Um dia alguém, no
mundo virtual da web, disse que eu gostava de fotografar lixo.
Cumpre-me dizer
que tal não é verdade.
Se o fosse, teria
muito para fotografar em aterros sanitários, centrais de recolha de resíduos sólidos
urbanos e afins. Teria já tido, certamente, profícuas conversas com os técnicos
camarários, bem como aqueles que recolhem o lixo com os camiões, para saber
quais as zonas mais “rentáveis”, tanto em termos de quantidade como de
qualidade. Também já teria acompanhado os catadores de lixo, na sua triste azáfama
diária, tentando perceber quais os seus critérios e quais os prédios ou ruas,
das suas rondas, que mais proveitos lhes trazem. Provavelmente também teria já andado
de caixote em caixote, abrindo as tampas e revolvendo os seus conteúdos,
preparado para captar o “brinde” do dia.
Nada disto fiz e,
acrescento, não tenho intenções de o fazer.
Aquilo que vai acontecendo
é o eu ir tendo atenção ao que me cerca, umas vezes olhando para baixo, outras
para cima, muitas vezes surpreendido com a originalidade do que se pode
encontrar ao abandono nas ruas. Não forçosamente na categoria de lixo ou jogado
fora, mas tão só abandonado.
Este meu interesse
surgiu, se bem me recordo, de ter “tropeçado” num montão de roupa transbordando
de uns sacos, encostados a um automóvel, bem afastado de qualquer contentor de
lixo.
Consegui logo ali,
entre o ver, o captar e o olhar de novo, conceber três ou quatros motivos para
que tão insólito monte ali estivesse: uma mudança de domicilio e um
esquecimento; uma desavença conjugal; o roubo de um apartamento…
De então para cá ficou-me
o hábito e o divertimento. Em particular com calçado.
É daquelas coisas
que não se jogam fora por dá cá aquela palha. Mesmo que já fora de moda, sempre
se vão guardando, desde que usáveis, para uma outra estação ou moda. E mesmo os
de criança, em ela crescendo, acabam por ser usadas por uma outra, da família
ou não, com pé mais pequeno.
É que, e para além
do preço do calçado, mesmo considerando as feiras de rua, sempre se fica com
alguma afectividade para com aquilo que nos protege os pés. E se um sapato
novo, por muito pouco que a tal se dê importância, é sempre um momento “diferente”,
usar um sapato velho já feito ao pé é uma sensação de conforto à qual não damos
por demais atenção, excepto quando algo corre mal.
A cada sapato, ou
par de sapatos, que vejo abandonados na rua, atribuo uma qualquer estória, desde
viagens a trabalho, de festas a desporto, de romances a raiva.
Conseguis imaginar
este par a ir, ainda por estrear, a uma festa, a uma discoteca ou casa de alguém?
E uma segunda ou terceira até ter entrado na categoria de “já não são novos” e
passarem a transportar e suportar a sua dona no quotidiano de ir, estar e
regressar do trabalho? Conseguis imaginar quem os usou a olhar pela janela, de
manhã, e tentar adivinhar se irá ou não chover e se os pode ou não usar?
Conseguis imaginar uma qualquer amiga mais íntima, ou bem pelo contrário, a
constatar que os sapatos são novos e como lhe ficam bem (ainda que possa haver
ironia na observação)? Conseguis imaginar estes sapatos, lado a lado, e de
frente para uns outros masculinos, por sob uma mesa de um restaurante?
Acontece que
raramente conto o que passa pela cabeça quando os vejo e fotografo. Acho que
tem muito mais interesse deixar esse aspecto para quem quer que veja a imagem,
usando a sua própria imaginação e experiências de vida para construir uma estória.
É que, afinal, quem calça o sapato é que sabe onde lhe aperta!
By me
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