quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O preço da fotografia




Eu e ela já nos conhecemos há muito. Há mais de quarenta anos. Temo-nos visto ocasionalmente, aqui e ali, já nos namorámos de muito perto, já nos olhamos nos olhos com uma cumplicidade invulgar. Mas nunca atingimos o orgasmo final!
Talvez por isso mesmo, não temo a morte.
Somos velhos amigos e tenho por certo que um dia nos abraçaremos final e definitivamente. A única questão em aberto é saber quem dará o primeiro passo. Mas isso se verá com o tempo.
Esta cumplicidade, este não temor, faz-me não chorar os mortos. Não será só por isso, mas é a tónica principal. Não receio, nem por mim nem pelos outros, aquilo que conheço tão bem quanto é possível conhecer na condição de ser vivo.
Mas há mais que me leva a não chorar os mortos. A saber:

Entendo que isto que aqui vivemos não é, nem de longe nem de perto, o que considero por aceitável. Destruímos, destruímo-nos, reina o ódio, a inveja, a violência, a desigualdade.
E se esta má forma de existir não a quero para mim, seria eu o pior dos seres vivos se a desejasse para os outros. Seria querer-lhes mal. Donde, porquê lamentar a saída de alguém de um lugar ou existência que entendo por muito negativo e mau?

Se considerarmos uma atitude científica, a morte será o fim. O fim total e absoluto, um ponto final em tudo. Portanto, e apesar de tudo, não se lamenta o fim de uma má existência, contestada e sofrida.

Se considerarmos uma atitude de crente, e presumindo a existência de uma alma que viverá para qualquer outra coisa ou estado – o que quer que seja – temos mais é que desejar o acesso a esse destino alternativo, que dificilmente será pior que este. Assim, Aleluia e boa sorte nessa viagem.

Podemos ainda considerar o choro ou lamento por se sentir a falta daquele que morre. E se isto não é uma atitude verdadeiramente egoísta, não sei o que o seja. Centrar o universo e sentimentos em nós próprios, ignorando os dos outros.
E este sentir a falta de alguém também é compatível com o que se sentiria se esse alguém partisse sem regresso para um ponto distante do globo, para um mosteiro com voto de reclusão ou para um planeta aqui ao lado. Em qualquer dos casos, o contacto seria nulo ou quase e a sensação de falta seria real, justificando-se o choro ou o luto.

Assim, eu não choro os mortos. Para onde quer que vão – se é que vão – não será pior que isto e terei mais é que me alegrar com a sua partida.
Choro e lamento, antes sim, os vivos. Pelo sofrimento inútil que têm, físico ou psicológico, pela minha própria incapacidade de anular ou mesmo minorar esses sofrimentos, por saber que, em partindo estes, outros virão viver as mesmas circunstâncias e dores.

Por tudo sito, e mais umas minudências que agora não vêm ao caso, em chegando o dia de finados, lá para Novembro, irei fotografar o que quer que seja que não os que choram ou honram os mortos.
Que se eu mesmo faço questão de ser respeitado enquanto ser vivo, o mesmo tenho que fazer em relação aos demais. E avançar com uma câmara voyeirista pela intimidade que é o chorar ou honrar os que foram não é, propriamente, respeitar os vivos.
Procuro a estética e o significado na fotografia que faço. Mas não a qualquer preço!

By me

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