quinta-feira, 31 de julho de 2008

O parafuso


A história passa-se nos arrabaldes de Maputo.

Uma fábrica, montada ao abrigo de acordos de cooperação Afro-europeus, processava carnes.
Equipada com maquinaria de penúltima geração, possuía uma máquina que era o coração da fábrica. Introduzia-se o porco de um lado e do outro saíam as salsichas, os presuntos, os chouriços, os fiambres, etc.
Acontece que esta máquina avariou! Passou a ejectar salsichas salgadas, chouriços com osso, presuntos entripados e toucinhos… bem, ninguém quer saber como estavam a ser produzidos os toucinhos!

O dono começou a ficar cinzento, o que por estas bandas é sintoma de desespero. Sem a máquina, a fábrica parava e lá se ia o negócio e os subsídios europeus.
Entrou em contacto com o representante da máquina, no centro da cidade, para que lhe enviassem um técnico.

No dia seguinte, com uma pontualidade germânica, ao abrir da fábrica apresentou-se o engenheiro alemão. Envergou a bata, calçou as luvas e começou a examinar o complexo monte de peças móveis e fixas, circuitos eléctricos e electrónicos. À medida que espreitava aqui e ali, ia tomando notas nuns impressos que ia extraindo de uma pasta de couro que trazia sempre consigo.
Passadas duas horas, apresentou o diagnóstico e a solução:
“Esta máquina tem um parafuso com a rosca moída. Acontece que sou especialista em porcas, pelo que não posso resolver o problema. Há que chamar o nosso técnico em parafusos. É coisa para umas três semanas, já que ele se encontra em comissão de serviço na América do Sul.”

O cinzento do patrão ia aclareando. Ao fim de três semanas, já nem couratos conseguia fabricar ou vender!
A alternativa, bem mais cara, seria chamar um outro fabricante, americano, sediado em Pretória, que talvez resolvesse o assunto.
Trinta e seis horas depois, chegavam três carrinhas pretas de vidros fumados. Os fatos escuros, tal como os óculos dos seus ocupantes, poderiam sugerir outra ocupação, mas de imediato se dirigiram ao interior da fábrica.

Ligaram à máquina diversos terminais, conectados com os seus computadores portáteis, sincronizados com a antena de satélite que um deles, entretanto, tinha montado. Quinze minutos depois tinham uma resposta impressa em diversas línguas, para que não houvessem dúvidas:
“Existe um parafuso com a rosca moída que impede todo o funcionamento normal da máquina.”
No entanto, e em virtude da diferenças das unidades métricas existentes, não poderiam resolver a questão que não fosse venderem toda uma máquina nova, última geração, automatizada e computorizada.
Caramba! O acordo de cooperação era com os europeus e estes não gostariam de ver os seus euros transformados em dollares desta maneira!

Já branco de desespero, lembrou-se o patrão de um português que trabalhava de mecânico numa oficina ao fundo do bairro. Constava ser mágico com as mãos e que não havia avaria ou deficiência que não resolvesse.
Chamaram-no.

Ao fim do dia veio, com a sua mala metálica chocalhando de ferragens e ferramentas.
Pediu para porem a trabalhar a máquina, espreitou aqui, deu umas marteladas ali, rastejou acoli e, passado um bocado, deu o seu veredicto:
“Tem um parafuso com a rosca moída! Não tenho destes. Mas ali ao fundo existe uma peça que tem seis e trabalha bem com cinco. Tira-se um de lá para cá e o assunto fica resolvido!
Mas, por favor! Não digam nada ao meu patrão que é uma coisa assim simples, que eu quero ir passar uns dois dias ali à praia!”

Assim são os Portugueses: especialistas em coisa nenhuma, peritos no desenrasca, amantes do nada fazer. Mas, quando fazem algo com dedicação – o que é raro – fazem-no bem e com rapidez.

Pena é que a sociedade não se restaure com expedientes e desenrascanço!



Texto e imagem: by me

Time


Foi há dois anos, já não sei se três.
Numa madrugada de verão, Vénus passou entre o Sol e a Terra e isso foi visível de Portugal. Um acontecimento astronómico, não particularmente comum e que os media se encarregaram de divulgar por antecedência.
Por mim, que estava a trabalhar nessa data e hora, saí de casa equipado com uns binóculos preparados para o efeito: fortes e múltiplos filtros cobriam a lente frontal, para que se pudesse observar o Sol sem riscos para a saúde. E aproveitei algumas pausas do trabalho para vir à rua e espreitar.
O que era visível, com as cores deturpadas pela filtragem, era uma manchinha escura que se movia, devagar, à frente do disco luminoso. Se não se soubesse de que se tratava, nem se daria por isso.
Mas o que me ficou mais fortemente gravado na memória foi o que senti na altura: Estava a ver algo que já tinha acontecido!
Com uma diferença que sei de pouco menos de oito minutos, eu estava a ver o passado e a saber isso mesmo. E senti-me pequeno, enormemente pequeno. Menor que minúsculo! Que, no espaço e no tempo nada ou quase nada somos. Apesar de toda a importância que nos atribuímos.
E, cada pedaço que vemos do espaço que nos cerca, já aconteceu faz muito. Tanto que, parte do que assistimos no firmamento já desapareceu. A relevância que temos no universo é equivalente à de uma formiga no formigueiro.
Mas ele, o formigueiro, nem existiria se não fossem todas e cada uma delas.



Texto e imagem: by me

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Dúvidas


Não tão poucas vezes quanto isso me pergunto da utilidade de alguns dos trabalhos a que me proponho.
No caso concreto, refiro-me à recuperação, para suporte digital, do meu arquivo de filmes.
Encontram-se, originalmente, em cassetes VHS. E sabemos, sem grandes dificuldades, que as fitas magnéticas vão perdendo qualidades e deteriorando o seu conteúdo com o passar do tempo. A menos que estejam guardadas em condições ideais de temperatura e humidade e a salvo de campo magnéticos parasitas. Forma de arquivo que eu não tenho, já que se trata de muitas centenas de cassetes, guardadas em caixotes de cartão. Tento que não estejam sujeitas a humidades estranhas, mas quanto ao resto não tenho forma de as preservar.
Foi assim que, há uns meses, decidi tentar prolongar-lhes a vida, senão aos suportes, pelo menos aos conteúdos. Dediquei dois computadores em exclusivo ao trabalho e, aos poucos, tenho-o vindo a fazer. Ocupam-me um pedaço de tempo de cada dia, desde as capturas, aos renderings, terminando nas gravações finais, mas vai sendo feito.
Pela quantidade que consigo fazer por unidade de tempo, considerando o custo de suportes envolvidos e apesar de ter vindo a encontrar soluções economizadoras de tempo, estou em crer que, lá para o final do ano, com sorte e sem avarias de monta, terei a empreitada terminada.

No entanto, duas questões pertinentes se levantam.
A primeira, de ordem prática-ecológica, é que não sei o que fazer às cassetes já transcritas. Falo aqui de muitas centenas e não me apetece ter a atitude convencional de a jogar no lixo sem mais nada. Já consultei diversos organismos, públicos e privados, e em nenhum me foi dada uma solução não poluente para este material. Plástico de vários tipos, metal convencional, metal vaporizado. De momento vou-as conservando por cá, mas terei que lhes dar destino.
A segunda é mais complicada de resolver, já que se trata de saber para que serve este arquivo imenso. Noventa e muitos por cento destes filmes vi-os e com isso aprendi. Boa parte deles são de qualidade média ou baixa, já que a programação televisiva (aberta ou de cabo) não prima exactamente pela excelência do que transmite. Por outro lado, com a colocação no mercado de DVD’s de tantos títulos, boa parte dos que possuo são encontráveis por aí, para já não falar nos circuitos não tão legais. Acrescente-se que, daqui por uns anitos, talvez não tantos quanto isso, o suporte DVD será obsoleto como já o é o Vinil ou o Betamax. Apenas alguns, nesse futuro, estarão em condições de ver o que aqui conste, tal como eu consigo hoje aceder a estes formatos mais antigos, bem como a alguns outros. E, outros tantos anos depois, os suportes que hoje são “A novidade” e “O Futuro”, serão transformados em velharias, empurrados para um canto pelos fabricantes que quererão que troquemos o que possuímos por aquilo que vão pondo no mercado, aliciados que seremos pela “novidade” e por uns extras que, as mais das vezes, ninguém lhes dá uso.
Assim, terá alguma utilidade o fazer ou refazer este arquivo?
Estou em crer que sim!
Para além do meu próprio prazer em rever este ou aquele filme, talvez haja algum “maduro” (coleccionador ou pedagogo) que queira passar os olhos por uma colecção destas.

Entretanto, vou fazendo o que me propus, tentando que as dúvidas me não atrapalhem.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Acreditar


A existência do Homem, dizem os especialistas, divide-se em duas grandes épocas: pré-história e história. A fronteira, dizem ainda eles, é a invenção da escrita.
É um ponto fulcral, então e agora. Permitiu-lhes a transmissão do conhecimento de geração em geração sem a já clássica situação “Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto!” E permite-nos saber hoje o que pensavam os antigos.
Ideográfica ou fonética, a escrita revolucionou e existência humana.

Milhares de anos passados, na Alemanha e atribuído a Gutemberg (há quem o conteste), mecanizou-se a escrita. Com um esforço limitado e em pouco tempo, passou a ser possível um número grande de cópias fiéis ao original que, irradiando da tipografia, poderiam espalhar-se pelo mundo.
As comunidades aproximaram-se no conhecimento e, devido à imprensa (mas não só), o acesso ao mundo das letras tornou-se quase universal. A taxa de analfabetismo tem vindo a reduzir gradualmente, em particular nos últimos 50 anos.

Mas, há cem anos, mais coisa menos coisa, um outro invento vital na civilização surgiu: a transmissão via rádio.
A possibilidade de transmitir ideias sem recorrer a um portador e quase instantaneamente encurtou as distâncias inter-comunitárias. As fronteiras físicas à passagem do pensamento foram derrubadas e a tecnologia foi simplificando os processos.

Mas a democratização do conhecimento, agora com as nóveis tecnologias de informação, tem um problema gravíssimo: a credibilidade.

Quando vejo uma pintura hieroglífica ou uma gravura cuneiforme, sei que quem as escreveu era um lente na sua época. Porque poucos sabiam ler ou escrever, quem o fazia tinha as certezas e as verdades da época e o cuidado de as deixar explícitas. Ainda que codificadas pelos mistérios e esoterismos que a religião pudesse impor.

Ao ler um livro impresso, identifico, sem grandes problemas, o autor, a tipografia e o editor, atribuindo-lhes a importância que entendo. Na poesia, na técnica, na filosofia. Gosto deste autor, exaspero-me com aqueloutro e, de uma forma ou outra, vou criando as minhas próprias referencias.

Com a transmissão à distância a coisa é mais complicada. Giro ou primo um botão no meio do aparelho receptor e tenho tudo quanto é emitido ao meu alcance. Na rádio, na TV, no telemóvel, no computador.
É todo um universo de ideias que se encontra, em boa parte anónimo. Posso aceitar esta ou aquela estação ou site, mas não conheço os intervenientes, os autores do que é emitido. E mesmo estes estão ao serviço de uma empresa ou empreendimento anónimo cujos objectivos ou ideologias me podem escapar.
Saberei eu avaliar a verdade ou a justeza do que ali é dito, me é dito? Poderei controlar o efeito que essa comunicação pode ter nos meus comportamentos e contra minha vontade?

Recentemente foi criada uma empresa transnacional na América latina para transmitir informação ao estilo da CNN. E à Al-Jazira. E ainda a outras, cada uma no seu universo cultural e geográfico.
A guerra electrónica de sobreposição de sinais (que já vem da guerra fria), vai acontecendo com o bloqueio de frequências e a informação contraditória.
O mesmo tema, tratado por estas três difusoras, tem abordagens tão diferente que não creio que alguma delas seja completa, verdadeira ou isenta.

Assim, quando por cá acedemos a uma estação de TV ou rádio, que vão beber nas agências internacionais o “néctar informativo”, mais não estamos que a ser moldados de acordo com os interesses não confessos de um ou vários grupos económico-politico-culturais.
E esta manipulação segue-se, dia após dia, noticiário após noticiário, segundo após segundo.

O inglês, o francês, o castelhano e o português já eu domino. Estou a pensar, muito seriamente, em ir aprender russo, chinês, árabe e indiano.
E, depois disso, continuar tão ou mais baralhado que antes sobre o que me cerca.

Afinal, em quem podemos ou devemos acreditar?
Você sabe?


Texto e imagem: by me

Afectos e fotografia


Tenho vindo a afirmar, ao longo dos tempos, que fazer ou ter uma fotografia é o resultado de um sentimento de cobiça ou desejo de pose. Por aquilo que nela está iconoficado: o pôr-do-sol, a pessoa, o objecto.
Apenas para dar um exemplo que consubstancia esta afirmação, quantos serão os que fotografam e exibem objectos que possuem? Com que lidam todos os dias? A excepção será, talvez, quando a fotografia e a sua exibição sirva para demonstrar que se possui o retratado – pessoa ou objecto.
E quanto mais precioso é o icinografado mais sacramentalmente se guarda a imagem: álbuns especiais para aquelas férias ou casamento, molduras caras para este ou aquele retrato de um parente ou amado e, cereja no topo do bolo, a carteira onde constam as fotografias de parentes, em regra muito queridos, vivos ou não. E, quando se fala nos filhos, netos, namorado/a ou pais, aí está a carteira (mais modernamente o telemóvel) onde se encontram as fotografias mais recentes ou significativas.

Mas a fotografia também é uma manifestação de afectos negativos! Fotografa-se o acidente, o insólito, o feio, o incómodo!
E, aqui, há dois tipos de motivos: Ou o exaltar o fotógrafo, mostrando assim, com a fotografia, que ele esteve no local, que testemunhou aquela situação ou, menos frequente mas real, como forma de exorcismo do mal retratado, tentando assim que o iconificado não passe disso e não seja parte integrante da vida do fotógrafo ou exibidor.
Um pouco como sucede com as anedotas, de que tanto nos rimos, e que, se bem as analisarmos, nunca falam de coisas agradáveis ou boas que tenham sucedido aos intervenientes. Pelo contrário, rimo-nos com o mal dos outros como que, com o riso, possamos afastar a possibilidade de o mesmo nos acontecer.
Mas há ainda uma terceira atitude negativa que é tida perante a fotografia. Neste caso, não perante o acto de a fazer mas antes para com ela enquanto objecto ou ícone: a negação ou destruição!
O rasgar, queimar, destruir de uma fotografia é uma forma de remover o que nela consta ou conta das vidas de quem assim age. Uma forma de negar o passado ou tentar, com isso, impedir que este se repita ou continue.
Exemplo mais ou menos corriqueiro é o que sucede aquando de uma zanga entre namorados ou quebra de votos de afectos. As fotografias do “outro” são destruídas, na tristeza do privado ou na raiva do público.
Acontece mesmo ser o retratado a exigir a devolução de fotografias que o “outro” possui de si, impedindo que o mesmo “outro” possua o que quer que seja de quem protesta ou reclama. Nem mesmo a sua imagem!
O gesto supremo, então, é a adulteração da fotografia, rasgando-a e destruindo apenas a metade em que se vê o “outro”, como que um afirmar que se continua por cá, vivendo, mas que o “outro” já não faz parte dessa vida.
Refira-se, também, nesta relação de afectos negativos para com a fotografia, a adulteração bem mais sofisticada da imagem que foi o caso (quem sabe se ainda é?) do apagar em fotografias presenças de gente caídas em desgraça perante o regime. Como sucedeu, por diversas vezes, na União Soviética, para citar apenas casos públicos e notórios.

É assim que se constata que a relação com a fotografia (ou com a imagem no seu todo) é uma relação de afectos, de desejos de pose ou de repúdio, como os agora descritos.
E você? Já destruiu alguma fotografia?



Texto e imagem: by me

domingo, 27 de julho de 2008

Depleted


Entrei naquele espaço com o desconforto de quem vai levar um amigo ou parente ao hospital, sabendo que lá irá ficar para ser operado. Mais ainda, sabendo-o padecendo de doença súbita, não previsível e sem explicação.
Primeiro a admissão, com o autoritário segurança a carimbar papeis e a indicar para onde ir.
Depois a triagem, onde um técnico tenta perceber se o que se está a contar é verdade ou apenas uma desculpa para ali estar. Bem como da gravidade da situação.
Finalmente surge alguém com ar de quem sabe alguma coisa do assunto e que decide se o tratamento é para ser feito, logo ali e na hora, ou se o paciente tem que ser levado lá para dentro, para aqueles locais onde são abertos, sondados, observados e tratados.
E, depois de preenchida a papelada, assinada e confirmada, lá ficou ela, a minha câmara fotográfica, entregue para reparação.
Felizmente que, de acordo com a actual lei, e visto ainda se encontrar dentro do prazo de garantia, o trabalho terá que ser efectuado no prazo máximo de trinta dias, após os quais a loja terá, se tal não suceder, que entregar equipamento igual novo ou devolver o dinheiro pago para ser usado noutro equivalente.
Se a coisa correr pelo pior e a avaria não for reparada, espero que ainda tenham algum modelo Pentax para venda, que eles são pouco cá pelo país.

A avaria? Estranha! Opinião minha bem como de quem me atendeu.
Em ligando a câmara, indica que o estado das baterias é “esgotado”. Mesmo que estas sejam novinhas em folha e com a carga máxima. E, com esta indicação, tudo funciona (menus, ver imagens, auto focus) excepto o mais importante: fotografar. Ao premir o disparador aparece esta irritante e intrigante indicação: “Battery depleted”! E não há mais nada a fazer!

A fotografia aqui exibida está tremida? Não espantem! A raiva que sentia ao constatar a avaria era tal que não me permitiu a tranquilidade suficiente para tal registo!



Texto: by me
Imagem: by an angry me

sábado, 26 de julho de 2008

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Reflexo


Having our Digital Single Lens Reflex jammed does not mean that we can’t photograph anyway.
We can always change to our old Digital Compact and let us do it!
For three times in my life I have done the same stupidity: selling a camera. A Linhoof Kardan Collor, a Linhoof Technika 70 and a Sony Mavica. I will never, ever, sell a camera again.
We can always try another way of seeing things!


Texto: by me (pen on a notebook made of recycled paper)
Imagem: by me (Olympus Z3030 with just guessing framing)

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os treze anos


Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me com
Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho com as patas
ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

Dizendo-lhe: "Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas com as outras,
e eu danço em terreiro".

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que vive por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
com o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, Madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo com
Pedro Gaiteiro.



Texto: by António Feliciano de Castilho
Imagem: by me

terça-feira, 22 de julho de 2008

Eternidade efémera ou vice-versa


Um dia, já lá vão uns anitos, bateram-me à porta. Do que recordo, seria pelo fim da tarde e esta estaria soalheira.
Tratava-se de um casal, vizinho da rua e bem jovem. Se a memória me não falha, ele era estudante de engenharias. E vinham com o propósito de me questionarem sobre um tema que supunham eu saber: O número de ouro.
De alguma forma ele tinha embatido neste número/conceito/razão nos seus estudos e procuravam saber, sabendo-me fotógrafo, da sua origem, história e aplicações estéticas.
Recordo que a conversa foi prazenteira, falando eu de cor do pouco que sabia e consultando alguns livros sobre o restante. Ficámos ambos, ele e eu, a saber um pouco mais da matéria.
Quanto à companheira, pouco lhe ouvi a voz para além das saudações iniciais e finais. E, de memória, não retenho o seu nome, ou o dele.
E, à medida que o tempo foi passando, fui-os vendo pela rua, sem mais contactos que as saudações habituais ou uma ocasional troca de palavras sobre o tempo ou equivalente. Apercebi-me da chegada do primeiro carro, tal como da chegada do primeiro filho e a vida foi-nos correndo, diligente e rapidinha, como é seu hábito. E, no meu acompanha-la com rumo incerto e destino desconhecido, mudei de casa no bairro e deixei de os ver.

Hoje, enquanto descia e subia as escadas para o comboio diário, eis que fico de boca aberta, espero bem que apenas em sentido figurado: Cruza-me o caminho uma mulher, linda quase de morrer e que, em trajes quase de praia, se dirigia para as bilheteiras. Ia empurrando um rapazito, dos seus 9 ou 10 anos, com roupagens equivalentes.
E, enquanto eu ia observando aquela beleza, os nossos olhos cruzaram-se e ela sorriu-me e cumprimentou-me. Naturalmente que correspondi da mesma forma, mas não a reconhecia de todo, melhor, não a localizava no passado, próximo ou distante. Levei bem uns dez minutos a identifica-la, já com um pé na carruagem.
Tratava-se da tal jovem que, quase em silêncio, tinha estado lá em casa em busca do numero de ouro. Numa altura em que aquela criança não passava de um projecto sem data marcada.
As minhas barbas cresceram e embranqueceram, aquele tímido e jovem botão transformou-se numa bela e madura mulher, mantendo ou melhorando o sorriso.
E o tempo continuará até que do catraio já nem a lembrança exista. Que nós duramos menos, muito menos que um número. Que ele, o de ouro, continuará por cá, com os seus algarismos, virgula e demonstrações geométricas. E a encantar quem o conheça, com a sua eterna harmonia e a surpreendente frequência com que o constatamos no universo que conhecemos.
Pensando agora, sentado no comboio, naquele sorriso fugaz que recebi, pergunto-me se a sua dona não será - pela certa que o é! – uma materialização do número de ouro.



Texto: by me
Imagem: “Shell”, by Edward Weston, 1927

Quase madrugada, no subúrbio

Não bastava ser Julho e a manhã acordar com um nevoeiro cerradíssimo. Havia que acrescentar a isto o, dos três cafés da rua, um estar de férias – aquele que frequento -, outro estar de folga – o meu alternativo – e sobrar aberto aquele onde vou apenas em ultimíssimo recurso. Que era o caso, que sem a dose matinal de cafeína, pouco sou.
Assim lá fui, contrafeito, a pensar num cafezinho que me fizesse gente, mas esquecendo o bolinho que o acompanha, já que os que ali constam conheço eu, a todos, pelo menos desde o natal de há uns anos, data em que para lá foram e me foram apresentados. Os bolos mesmo, entenda-se.
Pois o choque, à entrada e ainda ante da 8 da manhã, não poderia ser maior:
Para além do cheiro a óleo de fritar salgados, onde se misturava o já entranhado com o mais recente que datava da véspera, sou brindado, ainda antes de poder dizer ao que ía, com esta música que aqui ouvis. E, porque tenho respeito pela vossa sanidade mental, não a reproduzo no volume com que fui obrigado a ouvi-la. Para que tenhais uma ideia, tive que falar bem alto, ao pedir um simples café cheio.
Promessa feita ao santo da minha devoção (eu mesmo): Com ou sem nevoeiro, contra ventos e marés, prefiro andar uns bons 600 ou 700 metros em busca de satisfazer o meu vício matutino a voltar a entrar neste estabelecimento de restauração. Porque a única coisa que consegue restaurar é a minha vontade de dali fugir. A sete pés e com a esperança que, no próximo dia de nevoeiro venha o tal Sebastião e que destrua tudo aquilo à espadeirada!




Música: “Coisa”, by Quim Barreiros
Texto e imagem: by me

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Olhar, ver, fotografar


O meu primeiro trabalho fotográfico profissional ou, se preferirem, a troco de dinheiro, aconteceu por acaso.
Telefonou-me uma amiga perguntando-me se eu estaria na disposição de ir fotografar a peça de teatro onde o marido trabalhava. Ela sairia de cena nesse domingo e não havia imagens recolhidas.
Nunca eu tinha feito tal coisa, mas os desafios são para serem aceites, e fui.

Mas a minha inexperiência levou-me a ser cauteloso e tentar usar o pouco que sabia destas coisas. Recordando o que tinha aprendido na minha igualmente curta experiência televisiva, assisti a uma representação no sábado de tarde, tomando notas como um louco furioso sentado na plateia. Mais tarde, em torno de umas sandochas, entre a matiné e a soirée, revi os apontamentos com a ajuda da minha amiga que conhecia bem a peça em causa.
Nessa noite fotografei-a, na tarde seguinte igualmente e a peça saiu de cena.

A sala era incomum, já que não existia proscénio classico. O palco avançava para a plateia, criando três frentes de público e, consequentemente, três frentes de representação. Para complicar a coisa, a encenação concebia vários pontos de acção simultânea que, se no enredo eram no mesmo ponto temporal, não o eram no mesmo ponto espacial. E vice-versa.
Para “ajudar à festa”, para além da profundidade do palco, o desenho de luz, que era bonito, pecava por ser escasso, melhor, por trabalhar com níveis de luz baixíssimos. Isto obrigava-me a usar a objectiva de 50mm, já que mais luminosa e só de quando em vez a 150mm.
Escolhi três pontos de vista e ia fazendo o trabalho de cada um deles em função do que sabia ir acontecer para aquele enfiamento ou perspectiva.

De regresso ao laboratório, debati-me de novo com a minha inexperiência: ainda nem tinha gasto a primeira caixa de 100 folhas de papel preto e branco. Tratei aqueles seis rolos de TriX, de sensibilidade nominal de 400ASA mas expostos a 800 como se de relíquias se tratassem e fiz as provas de contacto.
E levei-as ao actor que me tinha pedido o trabalho. Meio cabisbaixo, que não tinha grande fé no que tinha feito.
Viu ele, viram os demais actores, viu a direcção da companhia e regressei a casa com umas centenas largas de cópias para imprimir. Todos tinham gostado do que ali se mostrava.
A partir dali, e durante uns anos, fui o fotógrafo exclusivo daquela companhia, não sendo mais ninguém autorizado a recolher imagens.
Durante esse tempo, acompanhei os ensaios de cada peça a estrear, sabendo os textos e as marcações quase tão bem quanto os actores. E tive o privilégio de assistir ao trabalho de direcção de actores feito por aquela Senhora que dava pelo nome de Luzia Maria Martins.
Disse-me ela que a diferença do meu trabalho sobre os demais que andavam então por cá a fotografar teatro (passe-se a imodéstia) é que eu contava a estória representada, enquanto que os outros fotografavam actores. Nem sempre, nas minhas fotografias, os actores tinham a melhor expressão ou a pose mais agradável. Mas eram as que retratavam os sentimentos expressos em palco.

Foi a fazer este trabalho, ainda que só bem mais tarde me tenha apercebido disso, que aprendi e interiorizei o que de mais há de importante na comunicação em geral e na fotografia em particular:
Por muito bonitas ou espectaculares que possam ser as imagens, se eu, enquanto fotógrafo, não conhecer bem o que estou a registar, as imagens não passarão disso: bonitas e espectaculares.
O conhecimento (caramba! O que se poderia dizer sobre esta palavra ou conceito!) é a pedra de toque para uma boa tomada de vista.
Há que olhar, ver e só então captar. Para que depois possam ser olhadas e, principalmente, vistas!


Texto e imagem: by me

domingo, 20 de julho de 2008

Pregar no deserto ou no Shoping


Eu sei que tenho boca grande e que vou protestando quando posso e seja qual for o âmbito do protesto, desde que me sinta incomodado. Foi o caso um destes dias.

Um centro comercial tem, na sua entrada, este painel luminoso onde se exibem algumas notícias seleccionadas de alguns jornais. Sendo que o acesso ao centro é através de uma rampa mecânica descendente, há sempre algum tempo para ler o que por lá aparece, mesmo que referente ao futebol, que é coisa que pouco me interessa.
E, nesse dia e ainda que identificado com o “Jornal Económico”, dou com o que aqui se pode ler: “O Quaresma foi REITEGRADO”.
Seja quem for o Quaresma e a sua actividade profissional, consegue fazer uma coisa que desconheço por completo: “REITEGRAR”.
Se fosse “Reintegrar” ou “Reiterar” eu ainda entendia, pese embora pouco saber de bola e supor que, por Dragão, não se referem ao de Komodo. Agora este verbo, desconheço por completo.
Entendi que não seria das coisas mais abonatórias para o espaço comercial, o ter isto mesmo por cima da porta principal, e agi! Dirigi-me à recepção e expus a questão à jovem e simpática senhora que ali se encontrava. Que, solicitamente, tratou de me impingir um impresso para que eu preenchesse com a minha reclamação.
E eu, que entendi que não teria que ter esse trabalho, disse-lhe que o recado estava dado e que tratassem do assunto, já que era uma questão mais do interesse deles que do meu.
Estava eu nesta quando surgiu um vigilante que, do alto da sua importância, quis saber de que se tratava. E que me fez saber ser eu o errado, já que ali apenas se publicitava o que os jornais lhes enviavam e que estes estavam sempre certos.
Passei-me para além da minha tranquilidade e, pela primeira vez na vida, fui comprar um jornal desportivo, que continha o assunto referido na primeira página. E que, como eu sabia, usava o verbo “Reintegrar”. E exibi-o qual troféu, ao façanhudo vigilante que, nem assim, desceu da sua importância e autoridade.
Mas como a sua atitude altaneira não me chegava sequer aos calcanhares, dei o assunto por quase encerrado. Faltou-me apenas, e que fiz, desfazer-me do jornal e fotografar o painel, senão pela piada, pelo menos como documento.

Dois dias passaram e regresso ao centro comercial em causa. E qual não é o meu espanto quando constato que continua a ser exibida a mesma notícia com o mesmo erro ou gralha. Requentadas ambas com mais de quarenta e oito horas com o apodo de manchetes. A menos que, dois dias depois, nenhum outro jornal se tenha publicado cá no burgo. Sobre futebol ou o que quer que seja.
Que o vigilante fosse desabrido comigo e que, sub-repticiamente, me chamasse ignorante, ainda aceito. Afinal, eu e ele não jogamos no mesmo campeonato, futebolística ou culturalmente falando.
Agora que nada tenha sido feito para corrigir esta asneira na língua portuguesa é que já me custa. Não apenas dá uma péssima imagem, para quem reconheça o erro, do espaço comercial, como, e o que é pior que tudo o resto, induz em erro quem não o reconheça, aceitando-o como certo e passando a usa-lo.
Uma vez mais reclamei junto da recepção/informação. Mas acredito que de igual forma inutilmente, ainda que a cara simpática que me atendeu tenha tido a cordialidade que dela e da função se espera. Mas nem uma anotação tomou, ou chamou alguém para o fazer. Suspeito que, por aqui, “RP” signifique “Reacções à posteriori”, que cumpram o lema à risca e bem à posteriori.
Quanto ao resto…
Quanto ao resto farei questão de publicitar este caso onde posso e junto de quem conheço. Afinal, se há património que este país possua e que não tenha sido corrompido pelas regras Europeias é a língua. E maltrata-la desta forma, a troco de coisa nenhuma é coisa que não aceito de braços cruzados!

Nota final: O espaço comercial em causa tem o nome de “Galeria Comercial Campo Pequeno” e fica em Lisboa.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Chamem-me o que quiserem!


Uma das questões que mais atrapalha e comanda os comportamentos é o estar-se ou não integrado numa dada sociedade ou grupo.
E, com isso, controlar os seus comportamentos pelos comportamentos medianos, por aquilo que a “sociedade” define como correcto e não criticável.
Nada de mais errado, absurdo, contraproducente e castrante!

Esta atitude não permite o desenvolvimento e a felicidade do indivíduo, com todas as suas características e potencialidades!
Apenas o transforma em mais um número, ajustando-se à mediania, com receio de ser diferente, notado, apontado a dedo, marginalizado em última análise.
E o erro, a meu ver e ainda ninguém me argumentou e convenceu em contrário, está na definição de “pertencer à sociedade”!

O que de facto acontece, e que poucos são os que o reconhecem ou afirmam e menos ainda os que agem em conformidade, é que no lugar de se pertencer, é-se a sociedade.
A sociedade é o conjunto de todos, com todas as vantagens do grupo e de cada um dos indivíduos. Não se integra a sociedade mas antes molda-se a sociedade à medida de cada um. E a soma de todos os “uns” forma o conjunto!
A contribuição que cada um faz nela, o empurrão que cada um dá no seu trajecto é que define o seu rumo, as suas regras, as suas leis e os comportamentos do todo.
Estas não são definidas por uma qualquer entidade obscura, mítica e autocrática, mas antes pela vivência e vontade de cada um dos seus componentes.
Andar nu, de fraque ou com nariz vermelho e grande é igualmente legítimo!
Ter este ou aquele comportamento apenas porque o grupo o define e não porque o queremos, é integrar um grande rebanho onde os pastores, filósofos, gestores ou políticos nos conduzem pela certa através de um pasto verdejante até ao matadouro ou altar onde nos sacrificam aos seus interesses privados ou entidades divinas.

Pela parte que me toca, tenho comportamentos que estão de acordo ou em desacordo com os que me cercam, não porque eles o querem ou o censuram mas antes porque eu o quero e eu sou a sociedade.
Sem todos os eus, a sociedade não existia!


quinta-feira, 17 de julho de 2008

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Um pedaço de arte


São pedacinhos como este, que passam anónimos e desapercebidos, que fazem as diferenças.
Nesta rua em Lisboa, que até tem um tamanho razoável, cada prédio tem um desenho diferente, quer se trate de janelas, portas, varandas, telhados ou cores. Não há aqui dois iguais.
Este, em particular, possui apenas um piso com varandas, o primeiro. E com este resguardo.
A sua simetria perfeita, o jogo de linhas curvas intervalando com as rectas, os ritmos por elas provocadas, os cruzamentos, paralelismos, diagonais e verticais, ainda que possam ser ingénuos, mostram o apuro ou cuidado do arquitecto ou dono da obra no seu desenho por forma a que, cumprindo as funções, fosse agradável à vista. E conseguiram-no, para nossa satisfação.
Este prédio data algures dos anos 50 do século XX. Talvez dos seus finais. E, por aquilo que se pode ver dele e dos demais desta zona (Areeiro), está para durar, com pequenas intervenções de restauro aqui e ali no bairro.
Para quem se atrever a passear por esta ou outra qualquer cidade e levantar o nariz do chão, encontrará pela certa esta e outras pequenas obras de arte. Que passam desapercebidas mas que, em dando com elas, nos fazem ganhar o dia.


terça-feira, 15 de julho de 2008

As pernas


Poderia ter usado qualquer outra fotografia de quaisquer outras pernas. Afinal, toda a gente tem duas pernas, a menos que se sofra de uma qualquer diminuição.
Mas o caso passou-se com estas mesmas pernas e fiz questão de usar as protagonistas para o contar.
Suportam elas, nos seus breves e recentes vinte anos, a ingrata tarefa de percorrerem diariamente o trajecto casa/trabalho e retorno. E é ingrata porque, pela certa, lhes apetece bem mais a diversão que a obrigação. Mas a obrigação que é o trabalho não implica teias de aranha cranianas ou formalismos castrantes.
Vai daí, estas pernas ajustam-se em termos de roupagens pelas vontades próprias da idade e da estação. Sem mais regras ou convenções que não sejam o conforto e o clima.
Acontece que esta atitude destas pernas não é a mais comum em ambientes laborais, em regra mais timidamente escondidas por vestidos engomadinhos, saias bem mais avantajadas ou calças que, não apenas podem ser práticas como são bem mais convencionais.
Mas, direi eu, que cada par de pernas se expõe ou esconde de acordo com as suas próprias vontades e que isso é problema delas, das pernas.
Mas assim não pensa a outra metade da humanidade, aquela que tem menos por onde escolher, por convenção, e que, na esmagadora maioria dos dias do ano, usa calças. Mais fato, mais treino ou mais ganga, mas calças.
E, quando as pernas sempre escondidas vêem umas que nem tanto, mais para mais recém-chegadas a um mundo onde as calças imperam, ficam cheias de inveja. E ficam elas, as pernas, e o que as encima, mais os olhos que possuem.
E é vê-los, aos donos das pernas nas calças, com eles, os olhos, esbugalhados e fixos nas pernas novas de idade e no local.
E se é verdade que as pernas não têm ouvidos, felizmente que a cabeça que encima estas que aqui vêem também não os tem, para não ouvirem o que se diz ou disse à passagem e presença delas, das pernas.
Porque aquilo que foi dito e pensado por aquilo que encima as pernas sempre tapadas sobre as pernas por vezes desnudas, nem sempre foi bonito, agradável ou mesmo cordato e educado.
Espero que estas pernas continuem a taparem-se ou destaparem-se a seu belo prazer e não em função de convenções, comentários, invejas e cobiças!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Imperfeições


Ou talvez não!

Desacatos e media

Eu até nem queria falar nisto, até porque anda nas bocas do mundo e nas aberturas dos noticiários. Mas é por andar nas aberturas dos noticiários que me apetece falar. E protestar, se é que serve para alguma coisa.

Aconteceu, na semana passada, uma situação de confrontos físicos, com tiroteio à mistura, entre dois grupos ou etnias num bairro dos arrabaldes de Lisboa. A polícia interveio, deteve gente, apreendeu armas, algum amador gravou de uma janela algumas imagens. O chefe da polícia falou, o presidente da junta falou, o da câmara também, assim como o ministro.
Uma das etnias em confronto, a cigana, que lá reside faz tempo por ter sido realojada aquando da construção da expo98, diz que tem medo, pegou em bagagens, que das armas pouco se sabe, e zarpou, passando a noite nas carrinhas ou ao relento e pedindo às autoridades competentes, outras habitações.
As entrevistas e declarações são várias, dos chefes de famílias ou às suas consortes, aos chefes de clã, a testemunhas da fuga e afins. Os carros de reportagem televisiva estão por lá, no bairro ou junto aos locais onde os protestos e pedidos são feitos. Não nos podemos esquecer que estamos já no verão, que a política está quase de férias e os incêndios ainda não vão acontecendo para fazer as manchetes e os directos.
No entanto…

No entanto ninguém fala do outro grupo, da outra etnia envolvida, aquela mesma que provoca o tal medo que faz fugir ciganos de casa, mesmo que dada.
Do pouco que consegui saber, trata-se de africanos, migrantes de primeira ou segunda geração, igualmente excluídos socialmente e igualmente realojados em bairro camarário ou equivalente.
Esta ausência do contraditório, do falar na outra parte, no expor e descrever todos os factores da contenda, cheira-me a suspeito. Mesmo que esses outros, os não mostrados e olvidados o sejam porque não querem aparecer, não querem falar, não se querem expor, mesmo estes argumentos não colhem, que para o pacato do cidadão, ao ver as notícias, fica com a ideia que a contenda aconteceu apenas com e devido em exclusivo a ciganos.
Ninguém fala nas desavenças permanentes entre ambos, na difícil mesclagem entre grupos.
E esta abordagem parcial do problema, expondo uns, ocultando outros e não referindo a miscenização forçada pelas forças políticas, desagrada-me. É um fechar de olhos público, ou um apontar o dedo publicamente, por parte dos media (tanto a imprensa como a rádio como a tv).
E a isto pode-se dar um nome muito feio: xenofobia encapotada! Ou, se preferirem, xenofobia politicamente correcta.
Que, se ainda pesa na consciência nacional (e na particular de muitos) o processo de descolonização e o êxodo para a metrópole que então aconteceu, em relação à comunidade cigana nada pesa no colectivo. Bem pelo contrário, para estes há sempre uma palavra e uma acusação explícita ou implícita. E só uns poucos, meio “líricos”, erguem a voz em sua defesa, quando tal se justifica.

Esta história está mal contada e os muitos que a contam são responsáveis pelas opiniões que, com ela, se vão formando.
E quem quer que erga a voz junto daqueles que têm a obrigação de a todos dar voz, acaba por ser silenciado com o olhar da indiferença ou com o olhar de “nada tens com isso” ou, pior, com o “Cala-te que é melhor para ti!”
É este o quarto poder, o que não é democrático porque nunca sufragado, e que cuja responsabilidade é apenas perante os interesses privados ou não confessos de uns poucos decisores.

domingo, 13 de julho de 2008

Lusco fusco


É aquela hora parda em que nem é nem deixa de ser.
Os passos aceleram-se como se com a noite viessem todos os perigos e frios deste e do outro mundo.
Com os olhos enfiados na calçada, por mor de algum buraco desconhecido, ou nos stops do carro da frente, volta e meia repara-se no relógio.
Ainda vou a tempo do comboio?
Será que esperam um pouquinho mais no infantário?
Caramba, logo agora aqueles dois haviam de bater! Ao menos não parece haver feridos!
E raramente se olha para cima, para aquele espaço que fica algures entre o aqui e o infinito, onde quer que ele seja.
E é neste momento mágico, em que a luz faz das suas, que deveríamos levantar os olhos e ver o que lá há. São uns segundos apenas, que um escurece, o outro clareia em menos de nada.
Mas neste intervalo em que nem é nem deixa de ser, podemos todos ser.
Tão magos quanto a luz!

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Carta a um ex-aluno

Texto by José Valente, 1994, in público.pt

Imagem: me by me

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O photógrapho preguiçoso


Se me quiserem chamar de preguiçoso, não façam cerimónia!

A quase totalidade dos fotógrafos vai à procura dos assuntos a fotografar. Na rua, no bairro, na cidade, noutras cidades, noutros países. Procura a variedade do local, do clima, da luz.
Passeando-se ou trabalhando, vão carregando toda a parafernalia fotográfica em malas, sacos, mochilas, com ou sem tripés, flashs ou projectores, fotómetros ou “japoneses inteligentes” incorporados. Ou, em alternativa, uns meros gramas no fundo do saco de férias ou no cinto.
Os seus registos luminosos são o espelho do seu espanto ou curiosidade, repassando com fotões aquilo que não agarram com a mão ou não prendem com os neurónios.
E, na sua ânsia de possuir o mundo e mostrar a vastidão das suas posses, não criam raízes, sempre em busca do inesperado, do novo, do diferente.
Pois parte do fotógrafo que sou subverteu a busca do Santo Graal Photographico. Que o projecto “Oldfashion” é a inversão desta demanda.
E, no lugar de errar física e luminicamente, assentei arraiais num só local. E, em vez de procurar o que fotografar e a luz que me encantasse, espero que a fotografia aconteça por si mesma, sendo que o meu papel é apenas o de premir o disparador e o manusear da técnica.
Para cada uma destas photographias, o enquadramento está feito, a luz escolhida e trabalhada, e, com os meus olhos, não procuro assunto a fotografar. Qual aranha na sua teia, espero calmamente que venham os assuntos ter comigo. Pacatamente, sem pressas ou mais provocações que não a minha simples presença no local. Que nem o aviso de grátis exibo, à revelia de muitas e variadas recomendações que tenho ouvido.

Preguiçoso? Pois chamem-me à-vontade! O sistema funciona, todos os intervenientes se divertem e o meu lucro, traduzido em poses, sorrisos e histórias, não é passível de cobrança de IVA.

E se o negócio não é perfeito, é pelo menos o ícone da perfeição, tal como a fotografia o é da vida!

quarta-feira, 9 de julho de 2008

A medalha


Pedagogia. Aquela palavra que anda na boca de muitos e que poucos conhecem o verdadeiro significado. Menos ainda, talvez, se recordarão da antiguidade, dos escravos-pedagogos e das suas obrigações.

O caso passa-se num jardim de Lisboa. Era domingo, o clima prazenteiro e, sendo já Julho, com um forte cheiro a férias.
Os que usufruíam do espaço verde e da frescura das suas sombras eram bastantes. Acrescidos pelos que, atraídos pela curiosidade ou desejo de negócio de ocasião, ali foram ver a feira de artesanato e velharias.
As forças da ordem, sabendo deste ajuntamento espalhado, destacaram um cívico para o patrulhar. Pertencia à Policia Municipal e, quer fosse por uma questão de economia de esforço, quer fosse devido à visibilidade assim obtida, atribuíram-lhe um desses noveis carro movidos a electricidade que, recentemente, temos visto pela zona velha da cidade.
Pois este agente, não altamente graduado se bem soube eu ler as divisas que ostentava nos ombros, fez bastante mais que apenas o giro e, com a sua presença e visibilidade, afastar ou dissuadir carteiristas ou mal-feitores em geral:
Metendo conversa com a canalha miúda, mostrava-lhes o insólito carro e convidava-os a partilharem da sua tarefa de circular e vigiar. E, antes do inicio do passeio, lá lhes explicava algo sobre o veículo, funcionamento e uso do cinto de segurança, que todos os passageiros iam pondo.
E era vê-los, aos pequenotes, com um sorriso de orelha a orelha, alguns vencendo a custo a timidez, ali sentados, enquanto aquele agente, de trinta e três anos, fazia andar em silencio o carro ecológico.
Neste pequeno passatempo, que também serviu para quebrar a monotonia do seu trabalho, foi ele bem mais longe que muitas aulas e sermões pregados no ensino básico.
Os agentes policiais são gente como todos, ainda que uns mais simpáticos que outros, e certamente que não são aqueles monstros perseguidores e opressores que por vezes deles fazem. E foi, garantidamente, esta a opinião que a miudagem levou para casa e para contar aos amigos.
A melhor publicidade não é a das campanhas e dos media. É a opinião que cada um passa ao seu semelhante sobre as suas vivências e proveitos. E esta foi, pela certa, uma das experiências positivas que cada um dos pequenotes teve neste fim-de-semana.
Fica o bom exemplo e a modéstia deste cívico que, ao ser questionado sobre o que deveria eu escrever para definir o seu ofício, me pediu que usasse a expressão “Funcionário público”.

A minha medalha, por bons serviços prestados, para o funcionário público António.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Mau feitio


Que eu tenho um mau feitio levado da breca é do conhecimento geral de quem me conhece.
Há coisas que me fazem sair do sério e só não intervenho mais incisivamente por questões de comodismo ou de desprezo pelos demais intervenientes!

Regularmente vou ao cafezinho ali a meio da rua tomar a “bica com bolo” da ordem.
Duas, três horas depois de acordar, dadas que sejam as voltinhas na web, o pequeno-almoço doméstico, a higiene matinal e uma boa dúzia de cigarros consumidos na ânsia de repor os níveis de nicotina perdidos com o sono.
Neste café, que prima pela luz e pela simpatia de quem ali trabalha, existe o hábito de se encontrarem disponíveis alguns jornais diários. Não que eu os consuma, que os do desporto ou dos boatos e maledicência me passam ao lado. Mas muitos há que o fazem.
Regra geral, esta leitura pública acontece à mesa, com todo o tempo e conforto, com uma chávena de café já vazia, por vezes num convite implícito a que os recém chegados se juntem à mesa.
Mas alguns há que fazem do balcão o seu lugar de leitura. Escancarado em cima do vidro, de braços abertos apoiados, chegam a chávena para o lado para deixar as letras livres.
Mas só as letras, que o espaço que os demais consumidores da loja utilizam fica restrito àquilo que entendem deixar livre. Nem para aceder ao que se quer consumir nem mesmo para se poder ver o que está em venda no expositor.
O cúmulo do azar será encontrar um casal que o faça em conjunto!
Aí o pedido da bica é feito por cima dos ombros, a recepção da chávena é feita por cima do jornal e o deitar do açúcar é um jogo de equilibrismo entre o pacote e o café.
Este olhar para o próprio umbigo é algo que me faz sair do sério, por vezes levando-me a ter “saídas” não muito simpáticas.

Um destes dias deu-me para esta, em pleno bairro de Alvalade, em Lisboa: “Desculpe, mas… será que o meu café atrapalha o vosso jornal?”
O olhar que recebi na volta, se disparasse, ter-me-ia transformado num passador! O aspecto de “patos bravos novos-ricos” com excesso de gel para um e roupas dignas de um “trottoir” para a outra, bem davam a entender que o dinheiro que possuíam, ganho sabe-se lá como, lhes dava direito a ocuparem todo o mundo e arredores.
Mas nem com esta afirmação consegui os míseros centímetros vitais para receber a chávena.
Não fui de modas! Com ar de desastrado, entornei quase todo o bendito café por cima do jornal, com uns salpicos adicionais para aquelas roupas engomadinhas.
Pedidos de desculpa, exclamações de desagrado, mas lá consegui tomar a bica no espaço que me seria devido pelo preço que paguei!
Por parte de quem estava do outro lado do balcão não houve comentários. Mas os discretos sorrisos que lhes vi, depois da saída deles, bem que afirmavam um “Bem feita!” Mas como o cliente tem sempre razão, pouco mais poderiam ter feito.
Que este acto não foi bonito, não foi! Mas que me soube muito bem, lá isso soube!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

O dos pombos


Não sei o seu nome. Aliás, nunca falei com ele. Pensando bem, nem nunca o vi a falar com quem quer que fosse.

Todos os dias, ou quase, este homem se senta num banco do Jardim da Estrela, com ar muito calmo e pouco ligando ao que ou quem o cerca, e ali se deixa ficar.

Com movimentos lentos, de quem não tem pressa para coisa alguma, espera pacatamente que a sua companhia chegue. Esta, em número elevado, não tarda a comparecer ao encontro, ficando por ali e esperando, à vez, o obter o sabido: comida.

Porque este homem tem sempre no bolso não sei se pão ralado, se milho, se arroz, mas sempre algo que os pombos gostam e comem. E, deixando-se pacatamente agarrar, comem na mão deste que, com seu ar severo, demonstra uma ternura enorme pelos alados invasores de jardins.

E se há algum que procura segunda dose ele, que bem os conhece, enxota-o para dar lugar a outro. Com muita calma, sem um pingo de agressividade.

Não sei o que fez ou faz este visitante regular do jardim. Mas suspeito que muito bem deve conhecer o Homem, para tão bem se dar e gostar dos animais!

domingo, 6 de julho de 2008

Tempo e qualidade


Todo o processo, no meu artefacto, desde o “Olho passarinho!” até retirar a fotografia do seu interior pronta a entregar, demora uns três minutos.
Um e meio para o papel adquirir formas, cores e tons, o resto para o manuseio de tudo o que dentro da caixa se encontra. Isto presumindo que nada corre mal, o que acontece de quando em vez e pode duplicar o tempo.
Uma boa parte dos potenciais “clientes” pergunta-me, a par do preço, o quanto tempo demora a coisa, ao que respondo uns três a quatro minutos. Mas, na prática, entre o tempo que antecede o acto de fotografar e as conversas posteriores, pode levar a uns bons quinze minutos, para diversão de todos os evolvidos.
Pois há sempre uns quantos que, enquanto estou com as mãos lá dentro, cobertas pelo clássico pano preto, me vão perguntando se demora muito. Suspeito bem que, para estes jovens, um minuto pouco mais tenha que uns meros dez a quinze segundos, no máximo.
E quando o protesto sobre a “demora” se verbaliza, tenho uma resposta que lhes vou dando, com variações de oratória em função das idades, do tom que empregaram e da minha própria inspiração:
Calma! É que as coisas boas da vidas fazem-se devagarinho!
Os mais jovens, porque ainda não o aprenderam ou não o entendem, olham para mim de cenho cerrado, tentando perceber onde quero chegar.
Já os mais velhos sorriem ou mesmo riem, confirmando e assumindo um ar maroto ou sonhador.
Mas esta é uma certeza que tenho, faz muito tempo:
A despeito das bandas largas, dos velocímetros ou das competições contemporâneas, as coisas boas da vida fazem-se devagarinho!

Subversões


O jogo da vida é composto de vitórias e derrotas. E se estas, por vezes, são bem amargas, aquelas têm um sabor inigualável!
É que tenho para mim que um dos grandes erros civilizacionais é a existência de dinheiro. Essa coisa do valor equivalente e de ter que o ganhar ou merecer para subsistir, servindo ele, muitas vezes, como forma de afirmação social, é uma perversão terrível, levando muita gente a actos de desespero. Para já não falar na fome e na morte propriamente dita!
O ideal seria, numa abordagem muito primitiva, ou avançada se o preferirem, que cada um cumprisse o seu papel na sociedade e que, em necessitando de algo (bem ou serviço) se limitasse a ir busca-lo ou a usufrui-lo, sem ter que demonstrar, com o dinheiro, que a ele tem direito.
Claro está que teríamos que mudar muitas coisas, começando por muitas mentalidades. Mas, se não alimentarmos um sonho, ainda que classificável de utópico, então nem sei para que diabo andamos por cá!

Foi um destes dias, no Jardim da Estrela.
A fotografia foi feita e entregue, com alguma conversa e muita diversão antes e depois.
No final, uma delas, metendo a mão na sua bolsa, perguntou-me se poderia “pagar-me” com uns chocolates que tinha recebido numa sardinhada em que tinha estado.
Caramba! Bem por bem, serviço por serviço, sem se olhar ao eventual valor de cada um!
Aos poucos, podemos ir mudando a sociedade. Basta estarmos, sermos e agirmos!


Texto e imagem: by me

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Perversidades


Porque faltara a energia eléctrica, não pude aceder às notícias na web ou na TV de manhã. Assim, e ainda que a contra-gosto, tive que recorrer a um jornal disponível no comboio, a caminho do trabalho.
Tratava-se de “O destak”, um daqueles jornais diários e gratuitos que pululam e poluem a cidade e as mentalidades.
O primeiro artigo que li era de opinião. Com o subtítulo “ Carreira”, era assinado por João César das Neves, aqui identificado como economista e professor universitário.
Os títulos nobiliários ou académicos nunca me intimidaram e, depois de ler este texto, menos ainda. Face ao nele exposto, explícita ou implicitamente, até os pelos da ponta da língua se me arrepiaram, sendo que o termo mais suave que encontro para o classificar é o “Obsceno”!
Podem-no ler AQUI.
Confesso que tentei, várias vezes, escrever uma contestação ao que ali li, mas acabei sempre por ficar confrontado com longos e acalorados textos versando economia de mercado, relações laborais, conceitos de educação e aprendizagem, felicidade, governação e cidadania. Não creio que tenham cabimento num blog, pelo que tentarei ser sucinto. Capacidade que, os que por aqui vão passando, sabem que eu não tenho.

Aquilo que se recebe por se trabalhar, quer seja como salário, quer seja enquanto empreendedor individual, não tem que ser por a actividade ser “difícil, árdua e trabalhosa”. Recebe-se o que se recebe por isto ser o fruto da actividade, quer este seja integralmente a favor de quem a pratica, quer seja a repartição entre empregador e empregado.
Considerar que o trabalho tem que ser “Difícil, árduo e trabalhoso” ou, por outra palavras, penoso, é uma atitude profundamente derrotista perante a vida em geral e a participação na sociedade em particular. Se ninguém fizer o que quer que seja para a comunidade, esta deixa de o ser, deixando o ser humano ter a característica de gregário para passar a ser individual, como o condor ou a serpente.
A felicidade não é algo que nos caia no colo, qual maná no deserto, mas o encontrarmos satisfação no que temos e somos, sem deixar de a buscar ainda mais longe e melhor. Porque, se não conseguirmos encontrar satisfação ou felicidade no quotidiano, por pouco que seja e em cada uma das tarefas que executamos, o resultado é a permanente amargura, a frustração eterna, o mau humor e as péssimas relações pessoais que daí advêm.
Os jovens são hoje obrigados a tomar decisões importantérrimas no que ao seu futuro concerne. Têm que definir, ainda antes da idade legal para votar ou conduzir um automóvel, qual a carreira que deverão seguir. E, alimentados por uma organização social autofágica e baseada no status e na aparência, procuram carreiras que se encaixem nesta linha de pensamento, no lugar de encontrarem outras que os satisfaçam no dia-a-dia. Os adultos que os orientam – ou deveriam orientar – mantêm a ilusão que apenas se é alguém se e só se for um diplomado uma qualquer universidade, não importa qual o curso. E, aquilo que acontece por cá, bem como na maioria dos restantes países ditos neo-liberais, é ver gente com especializações supérfluas, excesso de diplomados em algumas áreas e enormes carências noutras. Aqueles que por nós são pagos para gerir a coisa pública – o governo – deveriam fazer antevisões das necessidades em termos ocupacionais a médio e longo prazo e incentivar os jovens a seguir essas linhas de carreira profissional. Para suprir carências em algumas actividades, eliminar excessos noutras e procurar algum tipo de equilíbrio entre todas.
Se o garantirmos a existência ou sobrevivência implica algum tipo de actividade, encontrar satisfação nela, quer seja pelo prazer directo em o fazer, quer seja pelo reconhecimento dos nossos iguais da sua utilidade, é uma forma de estarmos felizes naquele terço do dia em que a fazemos. Que, naturalmente, se repercute nos restantes dois terços.
Dizer aos jovens que a parte da vida relacionada com o trabalho é má e que devemos dela fugir é, no mínimo, criar nos outros o mesmo tipo de frustrações que quem o diz poderá ter. E, isto, é perverso e obsceno!


Texto e imagem: by me

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Apenas ouvindo


Para ouvir, passe por AQUI!

Trinta anos


A primeira vez fica indelével na memória! O primeiro beijo, o primeiro tiro, a primeira aula.
Algumas vamos repetindo ao longo da vida, por hábito ou por prazer, procurando na repetição a continuidade ou a inovação. Outras nunca passam da primeira vez, por falta de oportunidade ou por decisão solene.
Mas, seja bom ou seja mau, a primeira vez nunca se esquece!

Aquele dia, faltavam menos de dois meses para completar vinte anos, foi exactamente há trinta anos. Completam-se hoje!
Cruzei aquele portão como um homem diferente, já que era o primeiro dia do resto da mina vida. E, de então para cá, passei a ser um técnico de televisão, com tudo o que de bom e de mau isso significou e significa.
Foram trinta anos de orgulho e satisfação em levar o mundo, ou parte dele, a casa de cada um e, com isso, contribuir para a transformação da sociedade.
Foram trinta anos de vergonha e culpa por a parte do mundo levada a casa de cada cidadão ser uma parte subjectiva, objecto e sujeita a critérios nem sempre os mais transparentes, com as quais nem sempre consigo conviver tranquilamente.
Mas este ter colaborado em algumas mais ou menos dissimuladas manipulações da opinião pública fica num patamar logo abaixo em importância a outras situações realmente importantes de que me encho de orgulho e satisfação por serem do meu currículo. Rua Sésamo, missas dominicais, Salgado, Buarque e Saramago juntos e ao vivo, só para dar alguns exemplos.
Feito o balanço, estes trinta anos de cumprir horários, respeitar (mais ou menos) hierarquias, mostrar e suportar o fétido de certas mentalidades e personalidades, até que nem foram tão maus quanto isso. Amachucados e com muitos sapos engolidos, volta e meia lá foram acontecendo alguns bombons dentro da pratinha, mais ou menos como antes de ingressar no “mundo dos adultos” e passar a ser um assalariado televisivo.
Parabéns a mim por ter aguentado todos estes anos! E ter conseguido não ter sido completamente corrompido pelo sistema!