quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Destinos




Nos comboios da linha de Sintra, Lisboa, os bancos são geralmente verdes. Uma espécie de veludo de cor base verde com um desenho repetido do logótipo da CP. Nas carruagens não motorizadas são 48 os lugares sentados.
Na coxia e na janela, frente a frente, em grupos de três nos topos, há de tudo. E cada um tem o seu lugar preferido, função da comodidade, do acesso à porta, isolamento, de frente ou de costas para o trajecto…
Mas há oito lugares que são vermelhos. Do mesmo tecido e padrão dos demais mas de cor vermelha. São desta cor para assinalar que se trata de lugares prioritários ou reservados a portadores de deficiência, grávidas e acompanhantes de crianças de colo.
Para já, lamento que haja necessidade de haver lugares reservados. Cada viajante deveria ter a consciência de quem com ele viaja e ceder o lugar a quem dele necessite efectivamente, sem que tenha que haver regras para o definir!
Talvez num futuro não muito distante isto possa vir a ser verdade.
Mas o que é patusco, verdadeiramente curioso, é a cor escolhida.
Nos códigos ocidentais, mas não só, a cor vermelha foi eleita como a cor do perigo, da proibição, do mal e do pecado.
A sinalização para viaturas ou pedestres assim o indica, quer se trate de sinais passivos ou activos.
Ou, indo mais longe, a lanterna vermelha que, pendurada sobre uma porta, indicava um bordel, uma casa de pecado.
Mas o código de um assento vermelho entre outros de cores diversas indica genericamente que é proibido lá sentar, excepto alguns em particular.

Há uns tempos, já depois do anoitecer, viajavam nesses mesmos dois bancos, um homem e uma mulher. Bem na minha frente. Suponho que fossem Cabo-Verdianos, já que falavam entre si Crioulo.
É uma língua estranha para um português, já que usa termos lusos e outros de origem bem distinta.
Da conversa deles apercebi-me apenas de alguns pedaços soltos, cujo resultado seria qualquer coisa como isto:
Argumentava o homem que a reserva ou proibição de sentar naqueles bancos vermelhos só se aplicava nas horas normais de expediente.
Segundo ele, só nesse período é que os portadores de deficiência, grávidas ou acompanhantes de crianças de colo tinham forçosamente que viajar. Fora desse horário seriam iguais a todos os outros, não havendo lugar a qualquer reserva.
Junto com as gargalhadas surdas que me estremeciam, um outro sentimento me invadiu:
Quebrar um dos vidros assinalados como saída de emergência e fazê-lo sair por lá com o comboio em andamento!
É uma urgência, uma necessidade imperiosa que este cavalheiro, e outros como ele, entendam que a sociedade se compõe de indivíduos, todos diferentes na língua, na cor, na mobilidade, e noutras características individuais. Tal como ele. E que compete ao conjunto atender às necessidades específicas de cada um.
Talvez depois de uma saída intempestiva ele mesmo se transformasse num portador de deficiência e entendesse que ela não escolhe horas nem locais: está sempre!

Mas contive-me. Nem gargalhei nem o vidro ou os seus dentes se partiram.
Com grande pena do pedaço de rebelde que há em mim.

By me

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