John Berger, 1996
Um dos seus
quadros recentes chama-se “A Enguia”. Mostra o ateliê de um pintor, pincéis em
potes, uma mulher alta e magra reclinada nua, e uma enguia numa terrina de água
rodeada de desenhos sobre uma mesa. Quando as enguias em terra seca querem
escapar do sol ou esconder-se, usam suas caudas como saca-rolhas, fazem um
buraco na terra e desaparecem, caudas primeiro. Alguns dos outros quadros dele
são de buracos, parecidos com os feitos pelas enguias.
Outro de seus títulos
é “O dilúvio”, e em “O Amor Louco”, o mar invade uma biblioteca. Ele é um
pintor aquático. Mesmo quando representa o deserto africano, nos deixa
conscientes de que um dia, eons ou poucos segundos atrás, a superfície branca era
achatada e pulverizada pela água.
Na sua arte, como
na terra, uma inundação é a um tempo abundância e calamidade, um parto e uma
morte, um começo e um fim.
Em 1995 Miquel
Barceló escreveu o seguinte em um dos seus cadernos:
“ Ointar um boi
malhado tornou-se importante. Como em outros tempos, mas sempre diferente. Não
como os romanos pintavam comida, não como Rembrandt, não como Soutine ou Bacon,
não como Beyaus - de repente a chance de
pintar isso tornou-se algo urgente, necessário, essencial: sangue e sacrifício…
Mas também funcionaria com uma maçã, com um rosto… É preciso pegar as coisas,
uma após a outra, do sufocamento de Berlusconi, e torná-las novas, frescas e
limpas, mostrá-las palpitando, ou com a sua própria doce podridão. “
A referência a
Berlusconi é eloquente. Todo dia, em todo o mundo, a rede da mídia substitui a
realidade por mentiras. Não em primeiro lugar mentiras políticas ou ideológicas
(essas vêm mais tarde), mas mentiras visuais, substanciais, sobre o que
realmente constitui a vida humana e a vida natural. Todas as mentiras convergem
em uma falsidade colossal: a suposição de que a vida em si é uma mercadoria, e
que os que conseguem comprar essa mercadoria são por definição os que a
merecem! A maior parte de nós sabe que isso é falso, mas muito pouco do que nos
é mostrado confirma nossa resistência. Então podemos topar com uma pintura de
Barceló.
Imagine, de
repente o mundo material substancial (tomates, chuva, pássaros, peixes,
enguias, térmites, mães, cachorros, míldio, água salgada) num motim contra a
interminável torrente de imagens que mentem a respeito deles, e na qual estão
aprisionados! Imagine-os como reacção protestando a sua liberdade em relação a
toda a manipulação gramatical, digital e pictórica, imagine uma revolta do
representado!
É isso que
acontece com essas telas: Elas ouvem a revolta do sólido e do mortal. Antes do
dilúvio dos clichés consumistas insubstanciais, e do protesto e que o génio da
humanidade se encontra da busca de lucro, eles abrem uma represa para a
torrente elementar da vida e da morte.
Propaganda ecológica,
porém, não é melhor que qualquer propaganda quando se trata de produzir arte. E
assim o segredo dessas pinturas não reside em seu argumento, mas no modo como
escutam. Elas escutam o protesto de cada coisa pintada contra ser assim
representada, o que significa contra ser recuperada e usada como mentira. Elas escutam
e os protestos tornam-se visuais, pois são nervosamente traduzidos em linguagem
pictórica.
Deixe-me citar
algumas das manobras que os que protestam usam e a arte da pintura interpreta.
Há a manobra contra ser enquadrado: as coisas que estão sendo pintadas
abandonam o centro e vão para as beiras.
Há a manobra de
ser reduzido a uma mancha de cor: a coisa sendo pintada acumula-se num montinho
tridimensional, ou encolhe a sua cavidade de modo que se a tela estivesse no
assoalho a gente poderia botar uma colher de pé sobre ela.
Há a rejeição da
coisa sendo pintada em relação a rótulos baratos: um peixe azul corta-se em
nove pedaços e se espalha sobre todo o terreno da pintura.
Há a sabotagem das
coisas sendo pintadas contra qualquer coisa suave que finja ser completa:
corpos pintados recheiam-se de fibras e cabelos.
E existem as
manipulações continuadas daquilo que está sendo pintado contra qualquer espaço
ou perspectiva uniforme: coisas tornam-se miragem, um céu sendo mexido como
sopa, ou superfícies de terra debaixo da chuva parecem tão inconsistentes
quanto algo lambuzado em uma janela.
Nada que ele pinta
quer desistir de sua alma e tornar-se simplesmente imagem. E ele prossegue com
isso. “Eu preciso ter a meu lado a coisa que estou pintando, sobre o quadro,
cheirando e manipulando-a. E depois comendo-a. Usando cascas de melancia como
espátulas quando pinto melancias, e assim misturando o seu suco com a tinta.”
Tudo isto poderia
levar a incoerência, o risco é considerável, e ele aprecia o risco. Mas o
trabalho permanece coerente. Não posso explicar por que, como não consigo
explicar por que um enxame de abelhas sempre tem um tipo de simetria.
Penso em Chaim
Soutine, não para fazer uma comparação de história da arte, mas porque,
imaginando os dois pintores lado a lado, vejo claramente o que mudou durante os
últimos cinquenta anos. Soutine também escutava intensamente à vontade daquilo
que estava pintando, e como resultado a sua arte é cheia de patos e sofrimento.
Em Barceló não há patos; há simplesmente a vontade do fervilhante, pululante
material do universo a que resistir! E nessa resistência há esperança. Uma
esperança que tentamos desesperadamente aprender a reconhecer.
Texto: by John
Berger, in “Bolsões de reistência”, editorial GG
Imagem: by me
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