quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Et maintenant




Caminhava calmamente pelo corredor, saindo da luz do sol e entrando na obscuridade das lâmpadas do centro comercial.
Entre o seu cabelo alvo, já um pouco rarefeito, e o casaco de cabedal um pouco coçado, um bigode farfalhudo e bem aparado compunha-lhe a cara.
A sua mão esquerda apoiava-se numa bengala, que manuseava com destreza, bem a compasso do seu caminhar e parar.
Porque ele parava! A cada meia dúzia de passos olhava para quem lhe estivesse mais próximo e cantava-lhe. Desafinado e já com falta de voz, repetia sempre os mesmos acordes e o mesmo verso antigo de nem sei quantos anos:
Et maintenant, que vais-je faire…
Eu, bem como os demais que ali estavam a almoçar, olhámos uns para os outros, meio espantados como insólito da situação. Mas nem a empregada que ali atendia, nem o segurança a uns metros de distância, lhe prestaram atenção. Deduzi que se trataria de um frequentador habitual do espaço, como tantos outros reformados que usam os centros comerciais como forma de matar o tempo que lhes sobra.
Este… bem, este ainda verbaliza o seu problema, de quem se viu sem ocupação e, talvez, sem com quem partilhar a sua amargura.
É tão difícil – e absurdo – definir normalidade!

Texto e imagem: by me

Os meus feriados




Sobre os feriados, e o trabalhar-se ou não nesses dias, uma coisa houve que nunca ouvi:
“Amanhã é feriado e vou festejar.”
Tal como não oiço:
“Hoje vou festejar, seja ou não feriado!”
Aquilo que é normal dizer-se sobre um feriado é relativo a trabalhar-se ou não, sobre se se paga ou se se recebe mais ou menos, se se aproveita esse dia para fazer algo menos normal (ir para fora, trabalhos domésticos, desporto).
Agora sobre o facto de o feriado ser um dia para ser festejado, relembrando uma data ou facto relevante (político ou religioso), isso nunca se comenta.
E eu, que sou um cidadão não filiado em nenhum partido político e que sou agnóstico (com tendências animistas) pergunto-me porque terei que cumprir os feriados dos outros e não poder celebrar em festa as datas que entendo por realmente importantes, quer da história, quer da filosofia ou teologia.

Quero os solstícios e os equinócios por feriado, que são datas comuns a todo o planeta e que nos mostram o quão pequenos somos perante a natureza. E, nesses dias, quero poder celebrar usufruindo da luz solar do nascer ao pôr-do-sol, em particular esses momentos.
Quanto à história, quero poder celebrar a invenção do fogo, da roda e da escrita. Três momentos fulcrais na civilização, completamente à margem de conflitos e mortandades.
Quanto ao resto, mais século, menos milénio, acabam por perder importância, que mais não são que meros momentos na curta vida de um ser humano e respectiva espécie. Ficam os resquícios consumistas e os códigos laborais a imperar.

Texto e imagem: by me

Excêntrico




Isto é um excêntrico! Uma peça mecânica em que o seu limite exterior, ainda que seja uma linha curva, não se encontra equidistante do seu centro ou eixo.
Aplicado que lhe seja um movimento de rotação, a irregularidade do seu limite exterior entrará em conflito com o que o circunde, provocando uma acção nos elementos que o rodeiam.
É usado para provocar acontecimentos cíclicos, controlados, em mecânica.
No caso específico da imagem, faz parte do mecanismo de um projector de cinema de 8mm e super 8mm que tenho temporariamente em casa.
Recorri ao empréstimo deste vetusto aparelho para passar para suporte digital velhas películas cinematográficas a pedido de uma ex-aluna. De caminho, e a título de pagamento do empréstimo, procedi a idêntico tratamento aos filmes do dono do projector, passando-os para DVD.
Este trabalho levou-me a conhecer bem duas coisas:
- O mecanismo em causa, já que o tive que reparar por diversas vezes face à sua idade avançada;
- Os filmes passados para a tela, recuperados pela câmara de vídeo e reencaminhados para o disco rígido.
Foram várias horas de um tempo que não se repete, em que figuras que não conheço passaram da fase de bebé de colo à de adolescência vistos pelo olhar técnico de seu pai e pela complacência de sua mãe.
Os trajes e os lugares, os penteados e os automóveis, a participação dos adultos nas brincadeiras e as próprias brincadeiras variam enormemente em 30 ou mais anos.
No entanto, ainda me pergunto se terei feito bem em fazer este trabalho.
O prazer da manipulação deste equipamento antigo, o ruído do projector, o ritual das luzes apagadas e dos olhares fixos na tela reflectora perder-se-á. As bobines de metros e metros de milhares de fotogramas serão arrumadas numa qualquer caixa, ganhando bolor e esquecimento.
O ver destas novas imagens na tela emissora que não reflectora ganhará a banalidade de abrir uma gaveta, e fazer click. Tão fácil quanto o ver mais um qualquer filme alugado no clube de vídeo.
A carga mágica do suporte desaparecerá, vulgarizado que for o seu uso.
Será que as gerações vindouras darão ao suporte banal dos bites e dos bytes o mesmo valor que aos fotogramas?

PS – Eu não possuo uma peça destas! A minha excentricidade não se manifesta em peças de teflon, engrenagens e rotações.
Antes em matéria viva, textos e fotografias, pensamentos e intervenções na sociedade.
Como aqui e agora!


Texto e imagem: by me

Oh yeah!



By me

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Uma questão de códigos




Esta é uma história com mais de um quarto de século.
Andava eu e mais uns companheiros de ofício a colaborar nas horas vagas com uma outra empresa. Na altura não se falava em concorrência ou quejandos, pelo que as questões éticas não se levantaram em momento algum.
Um dos sócios dessa empresa, aquele que era responsável pelos pagamentos e contratações, era um troca-tintas que tinha vivido no Brasil e onde não poderia voltar em segurança: se escapasse à polícia tinha uns tantos traficantes de armas à sua espera. Vidas que alguns levam!
E por cá levava uma vida parecida, sendo relapso nos pagamentos a colaboradores e fornecedores, sempre com desculpas, bem contadas mas esfarrapadas.
Um dia eu e um companheiro achámos que já chegava e fomos lá para acertar as últimas contas. Recordo que nem seria muito, mas era nosso e queríamo-lo.
E dizia-nos ele, sentado à secretária em frente da qual estávamos de pé:
“Eh pah! Agora não dá jeito! Talvez que daqui a quinze dias… Passem por cá que logo se vê.”
Achei que não seria nem logo nem dali a quinze dias. Tal como estava, de pé e com a minha já então volumosa barriga à altura dos seus olhos, pus as mãos nos quadris, puxando com isso as longas abas do meu colete para trás. E, ainda que meio encoberta pela camisa, ficava bem visível a coronha da pequena arma que trazia comigo no cinto. Enquanto que eu perguntava, com ar sério e inocente:
“Então como é que vamos resolver as coisas?”
Fez-se um silêncio de alguns segundos naquela sala, enquanto que os nossos olhos se entrecruzavam. Pegou no telefone interno e deu instruções para que os nossos cheques fossem preenchidos. Com os quais saímos pouco depois, indo de imediato levantá-los ao banco, por via de dúvidas.
Nunca mais o vi e apenas dele soube que havia publicado um livro, que me recusei terminantemente a ler. Suponho que já tenha falecido. Dos seus sócios, se na altura nada tinha a lhes apontar, hoje assim continuo, sendo que há sempre uma saudação efusiva de cada vez que com um deles me cruzo.
Serve esta história (não muito edificante ou abonatória a meu respeito, confesso) para ilustrar o como é importante a partilha de códigos no processo de comunicação. Que emissor e receptor usem da mesma linguagem. Ou a eficácia da mensagem se perderá porque não entendida.

Nota extra: cada vez mais, e hoje foi um desses dias, lamento ter deixado de andar armado que não apenas em parvo.

Texto e imagem: by me

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

18:45




É regra velha minha: não correr para embarcar num transporte colectivo. Comboio, autocarro, avião, barco.
Ajusto as minhas deslocações com o tempo necessário para não chegar atrasado e, se não conseguir, uso o seguinte.
Esta minha atitude fez com que um jovem adolescente meu conhecido me dissesse que comigo era tudo devagar. Meio a brincar. Meio acusatório.
Talvez seja! Mas certo é que as coisas boas da vida se fazem com calma. E isso só se aprende fazendo-as, vivendo.
Se eu tivesse corrido para apanhar este comboio, certamente que não me teria deliciado com este fim de dia, que nem sequer teria dado por ele.

Texto e imagem: by me

Sugestão




Chama-se “Café Saudade” e fica em Sintra.
Mesmo pertinho da estação de caminho-de-ferro, em seguindo para a zona velha e turística da vila.
Gosto dele pelo ambiente, pelos bolinhos e scones, porque vende artesanato (se bem que galos de Barcelos em jeito de Andy Warhol seja bem estranho).
Além do mais vai tendo, de quando em vez, exposições de fotografia (Ok, este é um motivo mais que suficiente para que eu cá venha, mas o resto vale a pena).
Mas hoje quase que “me saltou a tampa”!
Sentei-me e pousei a tralha: mochila, chapéu e câmara, esta em cima deste e em cima da mesa. Veio uma senhora simpática, que vim a saber ser uma das donas, e a primeira coisa que me disse, sorridente, foi “Hello!”
Consegui não ser mal educado nem me levantar e sair sem mais palavras. Mas vontade não me faltou, caramba!
Sentado numa velhérrima vila portuguesa, ser abordado em inglês… Irra!
Depois de me ter sido trazido o que pedira, chamei-a de novo e, sorrindo por minha vez, sempre lhe disse que em Portugal trate os clientes, pelo menos numa primeira abordagem, pela língua Lusa. Se, depois e para que o negócio aconteça, tiver que recorrer a outras, esteja à-vontade. Mas a abordagem inicial que seja nossa, desde um popular “Olá!”, até um “bom dia” ou “boa tarde”, passando eventualmente, por um “seja bem-vindo”.
Tentem lá ir à Catalunha, ou à Suécia, ou à Tailândia e iniciar uma conversa que não seja na língua nativa!
Fora isto, recomendo que passem pelo “Café Saudade”, em Sintra.

Texto e imagem: by me

Voar sem asas




Como em tudo o resto que é objecto, não é o próprio “de per si” que é bom ou mau. Serão as circunstâncias em que o usamos ou que com ele nos confrontamos que nos conduzem a actos ou pensamentos positivos ou negativos.
Ver esta bota, exactamente nesta posição, assim abandonada na rua, numa brilhante e imaculada montra ou junto aos pés de uma cama conta-nos estórias tão diferentes quanto os Lusíadas e a lista telefónica.
Ou, então, podemos retirá-la do contexto (sempre o malfadado contexto) e dar asas à imaginação.
Bom voo.

By me

domingo, 27 de novembro de 2011

Desculpem qualquer coisinha




Por vezes é assim!
Sai um tipo de casa, todo contente, porque vai direitinho a uma exposição fotográfica. Vários autores, todos portugueses ou radicados por cá, todos razoavelmente novos, o suficiente para esperarmos ir aprender algo com quem não trás vícios. De forma ou de conteúdo.
Frustração total!
Talvez que falha minha, a verdade é que, com poucas e honrosas excepções, não me senti tocado pelo que vi. Nem da primeira volta, nem da segunda, que faço-a sempre.
Não que as imagens fossem más. Não posso dizer que tenha “desgostado” o que ali vi.
Apenas que, confrontado com as imagens expostas, não vibrei. Não senti mensagem, não senti emoção. Olhando para elas, para a maioria delas, o mais que pensei ou senti foi:
“Ok! São fotografias. Ponto”!
Talvez que sejam os meus próprios vícios formais, fruto de uma sociedade de informação padronizada, que me impede de ver mais além.
Certo é que não vi mais do que ali se me mostrava!
Valeu-me, para salvar o dia, o estar a acontecer em simultâneo no local a segunda edição da feira do livro de fotografia. Com a carteira mais leve (não muito) e o saco bem mais pesado, regresso de alguma forma mais equilibrado. Talvez que o ter recolhido alguns mais ou menos convencionais, daqueles de que sei gostar ou de que espero gostar, ajude ao equilíbrio.
Certo é que entre a expectativa, a frustração e o re-equilíbrio, não tive inspiração para fazer algo que se visse ou de que me possa, se não orgulhar, pelo menos não envergonhar.
Resta-me, para que este desabafo não fique a seco, o que registei um destes dias, enquanto esperava p’lo comboio, e já meio esquecido no cartão da câmara.

By me

Incompetências




E foram os acontecimentos do passado dia 24, com duas repartições de finanças em Lisboa “agredidas” com cocktails Molotov.
E foram os incidentes no estádio da Luz, com bancadas incendiadas.
Agora vem o jornal Diário de Notícias contar que foram detectadas pelo SIS ligações entre os confrontos do Bairro da Boavista, Setúbal, 2009, e elementos “anarquistas radicais”, devido ao uso dos tais cocktails Molotov. Acrescentam que estes são uma marca dos extremistas.
Este é um país de tão brandos costumes que nem sequer se sabem fazer ou utilizar cocktails Molotov.
Que, se soubesse, saber-se-ia quais os ingredientes certos a colocar dentro das garrafas, qual o tipo de garrafas que se devem usar, qual o tipo de torcida e, mais importante ainda, que as garrafas não explodem. O que altera por completo o seu manuseio e consequências.  
Portugueses: 
Já que somos incompetentes em gerir o que é nosso; já que somos incompetentes em escolher governos; já que somos incompetentes em usar a democracia e a liberdade…
Ao menos aprendam a revoltarem-se como deve ser e a usarem os esforços e as ocasiões com efeitos que se vejam!

By me

Interpretando




E porque, queiramo-lo ou não, nos deixamos influenciar por aquilo que estamos a vivenciar, aqui fica uma interpretação de uma frase que conheço há decénios e que voltou, para alegria minha, a passear sob os meus olhos:
“Tu és deus!”

By me

sábado, 26 de novembro de 2011

O fim



Do dia e da bota também.

By me

22.00




Por muito alegre e cosmopolita que um centro histórico de um bairro suburbano possa ser, de noite é sempre triste.
Abandonado à sua sorte, apenas atravessado por patrulhas policiais, alguns táxis esperam os retardatários que sairão do comboio na pressa de regressar a casa e deixar fora de portas o negrume nocturno, mesmo que tépido.
E por muito que se esforcem comerciantes e município em dar um toque festivo, não será o apelo implícito ao consumo que fará aumentar os rendimentos nem dispor de mais dinheiro para gastar em prendas fúteis.
Esta árvore de natal solitária no largo da estação de Mem Martins, mais que alegrar corações, recorda os tempos que atravessamos.
Como disse alguém que estimo, talvez tenhamos que deixar este barco afundar-se de vez, que já tem demasiadas camadas de verniz e estalado, para que possamos construir um novo.

By me

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Bifes e terramotos




Encontrei uma mocinha amiga. Melhor dizendo, foi ela que me encontrou, que eu estava metido com as minhas cogitações quando fui por ela abordado.
É ela filha de uma senhora que conheço e estimo e ainda recordo uma das primeiras vezes em que me viu e que, a medo, foi perguntar à mãe se eu seria o Pai Natal. Coisas!
Pois esta amiguinha estava em Lisboa, segundo me contou, porque tinha vindo com uns e umas colegas estudar para um trabalho. Sismos, disse-me ela.
Não quis perguntar, ainda que de tal me lembrasse, que raio de ligação haveria sobre o tema e o local onde nos encontráramos. Mas, em contrapartida, lá lhe atirei algumas coisas para abordar nesse seu trabalho:
O que resta de edifícios sobreviventes ao sismo de 1755, incluindo o aqueduto das àguas-livres, o traçado da baixa pombalina, o anel de fogo do pacífico, com os seus sismos e vulcões, bem como a arquitectura actual e convencional anti-sísmica, o site do instituto de meteorologia, com estatísticas e recomendações úteis e, por fim, sobre a minha mochila de emergência.
Está ela junto à porta de casa e contem conservas, pilhas, um rádio, água, café e chá, um púcaro, bolachas torrada, um fogão a gás portátil, marmelada em cubos, velas, fósforos e isqueiro, tabaco, arroz, ligaduras, lenços de papel e medicamentos básicos domésticos, caderno e caneta, um cartão de memória para a minha câmara, meias e t-shirts e o que mais lá me lembrei de pôr, junto com uma pequena machada e um serrote, igualmente pequeno.
Serve esta mochila junto com o casacão pendurado por perto, em caso de cataclismo e se os puder trazer comigo, para ser auto-suficiente durante uns cinco a seis dias (menos de água, mas ainda não encontrei o desinfectante). Se tudo ruir e eu mesmo não estiver ferido, serei menos um a recorrer em desespero aos serviços de socorro. Pelo menos nos primeiros dias. E ainda poder dar uma mãozinha em redor.
Claro que nunca se comparará a um suculento bife como este, mas não passarei fome pela certa.
Espero bem que, com toda esta conversa, a mocinha minha amiga tenha aprendido algo.

By me

Prefiro bem mais os alinhados com o sistema assumidos, os medrosos confessos e os lambe-botas descarados do que os fala-barato que apregoam por tudo quanto é lado que fazem e que acontecem e que, em chegando à hora da verdade, dão o dito por não dito e, “de rabinho entre as pernas”, se subjugam à vontade de quem, supostamente, tem poder.
Por outras palavras, prefiro um filho de uma nota de vinte identificado a um cobarde camuflado. 

Cinema de salto alto



By me

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

No fim de contas




Ao longo dos anos tenho intervindo em variadas lutas. E das mais variadas formas. Mais individuais, mais colectivas, mais pacíficas, bem pouco pacíficas.
Nalgumas ganho, noutras nem tanto, numas saio incólume, noutras a lamber feridas.
Mas a grande vantagem de ter estado em todas elas é a experiência. É o antever com algum rigor o resultado que delas pode acontecer. Infelizmente, não é raro acertar em cheio.
É a vantagem de se por cá andar há já mais de meio século.
E do que aconteceu hoje em Portugal, esta jornada de luta a que se deu o nome e a forma de “Greve geral”, sei eu um resultado, pelo menos:
Gente houve que aproveitou a luta e o “dar o corpo ao manifesto” de muitos para disso tirar proveito pessoal.
Gente houve que, mais que usar do direito inalienável de não fazer greve, fez o que pôde para reduzir ao mínimo os efeitos da greve dos outros, ultrapassando as suas próprias competências, fazendo o seu trabalho e o dos outros, sorrindo, mesurando e lisonjeando as estruturas laborais a que pertencem, e outras, deixando de parte a ética e a lei,. E, com isso, tirar proveitos que, noutras circunstâncias, nunca conseguiria, como promoções a destempo, favores especiais, férias extra, prémios, etc.
Como sei isto, com tanta certeza, tendo estado em greve e não tendo comparecido no local de trabalho? (não tive transportes que me permitissem estar nos piquetes de greve)
Fácil! Já o vi mais vezes do que gostaria de me lembrar. E conheço mais ou menos bem aqueles com que trabalho.

Esquecem esses, no entanto, que as memórias nem sempre são tão curtas quanto eles gostariam.
Esquecem eles também que em morrendo, mais caveira menos cinzas, ficaremos todos iguais.
Tal como eu gostaria que fossemos em vida, nos direitos e nos deveres. Se possível, até, sem uns nem outros.

Texto e imagem: by me

Chinelo mágico




“Chinelo, chinelo meu:
Encontrarei o Romeu?”

“Claro, claro que sim!
Mas joga-me fora,
Que não gostará de mim!”

E o chinelo foi deitado no lixo, o Romeu chegou, e foram felizes para sempre.

By me

Farturas ou estamos fartos?




Durante quase meio século o povo português foi vivendo no limiar da pobreza, com uma ditadura apoiada em censura e polícia política.
Vivíamos voltados para dentro, quase nem desconfiando que havia outras formas de viver e outras coisas que comer.
Apoiámos, discretamente, várias ditaduras, alimentámos um império colonial e uma guerra para o defender. Inútil, como sabemos.
Hoje, o regresso ao “pão e circo”, temperado de ignorância, com que nos alimentaram será bem mais difícil. Não estaremos limitados ao que alguns ouviam às escondidas nas emissões da BBC nem aos livros e panfletos distribuídos clandestinamente.
Cada cidadão é hoje, graças às novas tecnologias de informação, um jornalista e um delator, que vai divulgando o que sabe, porque o leu algures, porque o assistiu ou porque o viveu.
Quando a fome – de comida, de justiça, de liberdade – apertar ainda mais, não creio que a tradicional opinião de “mansos portugueses” se mantenha.
E não serão barraquinhas de churros e farturas às portas dos bancos que apaziguarão os ânimos!

Texto e imagem: by me

Liberdade




Em liberdade, cada um pode e deve tomar as suas próprias decisões e atitudes.
Convém apenas não esquecer que muitas delas envolvem terceiros e que coarctar as suas liberdades, impondo-lhes as nossas próprias decisões ou atitudes será tudo menos a prática da liberdade.
Pior ainda será agir por forma a neutralizar as atitudes dos outros!

By me 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Detalhes




Ao fundo das Escadinhas do Duque, mesmo na confluência com a Calçada do Carmo, existe este painel pintado.
Já o tinha visto e sempre achei algo de estranho nele.
Desta vez estive um bom pedaço a olhar para o que estava pintado. Um bom pedaço mesmo. Até que descobri.
Para além da perspectiva e da suave ausência de carris, é algo que apenas um Lisboeta descobre: a luz!
Neste local nunca poderá haver a luz e sombras aqui representadas, simplesmente porque o sol nunca estará nesta posição.

By me

Só para que conste




Estive numa livraria, ali ao Chiado.
Não creio que haja, em todo o país, livraria mais escondia.
Mas recomenda-se., a Assírio e Alvim.

By me

A aldeia




São muitos!
São muitos os que residem neste prédio e mais não são porque há apartamentos desabitados.
Aliás, neste prédio reside mais gente que em certas povoações.
De uma forma ou de outra, quase que se pode afirmar que este prédio é uma aldeia, bem no meio de um bairro da periferia de uma grande cidade.
Param aqui, naturalmente, as comparações.
Nem os residentes têm a vida de um aldeão, nem habitam lado a lado, com quintais contíguos e cães que ladram em passando alguém, nem têm um relacionamento como o que existe numa aldeia.

Por motivos que agora não interessam, tive que procurar um vizinho, residente no meu prédio.
Não sabia o seu nome nem com exactidão onde morava, pelo que recorri aos demais vizinhos, que fui encontrando na entrada do edifício.
Tal como eu, também eles não me souberam dizer onde morava ele nem o seu nome. Apenas um me adiantou que a pessoa em questão teria estado internada no hospital devido a uma qualquer complicação mais ou menos natural face à sua idade.
Ainda hoje estou por saber onde mora o meu vizinho e o seu nome.

Nestas aldeias verticais, em que estamos fisicamente bem perto uns dos outros, acabamos por estar demasiadamente longe uns dos outros.
E há quem fale da aldeia global! Onde?

Texto e imagem: by me

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Luzes, conforto, acção!




Há soluções que são razoavelmente simples e que surgem sem que delas venhamos a suspeitar.
O meu prédio está em obras, tendo eu as minhas janelas parcialmente tapadas com andaimes e telas de protecção.
Sendo que não gosto de espreitar para dentro de casas alheias, também não gosto que andem a espreitar para dentro da minha. Que é o que acontece quando os operários se deslocam em cima das tábuas onde trabalham.
Mas, pior ainda, estes andaimes e tábuas já foram, aqui no meu prédio, o acesso facilitado para que três apartamentos fossem assaltados, um deles com toda a família a dormir. Não me apetece passar por isso, como será fácil de concordar.
Vai daí, tenho as persianas de minha casa permanentemente fechadas, não apenas para dificultar (impedir se possível) entradas indesejáveis como para não denunciar presenças e ausências de quem aqui vive.
Faz isto com que fique encarcerado na minha própria casa, situação temporária (até ver) e bastante desagradável: a ausência de luz natural é das piores coisas que posso viver.
Durante algum tempo vim trabalhando na mesa de trabalho, que se vê à esquerda, alumiada por lâmpadas economizadoras, tendo o resto do espaço às escuras. Claustrofobico e deprimente!
Até que, ao substituir duas lâmpadas da zona usada para fotografar, constato que estas foram compradas por engano: tendo a potência que queria, possuam uma temperatura de cor equivalente à da luz de dia, ainda que com um ligeiro desvio para verde.
Pois passei a trabalhar com os dois tipos de luzes: quente na mesa do computador e monitores de vídeo e PC e, em fundo, luz de dia, ainda que artificial.
Não apenas compensa a luz que não entra pela janela como me permite trabalhar de noite como se de dia se tratasse. E irei manter este sistema, mesmo depois de os malfadados andaimes desaparecerem.
Nota extra - as intensidades aqui mostradas não correspondem ao que uso: a zona de “estúdio” (perdoem-me a expressão pomposa) está propositadamente mais intensa, só para efeitos desta imagem.

Texto e imagem: by me

Velharias



Ali a Campolide

By me

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Celebrando




Só fotografo em duas ocasiões: quando estou bem-disposto e quando não estou bem-disposto.
Esta fotografia foi feita na primeira das duas circunstâncias.
Para além de tudo o mais que me aconteceu ao longo do dia, motivos mais que bastantes para ficar bem-disposto, o início da noite foi brilhante. Bem mais que a imagem!
Nas Escadinhas do Duque, entre o Rossio e o Bairro Alto, e enquanto aguardo por vontade de regressar a casa, vejo um alfarrabista.
“Mal não tem que pergunte”, digo para os meus botões. E entro para saber se teriam um dado livro. Não tinham. Pergunto também pela secção de fotografia, a que dei uma olhada. Interessantes, alguns dos lá estavam, mas nada que me fizesse gastar dinheiro.
Em último recurso, pergunto pela edição da colecção “Argonauta” da obra “Um estranho numa terra estranha”, escrita por Robert A. Heinlein. E não é que tinham mesmo?!
Em óptimo estado, ainda que usados, todos os três volumes vieram direitinhos para o meu bolso, coisa que desejava fazer há bem mais de vinte anos.
Esta obra tem estado no mercado, editada por outra editora, mas também traduzida por outro tradutor. Este que agora veio comigo foi traduzido pelo saudoso Eurico da Fonseca, que conseguiu dar o “toque poético” ao romance que ele merece.
Paguei o que me pediram, não muito, e saí, assobiando uma ária de “Carmen”, que reservo para momentos festivos e afins. E, à porta, dou com isto. Não resisti e fotografei, bem encostadinho à ombreira da porta que a luz não abundava.
Nada que se compare com a beleza e elevação de “Um estranho numa terra estranha”, mas foi o melhor que encontrei para celebrar.

Não sei se terão oportunidade de descer do Bairro para o Rossio, passando por onde ficava o mítico “Freire”, de boa memória, ou a loja do Vasco Granja, também de boa memória, e ver esta luz.
Mas se virem “Um estranho numa terra estranha” à venda (seja qual for a edição), não o percam, se querem saber o que é um bom livro!

Texto e imagem: by me

Fachadas




Tinha acabado de comprar cigarros no quiosque da estação. E faltavam bem quinze minutos para o comboio seguinte. Deixei-me ficar por ali, que nunca se sabe o que aparece. E apareceu!
Aqueles dois polícias, um ele e uma ela, faziam parte com certeza do novo contingente que vamos vendo pela cidade. As divisas, o ar jovem, o uniforme e acessórios acabadinhos de estrear…
Aproximou-se deles um homem. Pela mão, uma criança, quatro a cinco anos. Trocaram três ou quatro palavras e partiram juntos.
Estranhei! Nem um cumprimento, nem uma conversa longa de quem se queixa… Tinham ali encontro marcado para seguirem, a pé, para outras paragens.
E eu, que sou cusco e voyeur porque fotógrafo, fiquei a ver.
Atravessaram a rua e aproximaram-se de um prédio, em cuja porta o homem tocou uma campainha. À distância pareceu-se ser apenas uma vez, mas a porta não se abriu nem os quatro trocaram palavra, que os agentes da PSP mantiveram-se a alguns metros.
Minutos depois, poucos, a porta do prédio abre-se e delas saem duas mulheres. Uma delas toma a criança pela mão e regressam os três ao interior do prédio.
A porta fechou-se, o homem e os polícias acenaram cabeças, o primeiro segue para um lado, os outros atravessam a rua em minha direcção.
Momentos depois fiquei a saber que uso tinha dado um dos agentes ao rádio, enquanto estavam à porta do prédio: chegou um carro patrulha a recolhê-los. Antes de entrarem, o agente apeado fez um “ok”, hoje apelidado de “like” para o interior. E partiram.

Por muito simpática que seja a fachada de um prédio suburbano, mesmo com palmeiritas a crescer-lhe em frente e cartazes de “vende-se” em duas janelas, haverá sempre dramas escondidos atrás das portas. Alguns a necessitarem de agentes policiais para testemunharem os factos.

Texto e imagem: by me

Um olhar - Miró



By me

Pela arreata




Vivemos num mundo de imagens. Algumas bem claras e inequívocas, como a fotografia, o cinema e o vídeo. Outras, meros códigos ou convenções, como os sinais de trânsito ou os ícones informáticos. Outras ainda de interpretação nem sempre imediata, como é o caso dos logótipos comerciais.
De uma forma ou de outra, este produzir e consumir imagem tem por objectivo a simplificação da comunicação. Dentro da linha de “uma imagem vale mil palavras!”
E a evolução e a complexidade da tecnologia também assim o impele e obriga. Quem se recorda, no caso dos computadores das linhas de comando complexas, com palavras, letras e sintaxe rigorosas? Hoje o consumidor banal desconhece-as, usando tão só imagens e códigos visuais coloridos. Tal como noutras máquinas, os painéis de controlo são essencialmente compostos de símbolos e ícones, no lugar de palavras ou letras. Gradual mas firmemente, a imagem vai substituindo a palavra escrita.
E se isto sucede nos comunicadores formais de grande volume (industriais, media, audiovisual), sucede também com os comunicadores de pequeno porte mas a quem se destinam os primeiros: os consumidores individuais.
A tecnologia da imagem (fotografia, vídeo, infografismo) está ao alcance de quase qualquer um nas sociedades ocidentais, sendo que a sua posse e uso se torna quase que um símbolo de posição social, tal como o automóvel ou a marca de roupa que se veste.
A própria comunicação escrita convencional – a palavra – está a sofrer mutações. A técnica vai permitindo substituir as palavras e letras por símbolos gráficos – ícones de emoção, animados ou estáticos. Ou, mais simples ainda e menos tecnológico, a quantidade de letras usada na escrita vai diminuindo, com siglas, contracções e aglutinações.
De uma forma ou outra, a sociedade tecnológica e de consumo em que vivemos nos chamados “países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento”, a palavra escrita vai definhando em favor da imagem ou do grafismo visual.
Indo ainda mais longe e fazendo futurologia radical, estou em crer que dentro de algumas gerações (quatro, cinco, seis?) a escrita como a conhecemos hoje será um atavismo, usada apenas por lentes e estudiosos. Talvez também em documentos formais ou oficiais.
Esta hipotética evolução que antevejo não é nem boa nem má: é evolução. Mudanças nos hábitos e culturas, levadas a cabo pela tecnologia e globalização, tal como os copistas monásticos e os iluministas o foram com o advento da imprensa.
Mas, no meio de tudo isto, nesta sociedade em mutação baseada na imagem e comunicação, falha um aspecto vital: a preparação dos cidadãos.
A formação académica de base, de crianças e jovens, baseia-se nas letras e palavras, que ainda é a base actual da comunicação.
Mas não os prepara para saberem produzir ou consumir imagens. Prepara-os para saberem interpretar um texto escrito (por um romancista, jornalista ou um formulário) mas não para saberem ler uma fotografia, interpretarem um filme ou vídeo, descodificarem publicidade. E se não o souberem ler, interpretar, descodificar, serão estes agora jovens, futuros adultos analfabetos. E serão alvos fáceis para os que, em sabendo-o, usem desse conhecimento em favor dos seus interesses económicos, políticos, ideológicos de qualquer género.
A cultura dos códigos iconográficos e da imagem está já aí! Sem que a maioria de nós de tal se aperceba. E um povo ignorante, inculto, desatento, é o sonho de qualquer governante, magnata ou líder religioso: dócil e obediente!


Texto e imagem: by me

domingo, 20 de novembro de 2011

Ora bolas!




Alguém pôs a pata, perdão, a bota na poça!

By me

Acordar




Cada um saberá de si e o diabo saberá de todos, muito naturalmente.
Mas o meu dia dificilmente começa se não ingerir a minha dose de cafeína, quantas vezes dupla.
Uns dias mais sensível para o que me cerca, outros bem fechado ainda sobre os pensamentos que me assolem. Mas pronto para enfrentar o que de bom ou de mau me espere só mesmo depois de um café, dois de preferência: um primeiro em caneca grande em casa, e um expresso já no cafezinho, do outro lado da rua.
Quanto a fotografar… bem, isso não necessita de níveis de cafeína no sangue!

By me

De manhã




Um fresquito matinal, que faz apetecer vestir um casaco leve, a luz baixinha, com sombras longas mas não muito vincadas, um calorzinho tépido, que nos leva a procurar o sol no lugar das sombras, o chão ainda molhado de algum aguaceiro madrugador…
Tudo isto rematado pela total ausência de pressas ou relógios!
Ele há melhor que uma manhã de um dia de folga?

By me

22:30



E quando esperamos, cada minuto parece ter 120 segundos.

By me

sábado, 19 de novembro de 2011

11:30




Ao invés do que se pensa, os transportes colectivos servem, primordialmente, para descansar as pernas de tarefas árduas, como o trabalho, o desporto ou mesmo o simples dormir.
Assim o passageiro encontre lugar sentado.
É por isso que tanto gosto dos caminhos-de-ferro.

By me

Iluminações ao alto




E pronto, aí estão de novo as iluminações natalícias.
Tristes de dia, como sempre, erguem-se ao alto num mudo apelo ao consumo.
E não acredito que o minimalismo que os consumos energéticos e as modas técnicas impõem consigam superar os pensamentos pessimistas com que a crise nos cobre nem a antecipação de tempos ainda piores.
Restará, em tom de consolação, que os crentes saibam fazer regressar o natal a uma celebração religiosa.
E talvez, quem sabe, que todos recordem que o 25 de Dezembro é uma apropriação do solstício, este sim transversal aos quatro cantos do mundo e a todas as confissões e crenças.
Por mim, que ainda nem desconfio o que farei nesse dia maior que é o menor, espero poder usufruir de cada pedacinho de luz.


By me

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O corredor




Eu sei que é um longo caminho para se chegar à fala como São Pedro.
Mas, mesmo assim, tenho que o avisar: Os seus Flashes estão dessincronos com os meus obturadores.

By me

O que leva alguém a criar algo?




Estou em crer que é uma inquietude interior, semelhante ao que sucede com a intranquilidade das crianças e adolescentes.
No caso destas e destes o fenómeno é conhecido e fácil de explicar: o processo de crescimento – a multiplicação das células – implica que ocupem espaço. Ossos e músculos vão aumentando de volume e robustez, mas a velocidades distintas. Este desequilíbrio provoca incómodo, por vezes dor, que é acalmada com o movimento, por vezes desordenado, que vemos as crianças pequenas fazer. Já os adolescentes, que aprenderam inconscientemente a relação causa-efeito, procuram o exercício físico organizado para esse efeito. O factor desporto, tão do agrado de quem o pratica, já é uma socialização dessa necessidade, acrescida da vontade de competir e de marcar um lugar de destaque entre iguais.
Claro está que, não sendo eu um especialista em psicologia, esta teoria advém do lido, ouvido e observado aqui e ali, e carece de verificação metódica e científica.
Acredito que com a criação de algo novo (ideias verbalizadas ou escritas, objectos, sons, movimentos) se passe o equivalente.
A passagem de energia eléctrica e térmica entre os neurónios cerebrais provocam ideias, pensamentos. Alguns normais e corriqueiros, como cadeira, almoço ou quilograma. E porque os identificamos e bem sabemos a que se referem – descanso, comida e satisfação, peso, esforço, quantidade – ocupam um espaço ou lugar definido e não mais lhes prestamos atenção.
Mas outros pensamentos ou ideias não são reconhecíveis ou identificáveis de imediato. Estão aí, talvez que em lugares bem distintos do cérebro, provocando como que um desconforto porque não identificáveis. E só quando pomos em prática as acções que os concretizam, que os organizam e metodizam – palavras, gestos, sons – todas aquelas ideias desordenadas começam a fazer sentido. E acabam por ficar arrumadas, qual livro numa biblioteca pública.
Claro que o acto de criar também pode ser – e é – fruto da prática.
Ao sentir esse desconforto mental, quem estiver habituado a tal começa a fazer aquilo que sabe que, geralmente, lhe provoca alívio: dançar, escrever, compor, falar, tocar, moldar, pintar…
A prática ou o hábito pode ainda conduzir a uma espera: aguardar que essas ideias ou impulsos comecem a ganhar forma mental antes de as materializar de algum modo. Esta espera é, por vezes, morosa ou dolorosa. E acontece vermos alguém com ar distante, fazendo um qualquer gesto mecânico que mantenha o corpo ocupado enquanto se procura interiormente organizar um puzzle confuso. Pelo menos um início que permita por em prática os gestos que conduzirão à tal tranquilidade.
Estou em crer também que essas ideias desordenadas não provêem do nada. Interagimos com o mundo que nos cerca, estando permanentemente a receber estímulos exteriores. A esmagadora maioria banais e facilmente classificáveis, como as cores dos semáforos, a textura do tecido de uma camisa ou os gestos e/ou palavras de alguém. Recebemos os estímulos, classificamo-los e agimos em conformidade parando, vestindo ou cumprimentando. Fim da acção/reacção.
Mas se algo for menos comum, mesmo que reajamos normalmente, ficará registado como uma peça de um puzzle que não encaixa perfeitamente. O somatório de vários estímulos deste género, mesmo que longamente separadas no tempo, podem provocar a tal intranquilidade que levará a tentar organizar a mente. O tal desconforto que tem que ser compensado.
A luz do sol é banal, tal como a água no chão depois da chuva. Mas um raio de sol nela reflectido de uma forma ligeiramente diferente pode ser o que falta para completar aquela noite de tempestade que a antecedeu e que não deixou dormir. E consoante a prática de quem o vive, assim isso pode resultar num soneto, numa pintura, num requebrar de corpo ou numa curva feita no barro. Seria o que faltava para que a tempestade fizesse sentido.
A este súbito organizar de ideias dispersas e incómodas, que resultam na criação de algo, chamamos de “inspiração”.
Um olhar, um som, um toque, um aroma fazem com que, a troco de quase nada, haja uma vontade quase que incontrolável de materializar ideias, finalmente quase que organizadas.
Curioso será constatar que raramente essa “inspiração” ocorre quando tudo corre rotineiramente na vida de quem a tem. A tristeza, a raiva, a alegria, o amor são, em regra, estados de alma que estão na sua origem.
Olhando para os trabalhos de mestres – pintura, escrita, música, escultura, cinema, fotografia, coreografia – e olhando para as suas biografias, verifica-se que os seus melhores trabalhos aconteceram quando se encontravam num dos dois extremos – o positivo ou o negativo. Sendo produtores habituais, fazendo-o muitas vezes para ganhar a vida, nas alturas de tranquilidade da existência também produziram obra. Mas as que se destacam por mais geniais são, sem dúvida, em momentos de crise ou de êxtase. A tal intranquilidade interior, o não fazer sentido as ideias e os estímulos exteriores, a procura de um equilíbrio.
Não é por acaso que se refere o encontrar de uma solução ou a tal “inspiração” como o “acender de uma luz”, tantas vezes parodiada na banda desenhada. É no momento em que essa “luz” surge que o que rodeia, interior ou exterior, faz sentido. Depois… bem, depois vem todo aquele trabalho, por vezes moroso, por vezes fastidioso, por vezes doloroso mesmo, de materializar o puzzle usando as técnicas que se dominam.
Mas certo é que até que a obra esteja terminada – minutos, horas, semanas – até que o tal equilíbrio esteja reposto, orientado pela tal inspiração, quem o faz não descansa. 
Disse alguém, e que me perdoem pela falta de memória para o seu nome, que uma obra de arte se faz de 5% de inspiração, 5% de expiração e 90% de transpiração. Haverá alguém que o refute?

Texto e imagem: by me