Isto que aqui
vedes, em baixo e à frente do meu pé é o que resta de um assassinato cultural.
Não se trata de
nenhuma obra-prima de um qualquer mestre conhecido. Da pintura, escultura,
arquitectura ou outra.
Trata-se, antes
sim, do que aconteceu nesta calçada, num passeio lisboeta.
Aqui foi ela
levantada para uma intervenção no subsolo. Um cano, um cabo, uma ruptura ou
substituição. Uma daquelas que obrigam a escavar um buraco e tratar lá em baixo
do que tem que ser tratado. Muitas vezes efectuado por trabalhadores não
especializados, a quem é dito, sem mais, que há um buraco para ser aberto, com
tanto de largo, comprido e profundo. E a quem, no final na intervenção, é dito
para taparem o dito buraco, colocando a terra retirada e repondo a calçada como
estava. E é neste “como estava” que o problema se levanta.
É que neste mesmo
lugar, mais ou menos um metro de memória, estava algo que só olhos atentos ou
memórias cheias poderiam reconhecer e proteger: a assinatura dos mestres
calceteiros que assentaram a primeira calçada neste lugar. Tinham eles o hábito
de, no fim do trabalho, em jeito de remate, deixar um desenho (e cada um tinha
o seu bem personalizado), indicando assim quem havia feito o trabalho.
As mais das vezes,
eram desenhos singelos, pedra branca com pedra branca, sendo o
desenho/assinatura formado pelos interstícios entre elas. Uma flor, um coração,
uma figura geométrica polígona… cada um tinha a sua.
Mas o levantar da
calçada, quantas vezes em moldes de urgência, muitas outras em moldes de
displicência, fez levantar estas assinaturas que, muito naturalmente, se não
estavam identificadas, se não foram preservadas, não foram repostas.
Sei de três locais
na cidade onde existiam. Este, na av. Rio de Janeiro, esquina do estádio do
INATEL, era o último que sabia resistir. Cedeu perante a voragem dos tempos
modernos, com as memórias reservadas aos computadores e as velocidades de
trabalho medidas em custo homem/hora e orçamentado.
Sei também que no
meu arquivo em película, existe a fotografia destas assinaturas assim
destruídas. Mas nem desconfio onde esteja. Espero que o departamento de
conservação de arruamentos da Câmara Municipal de Lisboa também as tenha, bem
como a de outros artífices da calçada, mestres no seu ofício, por cá
menosprezados mas muito bem pagos onde o seu trabalho é considerado: lá fora.
Quando andares
pelas ruas de Lisboa (e de outras cidades do país), olhai por onde pisais! Não
apenas para que eviteis o que sempre haveis evitado mas, e principalmente, para
que vejais o que a mestria de alguns colocou a vossos pés: os desenhos e as
assinaturas.
Texto e imagem: by
me
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