Foi
um destes dias.
Fui
ao Largo de Camões, em Lisboa, para acompanhar um evento público e notório e
fotografá-lo.
Mas
tenho muita dificuldade em chegar a um local e começar logo a fotografar.
Talvez que os profissionais batidos o consigam fazer. Talvez que os fotógrafos
mais sensíveis e de qualidade o consigam fazer. Eu não consigo!
Necessito
de sentir o ambiente, de me sintonizar com as pessoas, as luzes, os
acontecimentos, de sentir para além das superfícies e do visível, antes de
começar a dar ao gatilho. Talvez não seja eu um fotógrafo.
Certo
é que, nesse dia, e tendo acabado de chegar, procurei esse estado de espírito
permeável ao que me circundava. E sendo que há ali um quiosque, decidi ir beber
um café. Enquanto o fosse mexendo e bebericando, algo do que me rodeava haveria
de começar a entra-me na pele ou na alma.
O
quiosque está ali há alguns anos, num retomar em tom de moda recuperada uma
tradição urbana. Tem a vantagem este de vender refresco de groselha e de
capilé, coisas igualmente antigas. Tal como fornecer as bebidas, excepto o
café, em copo de amido (segundo me disseram), facilmente degradáveis e “amigas
do ambiente”.
Tem
igualmente algo que será um reavivar de memórias dos mais antigos ou novidade
para os mais novos: os furinhos dos chocolates. O equivalente ao que hoje se vê
em muitos cafés e tascas onde vão crianças: as máquinas onde se mete a moeda e
se roda o manípulo, saindo um papelinho colorido ou com um número que dará
direito a um brinde.
Nos
meus tempos de criança não havia dessas modernices e eram apenas os furinhos da
Regina, que davam direito a uma bolinha colorida. Se bem me recordo, era a
dourada que correspondia ao chocolate grande, formato king size.
E
no quiosque do largo de Camões lá estavam os furinhos. Em suporte de cartão,
mais baratos que os de madeira com uma janelinha de vidro que conheci, mas com
a mesma finalidade. E que hoje têm a grande vantagem de arrancar um sorriso a
que os vê e recorda.
O
que não conseguiu arrancar-me um sorriso, muito pelo contrário, foi o que
estava mesmo ao lado. E que na imagem não é muito esclarecedor do que tem
escrito. Naquela fita colada naquele copo, e com letras escritas à mão, podia
ler-se “Tiping is good for karma”.
Ora
batatas, para não usar uma expressão bem mais portuguesa e tradicional!
Num
quiosque que tenta recuperar velhas tradições alfacinhas, apelando à memória de
prazeres de antanho, vêm com slogans em inglês!? Mais ainda, vêm fazer
pedinchice!?
Não
subscrevo o dar-se gorgeta! Na relação comercial em que compro um bem ou um
serviço, o que pago inclui tudo o que obtenho. Se quiser eu pagar algo mais,
como forma de agradecimento à qualidade do que recebo, será uma decisão minha e
não resultado de um peditório. Até porque aqueles que vendem peças de tecido,
livros, detergentes ou gasolina não têm direito a gorgeta, mesmo que façam o
seu trabalho tão bem ou melhor que os que me entregam um café, um bife ou um
refresco de groselha.
Entendo
a gorgeta como sendo uma espécie de esmola. “Ah, e tal, coitado, ganha tão
pouco, vou ajudá-lo…”
Não!
Quem
me entrega o almoço ou a bica tem que ganhar tão bem, ter um salário tão justo
quanto eu, que não lido com o consumidor do que produzo. E se é certo que quem
cava a batata, ou enlata o tomate, ou tritura o lixo, ou imprime o jornal ou
recolhe as redes, não recebe gorgeta, não faz sentido que quem serve comida,
mesmo que num quiosque ou num restaurante de primeira categoria tenha que
receber uma “esmola” por parte do cliente.
Não
gosto de deixar gorgetas! Seja num restaurante de libré, num fast food ou num
quiosque.
Mas,
pelas alminhas: se me querem pedir uma esmola, usando da fragilidade que
resulta dos sorrisos arrancados à memória, façam-no em língua portuguesa, a
mesma língua que há cinquenta anos pedia um capilé ou um furinho!
Acabei
o café e fui fotografar.
Talvez
tenha sido a raiva que me sobreveio daquele pedido naquele copo que me
sintonizou com o que ali acontecia: precários e desempregados que, naquele
primeiro de Maio, se juntavam a protestar contra as condições de vida que nos
foram impostas por alguns que, regular e displicentemente, gostam de dar
esmolas e não o pagar o justo valor pelo trabalho dos outros.
By me
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