sábado, 21 de julho de 2012

Epitáfio IV




Quando eu conheci esta paragem, só havia dois números inscritos nela: 10 e 31.
Ambas oriundas de Moscavide, seguia a primeira para a Praça do Chile, a segunda para o Hospital de Santa Maria. Cruzavam parte do bairro da Encarnação, atravessavam os Olivais Sul, seguiam até ao Relógio (que era realmente grande) e aí divergiam para os seus destinos.
Por estranho que possa parecer, a segunda circular não existia e ao fim da tarde a Av. Do Brasil engarrafava até ao Marquês. Outros tempos.
As vias multiplicaram-se de então para cá. E os autocarros baixaram em altura, aumentaram em comprimento, mudaram de cor e mudaram de rotas. Alguns mudaram tanto, mas tanto mesmo, que deixaram de existir, como a carreira 10.
Outras carreiras foram entretanto reajustadas nos seus percursos. A 21, deixou de cruzar os Olivais pelo antigo Pão de Açúcar e a passou a descer esta avenida, a Av. Cidade de Lourenço Marques. E a parar nas mesmas paragens onde eu tomava o autocarro a caminho da escola e do liceu.
O que então eu via enquanto esperava pouco tinha de comum com isto: não havia abrigo, com o que isso implicava de chuva ou sol, e aquelas mesmas árvores que agora vemos eram mais pequenas que os autocarros. Em boa verdade, muitas delas eram mais pequenas que eu mesmo, mas cresci eu e cresceram elas, com vantagem para os vegetais.
De então e daqui não guardo fotografias. Ainda que possuísse uma câmara, oferta de Natal, fotografar era muito caro e raramente havia dinheiro para isso.
Em compensação, esta fotografia, digital e feita com os dedos e com a memória, foi registada no último dia possível: ontem. Que hoje esta placa indicadora já não deverá ostentar o número 21.
Tal como alguns dos meus vizinhos de então, da minha idade ou da geração anterior, já faleceram, também ontem morreu a carreira 21, vítima das modernidades e evoluções. No caso, das novas estações de metro.
Claro que aqui, nesta avenida ladeada de arvoredo de um lado e prédios do outro, não há bocas de metro. Talvez que, aqui, não faça falta nem metro nem autocarro, se alinharmos o nosso pensamento por aquele de quem decidiu o fim da carreira.
Mas, em passeando por aqui, constato que tal como eu envelheci e as árvores cresceram, também boa parte da população envelheceu, havendo agora muitas mais bengalas e muletas que nos meus tempos de catraio estudante.
A carreira 21 morreu, executada por decisores de gabinete que mais importância darão aos custos que aos benefícios sociais. Tal como morrerão parte dos habitantes deste e de outros bairros atravessados por ela. E tal como também morrerão, de pé, estas árvores. E eu mesmo, p’la certa.
Sobreviverá, talvez, o asfalto que ela percorria. E, garantidamente, a memória.

By me

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