Eu e ela já nos
conhecemos há muito. Há mais de quarenta anos. Temo-nos visto ocasionalmente,
aqui e ali, já nos namorámos de muito perto, já nos olhamos nos olhos com uma
cumplicidade invulgar. Mas nunca atingimos o orgasmo final!
Talvez por isso
mesmo, não temo a morte.
Somos velhos
amigos e tenho por certo que um dia nos abraçaremos final e definitivamente. A
única questão em aberto é saber quem dará o primeiro passo. Mas isso se verá
com o tempo.
Esta cumplicidade,
este não temor, faz-me não chorar os mortos. Não será só por isso, mas é a
tónica principal. Não receio, nem por mim nem pelos outros, aquilo que conheço
tão bem quanto é possível conhecer na condição de ser vivo.
Mas há mais que me
leva a não chorar os mortos. A saber:
Entendo que isto
que aqui vivemos não é, nem de longe nem de perto, o que considero por
aceitável. Destruímos, destruímo-nos, reina o ódio, a inveja, a violência, a
desigualdade.
E se esta má forma
de existir não a quero para mim, seria eu o pior dos seres vivos se a desejasse
para os outros. Seria querer-lhes mal. Donde, porquê lamentar a saída de alguém
de um lugar ou existência que entendo por muito negativo e mau?
Se considerarmos
uma atitude científica, a morte será o fim. O fim total e absoluto, um ponto
final em tudo. Portanto, e apesar de tudo, não se lamenta o fim de uma má
existência, contestada e sofrida.
Se considerarmos
uma atitude de crente, e presumindo a existência de uma alma que viverá para
qualquer outra coisa ou estado – o que quer que seja – temos mais é que desejar
o acesso a esse destino alternativo, que dificilmente será pior que este.
Assim, Aleluia e boa sorte nessa viagem.
Podemos ainda
considerar o choro ou lamento por se sentir a falta daquele que morre. E se
isto não é uma atitude verdadeiramente egoísta, não sei o que o seja. Centrar o
universo e sentimentos em nós próprios, ignorando os dos outros.
E este sentir a
falta de alguém também é compatível com o que se sentiria se esse alguém
partisse sem regresso para um ponto distante do globo, para um mosteiro com
voto de reclusão ou para um planeta aqui ao lado. Em qualquer dos casos, o
contacto seria nulo ou quase e a sensação de falta seria real, justificando-se
o choro ou o luto.
Assim, eu não
choro os mortos. Para onde quer que vão – se é que vão – não será pior que isto
e terei mais é que me alegrar com a sua partida.
Choro e lamento,
antes sim, os vivos. Pelo sofrimento inútil que têm, físico ou psicológico,
pela minha própria incapacidade de anular ou mesmo minorar esses sofrimentos,
por saber que, em partindo estes, outros virão viver as mesmas circunstâncias e
dores.
Por tudo sito, e
mais umas minudências que agora não vêm ao caso, em chegando o dia de finados,
lá para Novembro, irei fotografar o que quer que seja que não os que choram ou
honram os mortos.
Que se eu mesmo
faço questão de ser respeitado enquanto ser vivo, o mesmo tenho que fazer em
relação aos demais. E avançar com uma câmara voyeirista pela intimidade que é o
chorar ou honrar os que foram não é, propriamente, respeitar os vivos.
Procuro a estética
e o significado na fotografia que faço. Mas não a qualquer preço!
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário