quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Trocos e estratégias




Vem em tudo quanto é comunicação social: os grandes grupos de supermercados decidiram (ou estão em vias disso) deixar de aceitar os meios de pagamento electrónico para facturas abaixo de vinte euros.
Sobre isso já se disse muita coisa: falaram os grupos, falaram os bancos, falou quem gere o sistema de cartões (débito e crédito), ouviu-se o povo, ouviram-se organizações de defesa de consumidores…
Excepção feita, naturalmente, a quem tomou a decisão, todos estão contra. Por este ou por aquele motivo.
Mas eu gostaria de deixar aqui uma ou duas reflexões, em paralelo com os comentários e doutas opiniões.

Em primeiro lugar, aquilo que corresponde ao valor que possuímos e nos permite fazer trocas é dinheiro. Em papel ou moeda, mas dinheiro. Todos os outros sistemas são substitutos, condicionados ao negócio em causa (veja-se a exigência de cheques visados, por exemplo).
Mais ainda, e é coisa que a maioria não considera, o uso de qualquer sistema de pagamento que não o dinheiro vivo implica um contrato com uma instituição bancária, enquanto que dinheiro não implica coisa nenhuma excepto a sua posse.
Em segundo lugar, não creio que o que esteja em causa, nesta recusa de aceitar cartões para compras abaixo de um certo valor, seja as tais “taxas” que serão cobradas pelas entidades gestoras dos cartões. Estou mesmo convencido que o facto de ficarem os supermercados com mais dinheiro em caixa no final de um dia de comércio, em vez de imediatamente transferido para as respectivas contas, e considerando os valores assim geridos, será mais dispendioso que as tais taxas.
Note-se que só os pequenos comerciantes, que têm pouca capacidade negocial para com bancos e gestores de cartões, divulgam quanto lhes é cobrado por cada transacção. Os grandes grupos económicos, clientes muito queridos e amados de quem negoceia dinheiro nas suas diversas formas, não dizem quanto pagam nem os acordos que têm com bancos e afins. Afinal, o segredo é a alma do negócio.
Quer-me parecer – e desculpem se pareço céptico – que os motivos são outros, bem mais mesquinhos e de raiz mercantilista.

1 - O comum do cidadão, ao entrar numa loja de onde trará vários produtos, passará a pensar quanto irão custar. Se o preço do conjunto for bem abaixo do tal limite de vinte euros, pois usará dinheiro vivo. Agora se for perto desse valor, digamos que 18,5 euros, provavelmente trará algo mais para que o valor total ultrapasse o tal limite imposto.
Dito de outra forma, o consumidor é levado, para sua comodidade, a gastar mais dinheiro nas suas compras. E não se apercebe que está a ser “forçado” a gastar mais dinheiro.
Para quem reverte o lucro do aumento do consumo? Não será para os tais gestores de cartões, que continuam a cobrar as tais taxas, nem para os bancos, de onde não sai, usado desta forma, nenhum valor. Apenas para quem teve a ideia brilhante e recusar compras com cartões abaixo de vinte euros.

2 - Mas, vistas as coisas de outra forma:
É óbvio que os bancos não gostam deste ideia. Nem os gestores de cartões.
Que se os cidadãos passarem a usar dinheiro vivo – moedas e notas -, se deixarem de usar o dinheiro às pinguinhas e se tiverem todo o pouco que recebem depois de impostos, este não está nos bancos, não podem os poucos euros de cada um estarem a ser emprestados e renderem juros. Aos bancos, muito naturalmente. E se o valor correspondente não circular nas contas de quem gere o negócio de cartões de débito e crédito, lá se lhe vai o lucro da actividade.

3 - Do ponto de vista do cidadão comum, que tem o seu dinheiro no banco e usa cartões para as suas despesas, também esta medida é proveitosa.
Com o uso de dinheiro falso (cartões de débito ou crédito) o valor que ele tem torna-se diminuto para os mais incautos ou desorganizados. Do ponto de vista prático, entre gastar 15,4 euros ou 15,7 euros é praticamente o mesmo, se não tiver que contar, factualmente, as notas e moedas. Agora tendo que as contar, recebendo o troco e vendo como o peso e volume diminui… cada um controla-se mais facilmente nas despesas que faz, gastando menos ou mais racionalmente.

Não acredito que esta medida agora anunciada se baseie na questão das despesas mas antes como forma de aumentar a facturação.
Agora, sendo certo que todas as decisões têm efeitos secundários, mesmo que não previstos ou desejados, talvez que todos nós ganhemos com esta medida, que só peca por ter um limite muito baixo.

Nota extra: nunca pago bens usando cartões de débito. Pago em dinheiro vivo, mesmo que fiquem a olhar para mim quando o faço. Não por nenhum dos motivos acima descritos, mas por outros mais abrangentes.
Quanto ao resto, não simpatizo com quem lucra em gerir o resultado do trabalho dos outros.
Visto de outra forma: do trabalho de um cavador, ganha o patrão ou empregador, que fica com as chamadas “mais valias” do que ele cava; ganha o estado, através dos impostos que cobra e, dos quais, cada vez o cavador vê menos resultados úteis; ganham os bancos, que o já magro salário passa por eles e que cobram para que o cavador tenha um cartão que o faz sentir rico sem o ser.
Em jeito de remate: estaríamos – portugueses ou não – na chamada “crise” em que estamos se no lugar de dinheiro virtual apenas se usasse dinheiro real?


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