domingo, 15 de julho de 2012

Modos de ver




 “(…)
Uma imagem é uma vista que foi recriada ou reproduzida.

É uma aparência, ou um conjunto de aparências, que foi isolada do local e do tempo em que primeiro se deu o seu aparecimento, e conservada - por alguns momentos ou por uns séculos.

Todas as imagens corporizam um modo de ver. Mesmo uma fotografia. As fotografias não são, como muitas vezes se pensa, um mero registo mecânico. Sempre que olhamos uma fotografia tomamos consciência, mesmo que vagamente, de que o fotógrafo seleccionou aquela vista de entre uma infinidade de outras vistas possíveis. Isto é verdade mesmo para o mais banal instantâneo de família. O modo de ver do fotógrafo reflecte-se na sua escolha do tema. O modo de ver do pintor reconstitui-se através das marcas que deixa na tela ou no papel. Todavia, embora todas as imagens corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa apreciação de uma imagem dependem também do nosso próprio modo de ver.

(Por exemplo, Sheila pode ser uma entre vinte pessoas; mas, por motivos pessoais, só temos olhos para ela.)

As imagens foram feitas, de princípio, para evocar a aparência de algo ausente. A pouco e pouco, porém, tornou-se evidente que uma imagem podia sobreviver àquilo que representava; nesse caso, mostrava como algo ou alguém tinham sido - e, consequentemente, como o tema havia sido visto por outras pessoas. Mais tarde ainda, a visão específica do fazedor de imagens foi também reconhecida como parte integrante do registo. A imagem tornou-se um registo de como X tinha visto Y.

Constituiu isto o resultado de uma crescente tomada de consciência da individualidade, acompanhada de uma crescente consciência da história. Seria ousado pretender datar com rigor este último avanço. No entanto, pode afirmar-se com certeza que esta consciência existe na Europa desde o início do Renascimento. Nenhuma outra espécie de vestígio ou de texto do passado nos pode dar um testemunho tão directo sobre o mundo que rodeou outras pessoas, noutros tempos. Sob este aspecto, as imagens são mais rigorosas e mais ricas que a literatura. Esta afirmação não nega a qualidade expressiva ou imaginativa da arte, como se a considerássemos uma mera prova documental; quanto mais imaginativa é a obra, mais profundamente nos permite compartilhar da experiência que o artista teve do visível.
Ainda assim, quando uma imagem é apresentada como obra de arte, o modo como as pessoas olham para ela é condicionado por toda uma série de pressupostos adquiridos sobre a arte. Pressupostos que se ligam a:

Beleza
Verdade
Génio
Civilização
Forma
Estatuto Social
Gosto
etc.

Muitos destes pressupostos não se encontram já ajustados ao mundo tal como ele é (o "mundo tal como ele é" é mais do que um puro facto objectivo: inclui também a consciência). Em desacordo com o presente, estes pressupostos obscurecem o passado. Mistificam, em vez de clarificar. O passado nunca está pronto a ser descoberto, reconhecido, exactamente como foi. A história reconstitui sempre uma relação entre um presente e o seu passado. Por consequência, o medo do presente conduz à mistificação do passado. O passado não serve para se viver nele; é uma mina de conclusões que utilizamos para agir. A mistificação do passado arrasta consigo uma perda dupla: as obras de arte tornam-se desnecessariamente remotas; e o passado dá-nos menos conclusões a completar com a acção.

Quando "vemos" uma paisagem, situamo-nos nela. Se "víssemos" a arte do passado, situar-nos-íamos na história. Quando nos impedem de a ver, estamos a ser privados da história, que nos pertence. A quem lucra esta privação? Ao fim e ao cabo, a arte do passado vem sendo mistificada porque uma minoria privilegiada se esforça por inventar uma história que possa justificar retrospectivamente o papel das classes dirigentes e porque tal justificação já não faz sentido em termos modernos. Por isso, inevitavelmente, mistifica.

(…)

Excerto da obra “Modos de ver” de John Berger.
Editado por “Edições 70”, na colecção “Arte e comunicação”, Lisboa, 1999

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