me apetece continuar a ouvir músicas que me desagradam.
Tal como não me apetece mudar de lugar (que paguei) só porque alguém decidiu agredir os demais com os seus gostos musicais. Em tempos havia, mas já foi retirado dos avisos, a interdição de, a par com armas de fogo carregadas e animais, usar aparelhos de TSF nos transportes colectivos. Para os mais novos, fica a tradução: TSF = Telefonia Sem Fios.

Assim, tenho andado com uma ideia alternativa aqui a medrar:
Prescindindo do meu actual telemovel, já velhote, monocromático e monofónico mas quase perfeitamente funcional, comprar outro. Gastar umas lecas e ficar com um que também fizesse fotografia. A ideia seria fazer uma experiências com este método de fotografar, nomeadamente perspectivas, circunstancias de uso, facilidade e discrição.
Mas procurar um modelo que também incluisse um “toca MP3”. Com potente volume de som. Que pedisse meças, e ganhasse, aos que estão agora na moda e nas mãos dos garotos e garotas que se deixam levar pelas inovações dos fabricantes. E que as usam indiscriminadamente, sem respeitos pelos circundantes. E nele colocar uma selecção de músicas por mim escolhida a preceito e para estas situações.
Posso imaginar Wagner, uns Viras minhotos, uns instrumentais escocesses em gaita de foles, umas fanfarras militares ou ainda algumas músicas tradicionais esquimós, tibetanas ou autralianas.
Nem todas serão, certamente, da minha preferncia permanente, que nem sempre estamos com vontade para tais acordes, Mas poderiam competir em dinâmica acústica com as que vamos ouvindo aqui e ali, nos comboios e autocarros, queiramos ou não.
E, confrontado com essas, aproximar-me de quem as toca e ficar a ouvir as minhas. Alto. Bem alto! Porque, na volta, se há o direito de ouvir bem alto, as músicas que se escolhe, então uso dos mesmos direitos onde e como quero.
Estou em crer que acabarei por vencer, pacíficamente, esta discussão sonora. Senão pelo volume e variedade, pelo menos pelo cansaço, já que consigo imaginar muitos mais estilos musicais de que não gostarão.
E, como é sabido, a vingança serve-se fria, neste caso, aos berros!

sábado, 5 de abril de 2008

Sem ilustração

Por vezes tropeçamos sem querer em pedaços deliciosos de escrita. Poderão não ser a mais fantástica literatura, mas o seu conteúdo enche-nos a medida.
Eis um pequeno capítulo (todo o livro está feito com pequenos capítulos) da obra “Vertigem americana” que fizeram o favor de me emprestar. Escrito por Bernard-Henry Levy, é uma espécie de “livro de viagens de quem se propôs atravessar a américa e sobre isso escrever.

A desforra do homemzinho
Não consegue dizer «stem cells», células estaminais, sem se enga­nar. Tropeça nos números e nas siglas, a começar pelo da National Urban League, a organização negra de defesa dos direitos cívicos de que é hóspede. Prende os pés na taxa de (desemprego ou no número de professores em Ohio. Há, no olhar, na excessiva proximidade dos olhos, aquele traço imperceptivelmente aflito que têm as crianças dis­léxicas que sentem que vão enganar-se, que lhes vão ralhar por isso, mas que o comboio está em marcha e que ia não têm maneira de o parar. Franze o sobrolho com um ar preocupado quando fala dos bair­ros pobres de Detroit. Assume um ar de falso duro quando aborda a questão do Iraque. Quando pronuncia a palavra «América>> ou «For­ças Armadas», sobressalta-se, ou melhor, fica hirto como ao som de um invisível relâmpago. Penso em tudo o que se pode dizer sobre a ambivalência das suas relações com o primeiro presidente Bush. Penso na discussão que tivemos, há dias, com Alan Wolfe, sobre a questão de saber se fez a guerra ao Iraque para o vingar ( Saddam humilhou­-o, eu humilharei Saddam) ou para lhe dirigir um grande desafio edipiano (fazer o que ele não conseguiu fazer - obedecer a outro pai, mais alto do que o seu próprio pai e que lhe aconselharia os gestos que não soube inspirar ao seu pai). A verdade é que este homem é uma criança. Quer esteja na dependência do pai, da mãe, da mulher, de Deus, em mim tem o efeito, nessa manhã, de uma daquelas crian­ças humilhadas cuja maldade, como Bernanos bem mostrou, é filha da sua timidez e a sua timidez do seu medo. Dito isto, atenção. Este medroso é um malandro. Esta criança é uma criança espertalhona. Ele tem a habilidade de chamar Marc Morial, o presidente da League, pelo seu primeiro nome e de começar o seu discurso, imediatamente a seguir à oração, por uma saudação aos Detroit Pistons, a equipa local de basquetebol que, como a maioria das equipas americanas de bas­quetebol, é composta por um grande número de jogadores blacks. Têm o talento de ir encadeando graçolas e, como um comediante que aquece uma sala reticente, ser o primeiro a rir, ruidosamente, das suas próprias piadas.
Tem a inteligência, ao interpelá-los, também a eles pelo primeiro nome, e ao lançar ao primeiro que «não precisa de dizer que sim com a cabeça quando ele fala» e, ao segundo, que toda a gente na sala sabe que perdeu três batalhas para a investidura do Partido Democrata, que «é duro, como sabe, ser candidato à Presidência», tem a inteli­gência de desmontar, na primeira fila, a hostilidade desses dois lide­res negros que são os reverendos lesse Jackson e Al Sharpton. A Natio­oal Urban League é uma organização tendencialmente radical. Detroit é uma cidade onde há, e ele sabe, «um grande trabalho a fazer» para ganhar os corações de uma comunidade que, há quatro anos, votou 94% em Al Gore. Está em terreno inimigo. As duas mil pessoas pre­,cntes vieram ver o animal, mas não têm simpatia por ele. No entanto, a coisas marcham. As suas tiradas sobre o «american dream» e sobre o «mall business», a lata com que ataca, como se não estivesse na Casa Branca há quatro anos, o poder dos ministérios e de Washington, a sua visão da América como uma empresa em que os americanos seriam todos accionistas e que estaria nas mãos de cada um a possibilidade de enriquecer mais e sempre, o seu compromisso sobre o Sudão e sobre o genocídio, sim, não receia dizer genocídio e ele fará que puder, se for eleito, para tratar os responsáveis de Cartum por este genocídio como exige a lei americana, tudo isso acaba por fun­enar. Lata e ingenuidade. Habilidade táctica ao mesmo tempo que na certa candura. À saída, um delegado na balbúrdia das rádios e tevisões que recolhem as impressões dos militantes: «O filho de ... deu-nos a volta...» Um outro: «Muito forte, a Jogada do Sudão!» o que me espanta é isso. Mas é também, muito mais estranho, ar de bom rapaz desenrascado> um tanto malandreco, obri­grado a forçar o tom para fazer de candidato e presidente. Imagino-o, no seu Texas natal, rapazinho com problemas, aluno mediano, amigo da pândega, dando preocupações aos pais. Imagino-o na Philips Aca­demy, depois em Yale, tal como mo descrevia, no outro dia, não sem ferocidade, o antigo conselheiro da Casa Branca, autor de The Clin­ton Wars, Sidnev Blumenthal - imagino-o a arrastar a sua má repu­tação de menino de cunhas, desprezado pelos filhos de aristocratas da Costa Leste que o acham prestável mas um tanto rude. Vejo-o depois, vejo-o tão bem, narciso de província e diletante contrariado, mau homem de negócios, filho de papá prolongado, que a família, a cada um dos seus fracassos, vem salvar In extremïs. Quando é que a mecâ­nica se inverteu? Como? Sob a influência de quem, ou de quê, se ope­rou a metamorfose e o amante de automóveis barulhentos e de copos entre amigos, o falhado, o tipo porreiro, sem qualquer espécie de pos­sibilidade de escapar à sua formidável mediocridade, se transformou nesta máquina, capaz de ganhar uma vez, depois duas vezes, a compe­tição mais difícil da América e do Planeta? Há homens - Clinton - so­bre os quais temos a sensação de que nasceram para ser presidentes. Outros - Kennedy - que foram formados, educados, para o ser. Com ele é ao contrário. Nascido para perder. Educado para não ganhar. E para esta reviravolta, para esta graça tardia que não teve tempo de ficar impressa no seu rosto, ninguém, no fundo, tem uma explicação. Excepto ele. Precisamente quando fala de graça. E de renascimento. Quem sabe?

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Um olhar


Disse-me este olhar, que vem de longe bem de longe, que o que mais detesta mesmo neste jardim à beira-mar plantado são os piropos e as interjeições grosseiras que houve de alguns homens na rua.
É triste que assim seja!

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Inevitabilidades


O futuro traçado pelas estrelas, a vontade dos deuses, as profecias, os livros do destino, as inevitabilidades…
Tudo isto são expressões ou subterfúgios encontrados pelo Homem para justificar aquilo que não pode ou não quer explicar ou alterar.
E têm sido estas expressões que têm alimentado e mantido as ditaduras, as oligarquias, as repressões. Os submissos vão encolhendo os ombros, aparentando indiferença e classificando aquilo que os incomoda e oprime como inevitável ou imutável.
Porque inverter tendências, alterar rumos e enfrentar os “Eles” todo-poderosos dá trabalho, é arriscado e socialmente reprovável.
Usar da espada ou da pena para agitar o fundo do lago, quebrar a paz podre ou gritar que o rei vai nu, é pedir o apodo de louco varrido ou de perigoso revolucionário, correndo-se o risco de se ser enfiado num quarto almofadado ou numa masmorra escura ou, nalguns casos, atado na fogueira ou no poste.
Mas o pior de tudo é ouvir os brados dos conformistas sobre a inevitabilidade dos factos e a inutilidade dos protestos. Que não sei se gritam contra quem protesta se para abafarem o remorso de ficarem calados!

quarta-feira, 2 de abril de 2008

E dinheiro, aceita?


No meu bairro, as mercearias estão em vias de extinção. Na minha rua já não as há e as que sobram, lá do outro lado do dormitório, lutam ingloriamente contra o poder negocial das grandes superfícies que compram por atacado e à tonelada, com meses de antecedencia. E que promovem PVP’s quase imbatíveis.
Assim, quer goste quer não – e não gosto – sou obrigado a recorrer aos supermercados, onde as caras das operadoras de caixa mudam consoante o ciclo lunar e a duração dos contratos, para quem a preocupação em bem atender os clientes se prende mais com a opinião que a supervisora poderá ter que com a satisfação dos compradores, regulares ou não.
De cada vez que lá vou e os produtos que quero passam pelo vermelhinho leitor de códigos de barras, quem os manuseia pergunta-me automáticamente:
Tem cartão cliente?
E eu, com um ar muito atrapalhado, abrindo bem os olhos e apalpando os bolsos, returco:
Não! É obrigatório?
É a vez do espanto quebrar a rotina da expressão quasi ausente da mocinha e dela ouvir, tranquilizadora:
Não, não é. Mas se o tivesse teria um desconto de x%.

Pois é! Tal como em muitas outras circunstancias, também nos supermercados não quero alimentar as enormes bases de dados onde o meu nome se alia à marca de papel higiénico, ao tamanho dos ovos que como ou ao tipo de aroma de café que prefiro.
Não me apetece que gente que não conheço saiba a meu respeito coisas que desconheço.
Não me apetece que um qualquer SIS (privado ou público) um dia me bata à porta ou aborde na loja dizendo-me que estou a quebrar a rotina de compras e consumos e que, após tantos anos não posso passar de papael suave para extra suave. Ou equivalente!
Também por isso me desagrada pedir a factura no acto de compra ou pagar com cartão multibanco ou de crédito. E quando me perguntam como vou fazer o pagamento, afirmar com ar ingénuo:
Em dinheiro. Aceita?
Que em tudo o que puder me oponho e oporei a um “Big Brother” invisível, omnipresente, omnisciente e, a menos que façamos algo, omnipotente!

terça-feira, 1 de abril de 2008

Linhas cruzadas


Não havia telemóveis. Existiam os Bip’s, para os que queriam estar sempre em movimento e os atendedores de chamadas para os que queriam estar na vanguarda mas sem traquitanas penduradas no cinto.
E eu alinhei na moda.

A minha mania era brincar com quem me telefonasse, com atendimentos menos comuns.
Do estilo “Não vale a pena falar, que deste lado só existem surdos”, ou “Ah, é você! Não sei se quero falar consigo, mas vá dizendo coisas que eu logo vejo!” ou ainda “Vá falando, mas bem alto que eu estou do outro lado da casa.” Estas e muitas outras eram acompanhadas de música de fundo variada ou mesmo apenas efeitos sonoros.

A partir de dada altura, passei a receber mensagens de quem não conhecia. Vozes femininas iam brincando com os meus atendimentos automáticos, dando uma aura de mistério à coisa e levando-me a criar mensagens de resposta às suas provocações. O jogo durou ainda uns meses. Uma paródia!
Comentário daqui, pista dali, provocação dacoli, entremeado com algum trabalho e investigação digno de Sherlock Holmes, e acabei por dar com elas, que eram duas. Na zona de Almada.A brincadeira transformou-se num divertido almoço ali para os lados de Cacilhas.

Conversa vai, conversa vem e constato a seguinte coincidência:Uma das senhoras, da minha idade, tinha imigrado cedo para a Austrália, onde tinha casado. As coisas não correram tão bem quanto o desejado e foi obrigada a regressar, tendo arranjado aquele emprego em Telemarketing. Felizmente tinha endireitado a sua vida, casado de novo e já com filhos, pelo que estava tudo mais ou menos bem.
No entanto a sua meninice fora passada em Lagos e, por acasos da sorte, tínhamos brincado juntos durante as minhas férias de verão, ainda antes dos nossos dez anitos. Havia uns decénios.

As linhas da vida que formam um padrão, têm por vezes secantes que tudo atravessam.
São elas que nos abrem os sorrisos!