domingo, 12 de fevereiro de 2012

A capa e as botas




Era castanha, como as minhas botas. E, tal como as minhas botas, de couro. A lombada, restaurada, estava cosida com pontos miúdos, tal como as minhas botas, e ao invés de todo o resto. E velha, como as minhas botas não são, mostrava um uso constante e afectuoso, como as minhas botas começam a mostrar.
Já não via uma capa de livros como aquela há muitos anos. Tive eu uma, que usei mais como pasta de escola que como capa de livros, nos tempos do liceu. E se a minha tinha a esfinge do Luís de Camões, esta tinha a do Alexandre Herculano.
A dado passo de estar a admirar a capa de livros, que continha um e que estava a ser lido, não me contive.
Aproveitando um mudar de página que me pareceu ser também de capítulo, meti conversa com a senhora e perguntei-lhe a idade. Da capa, entenda-se.
“Sabe”, disse-me ela, “eu tenho setenta anos. O meu marido, se fosse vivo, teria setenta e dois. E ambos usámos disto no liceu.”
E sorrindo, foi contando.
“A minha estragou-se toda e já não tinha remédio. Mas depois da partida do meu marido mandei restaurar esta – levarem-me quarenta euros, imagine – pondo-lhe esta lombada e um forro novo.”
“Pela forma que está usada”, retorqui-lhe, “deve gostar muito de livros, suponho.”
“Nem sabe como. Tenho muitos, mas gosto particularmente dos clássicos. Dos outros também, mas os clássicos são os meus predilectos. Nem sei bem que lhes fazer. Ou melhor, acho que sei: vou deixá-los à biblioteca do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Estou muito ligada a ele e empenhei-me muito para que nascesse. É o melhor lugar para os livros, e era também o que o meu marido queria.”

O diálogo já começou tarde, no trajecto ferroviário para Lisboa. E, neste ponto, chegámos à estação onde ambos desceríamos.
Pedi-lhe eu desculpa de ter interrompido a sua leitura e falado de algo que tanto lhe fala de coisas queridas, respondeu-me ela que me agradecia, que há muito que já não se lembrava da história da capa dos livros, apesar de a usar todos os dias.
Saímos do comboio e ela, comos seus setenta anos que aparentam cinquentas e tais, foi para um lado, eu, com a minha câmara e com as minhas botas, para outro.
Não me atrevi a “roubar-lhe” um pouco daquela capa estimada e mantida. Nem desconfio se gostaria, considerando os afectos que a ela a ligavam.
Fiquei-me pela coisa mais parecida que encontrei, neste entretanto que separa o lar e o trabalho.
Talvez que, um dia, encontre uma capa igual à que já tive. Mas nunca será a minha de sempre, ao contrário das minhas botas, pelas quais tenho uma estima que me leva a usá-las até ao limite ou para além dele.

Texto e imagem: by me 

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