sábado, 5 de abril de 2008

Sem ilustração

Por vezes tropeçamos sem querer em pedaços deliciosos de escrita. Poderão não ser a mais fantástica literatura, mas o seu conteúdo enche-nos a medida.
Eis um pequeno capítulo (todo o livro está feito com pequenos capítulos) da obra “Vertigem americana” que fizeram o favor de me emprestar. Escrito por Bernard-Henry Levy, é uma espécie de “livro de viagens de quem se propôs atravessar a américa e sobre isso escrever.

A desforra do homemzinho
Não consegue dizer «stem cells», células estaminais, sem se enga­nar. Tropeça nos números e nas siglas, a começar pelo da National Urban League, a organização negra de defesa dos direitos cívicos de que é hóspede. Prende os pés na taxa de (desemprego ou no número de professores em Ohio. Há, no olhar, na excessiva proximidade dos olhos, aquele traço imperceptivelmente aflito que têm as crianças dis­léxicas que sentem que vão enganar-se, que lhes vão ralhar por isso, mas que o comboio está em marcha e que ia não têm maneira de o parar. Franze o sobrolho com um ar preocupado quando fala dos bair­ros pobres de Detroit. Assume um ar de falso duro quando aborda a questão do Iraque. Quando pronuncia a palavra «América>> ou «For­ças Armadas», sobressalta-se, ou melhor, fica hirto como ao som de um invisível relâmpago. Penso em tudo o que se pode dizer sobre a ambivalência das suas relações com o primeiro presidente Bush. Penso na discussão que tivemos, há dias, com Alan Wolfe, sobre a questão de saber se fez a guerra ao Iraque para o vingar ( Saddam humilhou­-o, eu humilharei Saddam) ou para lhe dirigir um grande desafio edipiano (fazer o que ele não conseguiu fazer - obedecer a outro pai, mais alto do que o seu próprio pai e que lhe aconselharia os gestos que não soube inspirar ao seu pai). A verdade é que este homem é uma criança. Quer esteja na dependência do pai, da mãe, da mulher, de Deus, em mim tem o efeito, nessa manhã, de uma daquelas crian­ças humilhadas cuja maldade, como Bernanos bem mostrou, é filha da sua timidez e a sua timidez do seu medo. Dito isto, atenção. Este medroso é um malandro. Esta criança é uma criança espertalhona. Ele tem a habilidade de chamar Marc Morial, o presidente da League, pelo seu primeiro nome e de começar o seu discurso, imediatamente a seguir à oração, por uma saudação aos Detroit Pistons, a equipa local de basquetebol que, como a maioria das equipas americanas de bas­quetebol, é composta por um grande número de jogadores blacks. Têm o talento de ir encadeando graçolas e, como um comediante que aquece uma sala reticente, ser o primeiro a rir, ruidosamente, das suas próprias piadas.
Tem a inteligência, ao interpelá-los, também a eles pelo primeiro nome, e ao lançar ao primeiro que «não precisa de dizer que sim com a cabeça quando ele fala» e, ao segundo, que toda a gente na sala sabe que perdeu três batalhas para a investidura do Partido Democrata, que «é duro, como sabe, ser candidato à Presidência», tem a inteli­gência de desmontar, na primeira fila, a hostilidade desses dois lide­res negros que são os reverendos lesse Jackson e Al Sharpton. A Natio­oal Urban League é uma organização tendencialmente radical. Detroit é uma cidade onde há, e ele sabe, «um grande trabalho a fazer» para ganhar os corações de uma comunidade que, há quatro anos, votou 94% em Al Gore. Está em terreno inimigo. As duas mil pessoas pre­,cntes vieram ver o animal, mas não têm simpatia por ele. No entanto, a coisas marcham. As suas tiradas sobre o «american dream» e sobre o «mall business», a lata com que ataca, como se não estivesse na Casa Branca há quatro anos, o poder dos ministérios e de Washington, a sua visão da América como uma empresa em que os americanos seriam todos accionistas e que estaria nas mãos de cada um a possibilidade de enriquecer mais e sempre, o seu compromisso sobre o Sudão e sobre o genocídio, sim, não receia dizer genocídio e ele fará que puder, se for eleito, para tratar os responsáveis de Cartum por este genocídio como exige a lei americana, tudo isso acaba por fun­enar. Lata e ingenuidade. Habilidade táctica ao mesmo tempo que na certa candura. À saída, um delegado na balbúrdia das rádios e tevisões que recolhem as impressões dos militantes: «O filho de ... deu-nos a volta...» Um outro: «Muito forte, a Jogada do Sudão!» o que me espanta é isso. Mas é também, muito mais estranho, ar de bom rapaz desenrascado> um tanto malandreco, obri­grado a forçar o tom para fazer de candidato e presidente. Imagino-o, no seu Texas natal, rapazinho com problemas, aluno mediano, amigo da pândega, dando preocupações aos pais. Imagino-o na Philips Aca­demy, depois em Yale, tal como mo descrevia, no outro dia, não sem ferocidade, o antigo conselheiro da Casa Branca, autor de The Clin­ton Wars, Sidnev Blumenthal - imagino-o a arrastar a sua má repu­tação de menino de cunhas, desprezado pelos filhos de aristocratas da Costa Leste que o acham prestável mas um tanto rude. Vejo-o depois, vejo-o tão bem, narciso de província e diletante contrariado, mau homem de negócios, filho de papá prolongado, que a família, a cada um dos seus fracassos, vem salvar In extremïs. Quando é que a mecâ­nica se inverteu? Como? Sob a influência de quem, ou de quê, se ope­rou a metamorfose e o amante de automóveis barulhentos e de copos entre amigos, o falhado, o tipo porreiro, sem qualquer espécie de pos­sibilidade de escapar à sua formidável mediocridade, se transformou nesta máquina, capaz de ganhar uma vez, depois duas vezes, a compe­tição mais difícil da América e do Planeta? Há homens - Clinton - so­bre os quais temos a sensação de que nasceram para ser presidentes. Outros - Kennedy - que foram formados, educados, para o ser. Com ele é ao contrário. Nascido para perder. Educado para não ganhar. E para esta reviravolta, para esta graça tardia que não teve tempo de ficar impressa no seu rosto, ninguém, no fundo, tem uma explicação. Excepto ele. Precisamente quando fala de graça. E de renascimento. Quem sabe?

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