domingo, 6 de novembro de 2011

"Pincéis em potes"




John Berger, 1996

Um dos seus quadros recentes chama-se “A Enguia”. Mostra o ateliê de um pintor, pincéis em potes, uma mulher alta e magra reclinada nua, e uma enguia numa terrina de água rodeada de desenhos sobre uma mesa. Quando as enguias em terra seca querem escapar do sol ou esconder-se, usam suas caudas como saca-rolhas, fazem um buraco na terra e desaparecem, caudas primeiro. Alguns dos outros quadros dele são de buracos, parecidos com os feitos pelas enguias.
Outro de seus títulos é “O dilúvio”, e em “O Amor Louco”, o mar invade uma biblioteca. Ele é um pintor aquático. Mesmo quando representa o deserto africano, nos deixa conscientes de que um dia, eons ou poucos segundos atrás, a superfície branca era achatada e pulverizada pela água.
Na sua arte, como na terra, uma inundação é a um tempo abundância e calamidade, um parto e uma morte, um começo e um fim.
Em 1995 Miquel Barceló escreveu o seguinte em um dos seus cadernos:

“ Ointar um boi malhado tornou-se importante. Como em outros tempos, mas sempre diferente. Não como os romanos pintavam comida, não como Rembrandt, não como Soutine ou Bacon, não como Beyaus -  de repente a chance de pintar isso tornou-se algo urgente, necessário, essencial: sangue e sacrifício… Mas também funcionaria com uma maçã, com um rosto… É preciso pegar as coisas, uma após a outra, do sufocamento de Berlusconi, e torná-las novas, frescas e limpas, mostrá-las palpitando, ou com a sua própria doce podridão. “

A referência a Berlusconi é eloquente. Todo dia, em todo o mundo, a rede da mídia substitui a realidade por mentiras. Não em primeiro lugar mentiras políticas ou ideológicas (essas vêm mais tarde), mas mentiras visuais, substanciais, sobre o que realmente constitui a vida humana e a vida natural. Todas as mentiras convergem em uma falsidade colossal: a suposição de que a vida em si é uma mercadoria, e que os que conseguem comprar essa mercadoria são por definição os que a merecem! A maior parte de nós sabe que isso é falso, mas muito pouco do que nos é mostrado confirma nossa resistência. Então podemos topar com uma pintura de Barceló.
Imagine, de repente o mundo material substancial (tomates, chuva, pássaros, peixes, enguias, térmites, mães, cachorros, míldio, água salgada) num motim contra a interminável torrente de imagens que mentem a respeito deles, e na qual estão aprisionados! Imagine-os como reacção protestando a sua liberdade em relação a toda a manipulação gramatical, digital e pictórica, imagine uma revolta do representado!
É isso que acontece com essas telas: Elas ouvem a revolta do sólido e do mortal. Antes do dilúvio dos clichés consumistas insubstanciais, e do protesto e que o génio da humanidade se encontra da busca de lucro, eles abrem uma represa para a torrente elementar da vida e da morte.
Propaganda ecológica, porém, não é melhor que qualquer propaganda quando se trata de produzir arte. E assim o segredo dessas pinturas não reside em seu argumento, mas no modo como escutam. Elas escutam o protesto de cada coisa pintada contra ser assim representada, o que significa contra ser recuperada e usada como mentira. Elas escutam e os protestos tornam-se visuais, pois são nervosamente traduzidos em linguagem pictórica.
Deixe-me citar algumas das manobras que os que protestam usam e a arte da pintura interpreta. Há a manobra contra ser enquadrado: as coisas que estão sendo pintadas abandonam o centro e vão para as beiras.
Há a manobra de ser reduzido a uma mancha de cor: a coisa sendo pintada acumula-se num montinho tridimensional, ou encolhe a sua cavidade de modo que se a tela estivesse no assoalho a gente poderia botar uma colher de pé sobre ela.
Há a rejeição da coisa sendo pintada em relação a rótulos baratos: um peixe azul corta-se em nove pedaços e se espalha sobre todo o terreno da pintura.
Há a sabotagem das coisas sendo pintadas contra qualquer coisa suave que finja ser completa: corpos pintados recheiam-se de fibras e cabelos.
E existem as manipulações continuadas daquilo que está sendo pintado contra qualquer espaço ou perspectiva uniforme: coisas tornam-se miragem, um céu sendo mexido como sopa, ou superfícies de terra debaixo da chuva parecem tão inconsistentes quanto algo lambuzado em uma janela.
Nada que ele pinta quer desistir de sua alma e tornar-se simplesmente imagem. E ele prossegue com isso. “Eu preciso ter a meu lado a coisa que estou pintando, sobre o quadro, cheirando e manipulando-a. E depois comendo-a. Usando cascas de melancia como espátulas quando pinto melancias, e assim misturando o seu suco com a tinta.”
Tudo isto poderia levar a incoerência, o risco é considerável, e ele aprecia o risco. Mas o trabalho permanece coerente. Não posso explicar por que, como não consigo explicar por que um enxame de abelhas sempre tem um tipo de simetria.
Penso em Chaim Soutine, não para fazer uma comparação de história da arte, mas porque, imaginando os dois pintores lado a lado, vejo claramente o que mudou durante os últimos cinquenta anos. Soutine também escutava intensamente à vontade daquilo que estava pintando, e como resultado a sua arte é cheia de patos e sofrimento. Em Barceló não há patos; há simplesmente a vontade do fervilhante, pululante material do universo a que resistir! E nessa resistência há esperança. Uma esperança que tentamos desesperadamente aprender a reconhecer.

Texto: by John Berger, in “Bolsões de reistência”, editorial GG
Imagem: by me

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