Pese embora a enormidade
de alternativas e prioridades, ontem decidi-me por uma repetição. E encostei-me
a ver um filme que já conheço quase de cor e, para além do deixar levar-me pela
sua qualidade cinematográfica e enredo, ir prestando de novo alguma atenção a
alguns detalhes extra.
Estou em crer que
a maioria – ou todos – o conhece: “O fabuloso destino de Amélie”.
É fácil
deixarmo-nos levar pela história: a ingenuidade – ou talvez não – da principal
personagem, o romance em forma de toca-e-foge, as suas vinganças suave e só um
nico maldosa, os secretos prazeres pueris, todo aquele conjunto de personagens
em torno do enredo principal, que lhe dão corpo, começando desde logo pelo
“coro grego” na pele de um velho que não sai de casa e pelo marçano genial… Todo
o filme nos enche a alma, com um final feliz, como não poderia deixar de ser.
No entanto, tem
uma vertente adicional particularmente importante para os amantes de cinema em
geral e para os amantes de fotografia em particular: a fotografia!
Desde logo a sua
direcção. Tem certas subtilezas nos jogos de cor e luz das quais não nos
apercebemos mas que são o complemento discreto da história e do local onde
sucede. Não tanto nos contrastes do claro-escuro. O filme é suave e neste
aspecto não nos “agride”. Mas antes na forma como as transições de um para
outro acontecem (o gamma), que se em certos momentos é suave e discreto,
noutras é bem mais intenso. Bem de acordo com a situação descrita ou as emoções
narradas. Mesmo algumas dominantes cromáticas (do amarelado e quente ao azulado
e frio) são bem suaves e discretas, mas perfeitas para os ambientes da acção.
Com o acréscimo, quase imperceptível, de alguns momentos em que a luz assume
uns tons esverdeados, aquela dominante que evitamos, não claramente explicados por
luzes artificiais em cena, mas que complementam as emoções que assistimos.
Quanto à
fotografia, no seu conceito convencional… uma delícia.
Começando por ser,
ainda que como por acaso, o fio condutor de toda a história.
Depois porque
refere dois tipos de fotografia, uma das quais já quase que é parte integrante
da arqueologia fotográfica, a outra que para lá caminha, apesar de ainda em
uso: o photomaton e a fotografia instantânea. Quem hoje usa de umas moedas para
fazer fotografias de passe? Ou quem usa fotografia instantânea para enviar por
correio? É interessante pensarmos que o filme, rodado em 2001, nos remete para
uns muito poucos anos antes e como, quase que ainda ontem, tanto uma como outra
forma de fotografar era ainda importante.
Em seguida, e igualmente
notável, nos conta ou demonstra o como podemos imaginar ou fantasiar em torno
de fotografias que não entendemos. Fotografias meramente factuais e sem um
pingo de criatividade ou estética até às mais elaboradas e propositadas. É
sabido que a importância de uma fotografia passa, e muito, pela interpretação
que dela é feita. Autor e público. E é nesta vertente que o autor do filme
brinca connosco, em duas linhas distintas, devagarinho e sem maldades. Mas
deixando-nos a pensar no assunto. Para quem goste de pensar.
Mas igualmente o
como um só objecto fotográfico pode dialogar connosco. É um momento fugaz na
história, mas de relevo. Esta cena em particular até poderia não estar não
estar no filme que não alteraria em nada o seu enredo ou desfecho. Mas estar
faz dele, do filme, o importante que é. O como podemos interrogar uma
fotografia e o como ela nos pode responder. Factualmente. Mesmo que uma
fotografia absolutamente banal, sem mistério algum por si mesma.
Por fim, ou talvez
não, um acto estranho: rasgar e destruir fotografias. Porque o podemos fazer e
em que circunstâncias. O que queremos garantir com esse destruir de imagens.
Destruir um momento feio ou incómodo? Garantir a privacidade? Apagar a memória
(a nossa)? Esta questão, tão pertinente nos tempos que correm com a facilidade
do “delete”, é aqui abordada de uma forma séria ainda que leve e original.
Recomendo que se
veja ou reveja o filme.
Para quem o não
conhece, deixe-se levar pela suavidade da história, pela beleza do cinema, por
um filme que talvez nos ponha a pensar, apesar de não darmos por isso.
Para quem já o
conhece, veja-se com olho crítico. Os detalhes cinematográficos e os detalhes
de conteúdo fotográfico.
Tenho alguns
filmes que considero verdadeiros hinos à fotografia, nos seus mais diversos
aspectos.
Este é certamente
um deles!
By me
Imagem: um frame do filme
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