quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O dono do tempo




Tendo conseguido lugar sentado, queria mesmo era acabar o livro que tem viajado comigo. Pequenos ensaios, de John Berger, o ideal para ir lendo de ou para o trabalho.
Mas o petiz a meu lado, ao colo da mãe, estava bem disposto e era conversador. E irradiava sorrisos e boa disposição em todas as caras que o conseguiam ouvir, sentados ou de pé, que a carruagem ia bem cheia. Incluindo aqueles dois homens, de idade já avançada, sentados em frente. Clube de futebol para aqui, trocadilhos e adivinhas para ali, não consegui ler e fui prestando atenção. Afinal, os livros guardam-se mas os ocasionais companheiros de viagem são efémeros. E tão ou mais interessantes.
Os que estavam à minha frente tinham ar modesto, talvez pintores, talvez pedreiros, que as mãos, ainda que escalavradas, não diziam mais que isso. Nem as roupas eram mais eloquentes que o valor de mercado usado.
Ainda que o garoto fosse matando o tempo do trajecto, certo é que a presença de uma outra composição a par e igualmente em trânsito ameaçava-nos de a nossa ficar para trás ao dar-lhe passagem quando as duas linhas passassem a uma só. E, algures lá mais à frente, a camioneta que completaria o regresso a casa, não espera.
A certa altura, o que estava à minha frente olha para o relógio de pulso. E eu, que nada mais tinha para fazer, olhei também. Levado, primeiro, pelo seu movimento de olhar, depois tentando saber que horas seriam e, por fim, gastando bastante tempo para decifrar o mostrador de um relógio de corda que se exibia junto à manga da camisa de flanela aos quadrados.
Que a minha mente ficou confusa quanto baste por não entender os números reduzidos a traços, equidistantes do eixo dos dois ponteiros, um maior que o outro como sempre. Tão confuso que tive que consultar o meu próprio relógio para converter e aferir informações contraditórias.
É que o relógio dele ainda estava pela hora antiga, corrigida no passado domingo.
Mas, mais estranho que isso, o mostrador estava direito para mim ou, por outras palavras, de pernas para o ar para o seu dono. O botão de acertar e dar corda estava virado para o cotovelo e não para mão, ainda que sendo usado no pulso esquerdo.
Espero que o meu olhar de estranheza não tenha sido por demais evidente. Isso e o sorriso que de seguida se me estampou na cara. E que foi ficando.
É que, afinal, não importa mesmo como está o relógio, nem mesmo para que lado possam rodar os ponteiros. Desde que quem o usa o possa saber ler, tudo o resto é indiferente.
Este homem, que não sei onde terá nascido, mas que foi há bastante tempo, e que leva uma vida de trabalho dura por aquilo que me foi dado a ver, atingiu um estádio muito para além do que eu mesmo imaginaria.
O tempo dele é dele e só dele, apesar de patrões, comboios, camionetas e afins.
Como o invejo!

Texto e imagem: by me

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