As
traseiras da casa onde me fiz homem davam para uma rua sem saída. Toda a rua
era traseiras, excepto lá no fundo onde uns pouco de prédios, em forma de
largo, davam o deu melhor para esta artéria.
Hoje
é parqueamento diurno e nocturno de moradores e não só. As frondosas árvores de
agora eram então raquíticos troncos eternamente ameaçados na sua sobrevivência
pela seca e as bolas com que a miudagem as acertava, já fora da linha lateral
definida pelo lancil do passeio.
Sei
que a acústica era boa. Não apenas se ouviam bastante bem as vozes maternas
chamando os rebentos para a mesa ou cama, como pelo canto e música que se
ouvia.
Ficava
esta rua no roteiro de dois homens que cruzavam a cidade, pedindo esmola. Mas
não o faziam de porta em porta, estendendo a mão à caridade de quem as abria.
Um
deles com o seu saxofone e o outro com a sua voz, davam-nos pequenos mas belos
concertos de árias clássicas ou populares.
O
instrumentista era cego, o vocalista não possuía o braço esquerdo. Mas juntos,
na sua deficiência, suplantavam alguns palcos de fraque e toillete.
As
janelas engalanadas de roupa a secar enchiam-se de miúdos e graúdos, para os
ver e ouvir. Mesmo até ao topo do alto 13º andar, o 3º balcão daquela sala
aberta para o céu.
Depois
da sua actuação de uns bons quinze a vinte minutos, ajudada pela acústica da
rua, o cantor circulava junto aos prédios, olhando para cima e para o chão.
Recolhia por entre as ervas que despontavam na calçada os pedaços de papel com
moedas que eram atirados das janelas pelos moradores.
Rasguei
várias páginas dos cadernos da escola.
Não
eram esmolas! Eram antes o pagamento sincero de bons momentos que ficavam na
memória. Pela raridade e pela qualidade.
Na
minha mente, sempre imaginei o cantor como um deficiente da guerra do ultramar,
mas nunca o soube ao certo. O que era garantido era que, de cada vez que
passava, talvez que de três em três meses, a sua voz acompanhava o cabelo:
envelhecia e perdia volume e qualidade.
Até
que deixaram de aparecer.
Hoje,
quando vejo alguém a tocar na rua, de cesto, caixa ou lata no chão em frente,
num convite à esmola, recuso.
Não
dou! Não dou uma esmola!
Pago!
Pago
o prazer que tenho em estar uns minutos parado, ou mesmo só de passagem, a
escutar música ao vivo, inesperada, bem ou mal executada mas ali, ao vivo. Que
me aquece a alma.
Não
dou esmolas: pago um serviço!
By me
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