A
conversa já estava a azedar. Não era nada comigo, mas levantei o nariz do livro
para a seguir, que as vozes já se alteravam
Estávamos
no comboio suburbano, parados numa estação. A troca de palavras era entre o
revisor e um passageiro. Mas a comunicação mal se fazia.
O
passageiro, preto retinto, praticamente não falava português, tentando fazer-se
entender em francês. Muito polidamente, mas em francês.
Por
seu lado o revisor pouco ou nada sabia ou queria saber daquela língua. Apenas
lhe interessava que o bilhete não era válido e havia que pagar a multa.
Principalmente aqueles “escarumbas borlistas”, que tinham que pagar como todos
os outros
A
dado passo, agarra o passageiro por um braço, arranca-o do banco e arrasta-o
para fora da composição. Os modos violentos do funcionário da CP pareceram-me
muito para além do aceitável perante a atitude do passageiro.
Sabendo
que o francês não é uma língua universal (e é pena porque até é bonita) resolvi
intervir, quanto mais não fosse como intérprete. Pelo caminho que as coisas
levavam, aquele fulano até que iria passar um mau bocado se ninguém o
entendesse
Quando
cheguei ao edifício, cruzei-me com o revisor que regressava à composição.
Espumava e praguejava como poucos.
No
cais, passageiros largavam impropérios contra a CP, o revisor e o passeiro
borlista. Nada justifica estes atrasos!
E
o comboio partiu.
Entrei
meio a medo no gabinete do chefe da estação, onde este estava com a dificuldade
que eu previa: a língua. Mas agora o tom da conversa tinha baixado para níveis
civilizados.
Ofereci-me
para traduzir, e a história assentava em mal entendidos. Tinha ele comprado uma
senha de passe, aquando da sua mudança de residência para aquela zona, havia
dias. Tinha perguntado se valia por um mês, o que lhe disseram que sim. O que
não lhe explicaram era que se tratava de um mês de calendário e não de trinta
dias a contar da data de compra.
E
os bilhetes anteriores que tinha consigo comprovavam a veracidade da história.
Acontece,
porém, que o chefe da estação já nada podia fazer. Apesar de estar incomodado
com os modos do revisor, o auto já estava levantado. A multa teria que ser
paga, até porque o infractor já estava identificado.
Havia
apenas uma coisa a fazer: Apresentar a história no Gabinete de Apoio ao
Cliente, no Rossio, e esperar que a sede resolvesse a questão. Ele próprio
telefonaria para lá para contar a história.
Já
que estava apeado, decidi acompanhar o caso. Fui com o passageiro até lá. A
probabilidade de encontrar gente que fale francês é pequena nos tempos que
correm.
Pelo
caminho contou-me a sua história, rica de detalhes de países pobres e de
dificuldades. Migrante clandestino, tinha conseguido legalizar a situação havia
pouco, mas este tipo de situações só lhe estragavam as possibilidades de ficar
em permanência.
Na
altura, trabalhava na construção do tabuleiro ferroviário da ponte 25 de Abril.
No turno da noite. E a jorna já estava perdida, que não lha iriam pagar com
aquela atraso todo.
Chegados
ao Rossio, apresentei o caso, mas nem tive muito que fazer já que a simpática
senhora que ali estava não só já sabia do caso como dominava o francês.
Apesar
disso, e tomadas as notas necessárias sobre a questão do bilhete, eu não me
fiquei, que a questão da atitude do revisor me incomodava.
Ali
mesmo formalizei queixa contra ele, por comportamento racista, impróprio e
violento para com os passageiros.
E
fiquei de voltar a saber o resultado das duas situações.
Passadas
duas ou três semanas, recebi uma carta das relações públicas da CP, onde era
informado do arquivamento do processo contra o passageiro, por terem sido
provadas as suas argumentações.
Quanto
à minha queixa sobre o revisor, nunca me responderam, mas deixei de o ver
naquela linha, como era hábito. Suponho que tenha levado a sua raiva latente
contra outras cores para outro lado. Pobres utentes dessa outra linha!
E
o passageiro? Durante algum tempo cruzei-me com ele na estação. Depois deixei
de o ver e aos seus conterrâneos.
Parte
da comunidade Zairense migrou deste subúrbio para um outro qualquer mais
barato, e ele deve tê-la acompanhado.
By me
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