segunda-feira, 14 de março de 2011

Claudia



Faz hoje precisamente cinco anos que fiz esta fotografia e a coloquei na web com este mesmo texto.
E se o Mestre Gil teve, tem e terá a actualidade que se lhe conhece, espero bem que o escrito da fotografia seja hoje completamente mentira.


Todo-o-mundo e Ninguém

Entra Todo-o-Mundo, vestido como rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este chama-se Ninguém.

Ninguém -- Que andas tu aí buscando?
Todo-o-Mundo -- Mil coisas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando,
por quão bom é porfiar.
Ninguém -- Como hás nome, cavaleiro?
Todo-o-Mundo -- Eu hei nome Todo-o-Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo.
Ninguém -- E eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.

Berzebu -- Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
Dinato -- Que escreverei, companheiro?
Berzebu -- Que Ninguém busca consciência, e Todo-o-Mundo dinheiro.

Ninguém -- E agora que buscas lá?
Todo-o-Mundo -- Busco honra muito grande.
Ninguém -- E eu virtude, que Deus mande
que tope co'ela já.

Berzebu -- Outra adição nos acude:
escreve logo aí a fundo
que busca honra Todo-o-Mundo
e Ninguém busca virtude.

Ninguém -- Buscas outro mor bem que esse?
Todo-o-Mundo -- Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém -- E eu quem me repreendesse
em cada coisa que errasse.

Berzebu -- Escreve mais.
Dinato -- Que tens sabido?
Berzebu -- Que quer em extremo grado
Todo-o-Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.

Ninguém -- Buscas mais, amigo meu?
Todo-o-Mundo -- Busco a vida e quem ma dê.
Ninguém -- A vida não sei que é,
a morte conheço eu.

Berzebu -- Escreve lá outra sorte.
Dinato -- Que sorte?
Berzebu -- Muito garrida:
Todo-o-Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.

Todo-o-Mundo -- E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
Ninguém -- E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.

Berzebu -- Escreve com muito aviso.
Dinato -- Que escreverei?
Berzebu - Escreve
que Todo-o-Mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.

Todo-o-Mundo -- Folgo muito de enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém -- Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.

Berzebu -- Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
Dinato -- Quê?
Berzebu -- Que Todo-o-Mundo é mentiroso
e Ninguém diz a verdade.

Ninguém – Que mais buscas?
Todo-o-Mundo – Lisojear.
Ninguém -- Eu sou todo desengano.

Berzebu -- Escreve, ande lá mano!
Dinato -- Que me mandas assentar?
Berzebu -- Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo-o-Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.


Texto: “Auto da Lusitânia” (1532), by Mestre Gil Vicente
Imagem: by me

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