domingo, 9 de agosto de 2015

A escrevaninha



É sabido que qualquer corrente eléctrica cria um campo magnético em seu redor. De maior ou menor intensidade ou alcance, isso acontece.
É igualmente verdade que as sinapses (descargas eléctricas entre neurónios no cérebro) criam campos magnéticos. Mais que verdade, a ciência médica usa-as para diagnósticos, medindo-as de algum modo.
Será previsível que em situações semelhantes existam sinapses semelhantes. E campos magnéticos semelhantes.
Não me refiro à chamada “transmissão de pensamento”. Para tal, seria necessário que tanto o que pensa como o que recebe o pensamento estivessem na mesma “frequência” e que as memórias acumuladas fossem idênticas, para que as sinapses fossem iguais ou interpretáveis. Acontece algo de semelhante entre casais idosos, que sempre viveram juntos, e cujos estímulos externos geraram memórias comuns. E como sabem as opiniões e preferências da cara-metade, facilmente e perante uma mesma situação sabem o que ela pensa. Emissão e recepção desses tais campos magnéticos, com uma interpretação baseada na experiência comum.
Mas existirão sinapses ou campos magnéticos comuns a muita gente perante as mesmas circunstâncias. Alimentados por experiências comuns, poderão gerar pensamentos comuns ou semelhantes. Um desses casos é o dos templos religiosos.
Ao longo de muitos e muitos anos, milhares de pessoas frequentaram aquele templo animadas dos mesmos ou semelhantes pensamentos ou sentimentos: religiosidade, veneração, esperança, boa-vontade, perdão, optimismo…
Imagino que tantas pessoas, no mesmo local, gerando o mesmo tipo de campo magnético ou energia, acabe esta por ficar retida ma matéria circundante: a estrutura do edifício, tapeçarias, quadros, estatuária, candelabros… de algum modo, imagino, esta matéria recebendo tanta energia semelhante, acaba por adquiri-la e devolvê-la a quem estiver por perto.
Talvez que por isso, mesmo os mais agnósticos, ateus ou descrentes naquela fé, ao visitarem um templo e se sem ideias pré-concebidas, se sentem bem no seu interior. As tais energias positivas acabam por os influenciar. Tal como os crentes, que ali vão em busca de algo concreto e receptivos a esse tipo de energia ou radiação, recebem-na com facilidade.
É também por isso que, ao longo de milénios, as civilizações conquistadoras têm erguido os seus próprios tempos sobre as ruínas dos templos devastados na conquista. Não apenas porque, assim, humilham a cultura conquistada, mas porque será ali que apetece erguer um local com boas “energias”.

Vem isto tudo a propósito de um local que visitei recentemente. É a reconstrução, de raiz, de um edifício que ardeu e do qual, suponho, terá sobrevivido apenas a memória e parte da estrutura.
Nesta reconstrução estão empregues materiais novos, que se sentem como sendo novos, acabadinhos de usar. Madeiras, pinturas de paredes, caixilharia e portas… tudo novo, mesmo que em alguns pedaços lhe tenha sido acrescentado uma falsa patine temporal.
Alguns espaços estão já decorados com objectos de época que, creio, não são os que ali estariam aquando do incêndio.
Pese embora o local ser aprazível e tentar evocar o passado, não o senti. Nada. Nadica. Aquele local falava comigo como tem falado a enormidade de cenários de televisão, teatro e cinema onde estive: é bonito mas é falso. Não teve vivências, emoções. Ali não foram gerados campos magnéticos provindos de sinapses cerebrais. Ali não aconteceu coisa alguma.
Podemos, certamente, ficcionar estórias ou histórias, transpor para ali outras situações. É o que se faz na indústria do audiovisual. Mas será sempre um faz de conta, um jogo de enganos em que tanto quem os constrói como quem os assiste sabem do embuste.

Posso imaginar desta escrevaninha o acto especial de escrever. O cerimonial de escolher o tipo de papel, o tipo de aparo, o frasco de pó de talco por perto para que não borrasse, o tinteiro… Posso até imaginar que numa escrevaninha colocada num quarto de dormir se escrevessem cartas pessoais. Para a família, para o ou a amada, poemas sentimentais ou romances apaixonados. Os papeis sérios seriam escolhidos e escritos num escritório ou gabinete de trabalho, certamente.
O que cerca esta escrevaninha pode ajudar-me a ter essa situação imaginada: a luz, o espelho e o que nele se reflecte, os candeeiros presentes ou sentidos, até o formato das janelas.
Mas aqui, estando lá, olhando para estes objectos e tentando receber o que neles possa estar registado energeticamente (e não nos enganemos: um quarto de dormir terá muitas energias registas ao longo dos tempos) nada senti. Todos aqueles objectos e paredes nada me contaram, em nada vibraram comigo mais que um qualquer cenário televisivo, dos muitos em que passei muitas e muitas horas.

As técnicas de imagem (luz, cor, perspectivas) podem simular muitas coisas, como eu tentei com esta fotografia. Mas é falso, tão falso quanto uma moeda de três euros.
Posso garantir que, quando estou a captar uma qualquer situação, não importa o suporte, se não sentir algo, algum tipo de empatia com o local ou acção, o mais que consigo é uma fraca imagem, assim como que uma fotocópia trabalhada daquilo que está à minha frente.

Talvez que os bons profissionais consigam enganar o público. Eu não sou capaz.

By me

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