Era castanha, como
as minhas botas. E, tal como as minhas botas, de couro. A lombada, restaurada,
estava cosida com pontos miúdos, tal como as minhas botas, e ao invés de todo o
resto. E velha, como as minhas botas não são, mostrava um uso constante e
afectuoso, como as minhas botas começam a mostrar.
Já não via uma
capa de livros como aquela há muitos anos. Tive eu uma, que usei mais como
pasta de escola que como capa de livros, nos tempos do liceu. E se a minha
tinha a esfinge do Luís de Camões, esta tinha a do Alexandre Herculano.
A dado passo de
estar a admirar a capa de livros, que continha um e que estava a ser lido, não
me contive.
Aproveitando um
mudar de página que me pareceu ser também de capítulo, meti conversa com a
senhora e perguntei-lhe a idade. Da capa, entenda-se.
“Sabe”, disse-me
ela, “eu tenho setenta anos. O meu marido, se fosse vivo, teria setenta e dois.
E ambos usámos disto no liceu.”
E sorrindo, foi
contando.
“A minha
estragou-se toda e já não tinha remédio. Mas depois da partida do meu marido mandei
restaurar esta – levarem-me quarenta euros, imagine – pondo-lhe esta lombada e
um forro novo.”
“Pela forma que
está usada”, retorqui-lhe, “deve gostar muito de livros, suponho.”
“Nem sabe como.
Tenho muitos, mas gosto particularmente dos clássicos. Dos outros também, mas
os clássicos são os meus predilectos. Nem sei bem que lhes fazer. Ou melhor,
acho que sei: vou deixá-los à biblioteca do Museu do Neo-Realismo, em Vila
Franca de Xira. Estou muito ligada a ele e empenhei-me muito para que nascesse.
É o melhor lugar para os livros, e era também o que o meu marido queria.”
O diálogo já
começou tarde, no trajecto ferroviário para Lisboa. E, neste ponto, chegámos à
estação onde ambos desceríamos.
Pedi-lhe eu
desculpa de ter interrompido a sua leitura e falado de algo que tanto lhe fala
de coisas queridas, respondeu-me ela que me agradecia, que há muito que já não
se lembrava da história da capa dos livros, apesar de a usar todos os dias.
Saímos do comboio
e ela, comos seus setenta anos que aparentam cinquentas e tais, foi para um
lado, eu, com a minha câmara e com as minhas botas, para outro.
Não me atrevi a “roubar-lhe”
um pouco daquela capa estimada e mantida. Nem desconfio se gostaria,
considerando os afectos que a ela a ligavam.
Fiquei-me pela
coisa mais parecida que encontrei, neste entretanto que separa o lar e o
trabalho.
Talvez que, um
dia, encontre uma capa igual à que já tive. Mas nunca será a minha de sempre,
ao contrário das minhas botas, pelas quais tenho uma estima que me leva a usá-las
até ao limite ou para além dele.
Texto e imagem: by me
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