Foi ontem!
Depois de um dia
de trabalho começado obscenamente cedo, tinha que varrer as ideias que,
quisesse ou não, tinha na cabeça.
Subi no primeiro
autocarro que passou e saí onde calhou, sem pensar onde era. E fui caminhando,
olhando em redor, para a cidade parada por via do feriado, mais olhando que
vendo. E sacudindo a poeira bafienta que o dia tinha acumulado por entre as células
cinzentas.
A dado passo dou
comigo junto da praça de toiro do Campo Pequeno. Transformada que está numa
sala polivalente no tocante a espectáculos, tinha um montão de gente em redor.
Para falar verdade, tinha mais que um montão de gente em redor, que várias eram
as filas para entrar. De todas as idades, com predominância infantil,
aguardavam a oportunidade de ver a exposição de construções do Lego. Não
perguntei a ninguém sobre o tempo de espera, mas pela forma como não andavam as
filas, mais de uma hora, p’la certa.
Tive pena de os
ver assim a desperdiçar o tempo naquela fila, mas cada um gasta-o como entende.
Em olhando para
outro ponto do jardim, uma velhota num banco. Prendeu-me a atenção porque
estava muito concentrada com um espelhinho a pintar-se: boca, olhos,
sobrancelhas, faces…
Nada demais, não
fora a hora (fim da tarde) e estar a usar o mesmo pincel e caixa de pó para o
fazer. Olhando com mais atenção, ainda que discretamente, verifiquei o que
suspeitava: a caixa estava imaculadamente vazia! Não sei que veria ela, bem
para além da superfície do espelho, que merecesse tanto apuro na tarefa. Talvez
que condizente com os sacos velhos e rotos que a cercavam e as roupas
andrajosas que vestia.
Em terminada a
longa toilete, arrumou cuidadosamente o estojo num bolso do sobretudo e retirou
do outro um mais que muito amachucado papel de jornal que alisou com muita cautela e começou
a ler com visível atenção.
Afastei-me! Tinha
penetrado demasiado, ainda que só visualmente, na intimidade daquela mulher que
do banco de jardim saltava para uma qualquer fantasia cuja origem se perdia bem
lá atrás no tempo, materializada no espelho e no recorte de jornal.
E fiquei-me a
perguntar: qual dos três grupos de pessoas ali, naquele jardim, seria mais
louco: os da fila, que esperavam ao sol de Maio e pagariam para sonhar um nico,
aquela velha senhora, que trás consigo e vive o seu próprio sonho, se eu mesmo,
com a minha objectiva, que vou registando os sonhos dos outros?
A minha câmara
quase que saltava do bolso, no anseio de mais um registo. Fiquei-me pelas
inocentes flores da época e com os anónimos visitantes da exposição, em fundo.
Da sonhadora do jardim mantive apenas com a memória. E a inveja de não poder,
como ela, viver de facto, os meus próprios sonhos, mesmo que só do outro lado
do espelho.
By me
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