sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Papel de jornal



Há uns anos valentes tive que ir a tribunal. Fui na condição de testemunha num divórcio litigioso. Sendo uma estreia, deixei-me ficar na sala após depor. Teria assim oportunidade de ver o funcionamento de um tribunal, coisa que a maioria das pessoas só conhece dos livros e dos filmes.
A pessoa que se me seguiu no banco das testemunhas era uma senhora, em avançado estado de gravidez. Quase no limite do tempo, mesmo.
Tinha o sobretudo vestido, porque estava frio, e tinha as mãos nos respectivos bolsos bem como as costas inclinadas para trás, face ao peso que carregava.
A dado passo disse-lhe o juiz:
“Tire as mãos dos bolsos que está num tribunal!”
Não gostei! Nem um nico!
Não gostei da atitude de total desumanidade deste homem, sentado atrás da mesa do poder e gerindo-o como se de um rei se tratasse, por uma mulher que mais não fazia que procurar um pouco de conforto naquela situação natural.
E gostei menos ainda de ver que as mangas da beca do juiz todas rotas. Com um aspecto de total desleixo, bem o oposto do que estava a pedir à testemunha à sua frente.
Soube, mais tarde, que as mangas rotas de um juiz são sinónimo de antiguidade, de trabalho aturado à mesa onde estuda os processos, de qualidade e seriedade.
Ora batatas!
Exige-se compostura, decoro, formalidade a quem se apresenta perante a justiça, mas esta define-se por trajes velhos e rotos. “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, como diz o povo.

Vem tudo isto a propósito de ter sido recusada a apreciação de um “Habeas Corpus” no supremo tribunal de justiça porque vinha escrito numa fotocópia de um jornal.
Não foi avaliada a qualidade dos argumentos, a justeza do que era pedido, a conformidade com a lei do que lá estivesse escrito.
Foi avaliada, apenas, a formalidade do pedido e o seu aspecto.
Será esta uma justiça de aparências e não de factos, de opiniões e não de actos, de gostos e não de leis.
Conta-me um jornal que o subscritor desse pedido é um simpatizante do anarquismo (chamam-lhe mesmo “anarquista”). Aparentemente, o Facebook é uma fonte inesgotável de informação e tão fidedigna quanto um livro de assentos de um tribunal. E não conheço o cidadão em causa.
Mas só posso aplaudir o seu gesto, numa demonstração clara que o acesso à justiça está vedado a quem não for munido ou escoltado por um advogado. Que, certamente, cumpriria todos os preceitos ancestrais de formalidade e rigor, decretados dentro do circulo restrito da justiça.
A justiça é apenas acessível à elite que nela e dela vive, fazendo-se pagar a peso de oiro, e organizada por forma a que o comum dos cidadãos, anarquista ou conservador, agnóstico ou praticante, fique de fora se não cumprir as formalidades exigidas.

O artigo segundo da Constituição da República Portuguesa começa assim:
”A República Portuguesa é um Estado de direito democrático…”

Cada vez mais acredito menos nisto!

By me

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