domingo, 4 de maio de 2014

Sorrisos e raivas



Foi um destes dias.
Fui ao Largo de Camões, em Lisboa, para acompanhar um evento público e notório e fotografá-lo.
Mas tenho muita dificuldade em chegar a um local e começar logo a fotografar. Talvez que os profissionais batidos o consigam fazer. Talvez que os fotógrafos mais sensíveis e de qualidade o consigam fazer. Eu não consigo!
Necessito de sentir o ambiente, de me sintonizar com as pessoas, as luzes, os acontecimentos, de sentir para além das superfícies e do visível, antes de começar a dar ao gatilho. Talvez não seja eu um fotógrafo.
Certo é que, nesse dia, e tendo acabado de chegar, procurei esse estado de espírito permeável ao que me circundava. E sendo que há ali um quiosque, decidi ir beber um café. Enquanto o fosse mexendo e bebericando, algo do que me rodeava haveria de começar a entra-me na pele ou na alma.
O quiosque está ali há alguns anos, num retomar em tom de moda recuperada uma tradição urbana. Tem a vantagem este de vender refresco de groselha e de capilé, coisas igualmente antigas. Tal como fornecer as bebidas, excepto o café, em copo de amido (segundo me disseram), facilmente degradáveis e “amigas do ambiente”.
Tem igualmente algo que será um reavivar de memórias dos mais antigos ou novidade para os mais novos: os furinhos dos chocolates. O equivalente ao que hoje se vê em muitos cafés e tascas onde vão crianças: as máquinas onde se mete a moeda e se roda o manípulo, saindo um papelinho colorido ou com um número que dará direito a um brinde.
Nos meus tempos de criança não havia dessas modernices e eram apenas os furinhos da Regina, que davam direito a uma bolinha colorida. Se bem me recordo, era a dourada que correspondia ao chocolate grande, formato king size.
E no quiosque do largo de Camões lá estavam os furinhos. Em suporte de cartão, mais baratos que os de madeira com uma janelinha de vidro que conheci, mas com a mesma finalidade. E que hoje têm a grande vantagem de arrancar um sorriso a que os vê e recorda.
O que não conseguiu arrancar-me um sorriso, muito pelo contrário, foi o que estava mesmo ao lado. E que na imagem não é muito esclarecedor do que tem escrito. Naquela fita colada naquele copo, e com letras escritas à mão, podia ler-se “Tiping is good for karma”.
Ora batatas, para não usar uma expressão bem mais portuguesa e tradicional!
Num quiosque que tenta recuperar velhas tradições alfacinhas, apelando à memória de prazeres de antanho, vêm com slogans em inglês!? Mais ainda, vêm fazer pedinchice!?
Não subscrevo o dar-se gorgeta! Na relação comercial em que compro um bem ou um serviço, o que pago inclui tudo o que obtenho. Se quiser eu pagar algo mais, como forma de agradecimento à qualidade do que recebo, será uma decisão minha e não resultado de um peditório. Até porque aqueles que vendem peças de tecido, livros, detergentes ou gasolina não têm direito a gorgeta, mesmo que façam o seu trabalho tão bem ou melhor que os que me entregam um café, um bife ou um refresco de groselha.
Entendo a gorgeta como sendo uma espécie de esmola. “Ah, e tal, coitado, ganha tão pouco, vou ajudá-lo…”
Não!
Quem me entrega o almoço ou a bica tem que ganhar tão bem, ter um salário tão justo quanto eu, que não lido com o consumidor do que produzo. E se é certo que quem cava a batata, ou enlata o tomate, ou tritura o lixo, ou imprime o jornal ou recolhe as redes, não recebe gorgeta, não faz sentido que quem serve comida, mesmo que num quiosque ou num restaurante de primeira categoria tenha que receber uma “esmola” por parte do cliente.
Não gosto de deixar gorgetas! Seja num restaurante de libré, num fast food ou num quiosque.
Mas, pelas alminhas: se me querem pedir uma esmola, usando da fragilidade que resulta dos sorrisos arrancados à memória, façam-no em língua portuguesa, a mesma língua que há cinquenta anos pedia um capilé ou um furinho!

Acabei o café e fui fotografar.

Talvez tenha sido a raiva que me sobreveio daquele pedido naquele copo que me sintonizou com o que ali acontecia: precários e desempregados que, naquele primeiro de Maio, se juntavam a protestar contra as condições de vida que nos foram impostas por alguns que, regular e displicentemente, gostam de dar esmolas e não o pagar o justo valor pelo trabalho dos outros.

By me 

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