quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Debaixo dos pés




Isto que aqui vedes, em baixo e à frente do meu pé é o que resta de um assassinato cultural.
Não se trata de nenhuma obra-prima de um qualquer mestre conhecido. Da pintura, escultura, arquitectura ou outra.
Trata-se, antes sim, do que aconteceu nesta calçada, num passeio lisboeta.
Aqui foi ela levantada para uma intervenção no subsolo. Um cano, um cabo, uma ruptura ou substituição. Uma daquelas que obrigam a escavar um buraco e tratar lá em baixo do que tem que ser tratado. Muitas vezes efectuado por trabalhadores não especializados, a quem é dito, sem mais, que há um buraco para ser aberto, com tanto de largo, comprido e profundo. E a quem, no final na intervenção, é dito para taparem o dito buraco, colocando a terra retirada e repondo a calçada como estava. E é neste “como estava” que o problema se levanta.
É que neste mesmo lugar, mais ou menos um metro de memória, estava algo que só olhos atentos ou memórias cheias poderiam reconhecer e proteger: a assinatura dos mestres calceteiros que assentaram a primeira calçada neste lugar. Tinham eles o hábito de, no fim do trabalho, em jeito de remate, deixar um desenho (e cada um tinha o seu bem personalizado), indicando  assim quem havia feito o trabalho.
As mais das vezes, eram desenhos singelos, pedra branca com pedra branca, sendo o desenho/assinatura formado pelos interstícios entre elas. Uma flor, um coração, uma figura geométrica polígona… cada um tinha a sua.
Mas o levantar da calçada, quantas vezes em moldes de urgência, muitas outras em moldes de displicência, fez levantar estas assinaturas que, muito naturalmente, se não estavam identificadas, se não foram preservadas, não foram repostas.
Sei de três locais na cidade onde existiam. Este, na av. Rio de Janeiro, esquina do estádio do INATEL, era o último que sabia resistir. Cedeu perante a voragem dos tempos modernos, com as memórias reservadas aos computadores e as velocidades de trabalho medidas em custo homem/hora e orçamentado.
Sei também que no meu arquivo em película, existe a fotografia destas assinaturas assim destruídas. Mas nem desconfio onde esteja. Espero que o departamento de conservação de arruamentos da Câmara Municipal de Lisboa também as tenha, bem como a de outros artífices da calçada, mestres no seu ofício, por cá menosprezados mas muito bem pagos onde o seu trabalho é considerado: lá fora.
Quando andares pelas ruas de Lisboa (e de outras cidades do país), olhai por onde pisais! Não apenas para que eviteis o que sempre haveis evitado mas, e principalmente, para que vejais o que a mestria de alguns colocou a vossos pés: os desenhos e as assinaturas.

Texto e imagem: by me

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