terça-feira, 6 de maio de 2014

Esmolas



As traseiras da casa onde me fiz homem davam para uma rua sem saída. Toda a rua era traseiras, excepto lá no fundo onde uns pouco de prédios, em forma de largo, davam o deu melhor para esta artéria.
Hoje é parqueamento diurno e nocturno de moradores e não só. As frondosas árvores de agora eram então raquíticos troncos eternamente ameaçados na sua sobrevivência pela seca e as bolas com que a miudagem as acertava, já fora da linha lateral definida pelo lancil do passeio.
Sei que a acústica era boa. Não apenas se ouviam bastante bem as vozes maternas chamando os rebentos para a mesa ou cama, como pelo canto e música que se ouvia.

Ficava esta rua no roteiro de dois homens que cruzavam a cidade, pedindo esmola. Mas não o faziam de porta em porta, estendendo a mão à caridade de quem as abria.
Um deles com o seu saxofone e o outro com a sua voz, davam-nos pequenos mas belos concertos de árias clássicas ou populares.
O instrumentista era cego, o vocalista não possuía o braço esquerdo. Mas juntos, na sua deficiência, suplantavam alguns palcos de fraque e toillete.
As janelas engalanadas de roupa a secar enchiam-se de miúdos e graúdos, para os ver e ouvir. Mesmo até ao topo do alto 13º andar, o 3º balcão daquela sala aberta para o céu.
Depois da sua actuação de uns bons quinze a vinte minutos, ajudada pela acústica da rua, o cantor circulava junto aos prédios, olhando para cima e para o chão. Recolhia por entre as ervas que despontavam na calçada os pedaços de papel com moedas que eram atirados das janelas pelos moradores.
Rasguei várias páginas dos cadernos da escola.
Não eram esmolas! Eram antes o pagamento sincero de bons momentos que ficavam na memória. Pela raridade e pela qualidade.
Na minha mente, sempre imaginei o cantor como um deficiente da guerra do ultramar, mas nunca o soube ao certo. O que era garantido era que, de cada vez que passava, talvez que de três em três meses, a sua voz acompanhava o cabelo: envelhecia e perdia volume e qualidade.
Até que deixaram de aparecer.

Hoje, quando vejo alguém a tocar na rua, de cesto, caixa ou lata no chão em frente, num convite à esmola, recuso.
Não dou! Não dou uma esmola!
Pago!
Pago o prazer que tenho em estar uns minutos parado, ou mesmo só de passagem, a escutar música ao vivo, inesperada, bem ou mal executada mas ali, ao vivo. Que me aquece a alma.


Não dou esmolas: pago um serviço!

By me

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