sábado, 3 de maio de 2014

Ignotus deus



“…
Alçou o padre uma cruz de pau, da fraqueza fez força, e brandindo-a sobre as presenças que se lhe configuravam como a sexta legião dos demónios, entrou a exorcisar, com altos e trémulos brados:
- Abjurgo ab te Serpens imundíssima…
Mas uma personagem que, muito perto, na primeira fila, o olhava complacente, cabeçorra enorme e rugada levemente descaída, as garras sobre os joelhos pontudos, a cauda negligentemente tombada entre os pés disformes e escamados, meio escondida pelas dobras da capa fulva, interrompeu-o com blandícia:
- Ts, ts,ts, meu amigo, deixemo-nos disso, sim?
O padre perfilou-se, assombrado, incapaz de resistir àquela solicitação serena e ficou hirto, a olhar, sem pinga de sangue.
A figura voltou ligeiramente a cabeça e chamou, para trás:
- Eh, lá, tu, aí em baixo, chega-te cá!
Um ser fulgurante, de feição sorridente e amplas barbas brancas, irradiando paz e bondade, levantou-se e caminhou pela nave, os dedos dos pés mal aflorando o lajedo. Chegado perto da personagem que o havia solicitado, curvou-se um pouco e ficou a aguardar.
- Então durante todos estes séculos persuadiste estes pobres seres de que eras um deus único? – admoestou e estranha figura, com um profundo suspiro. E, após, designando o frade com um ligeiro aceno:
- Bom, leva lá este para o teu céu, ou lá como se chama, e procura-me depois, que temos contas a ajustar…”

Se gostaram deste texto, o livro de onde foi retirado tem muito, mas muito mais para vos deliciar: “A inaudita guerra da avenida gago Coutinho”, de Mário de Carvalho, edições rolim. A não perder.

Quanto à fotografia… desculpem mas não pude resistir.

By me 

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