terça-feira, 13 de setembro de 2011

Um fio de História



Foi aqui que a fotografei.
De entre as muitas centenas, quiçá milhares, de pessoas que passaram e pararam junto da minha câmara “Á-Lá-Minuta”, e das que quiseram ser fotografadas, algumas há que recordo sem um segundo de hesitação. Pelas circunstâncias particulares do acto de fotografar, pelas conversas tidas, por aquilo que eram e faziam parecer ser… muitos foram os motivos.
Neste caso em particular pela história que a envolveu. E leia-se História com maiúscula.
Contou-me ela, e confirmou-mo quem a acompanhava, que foi na sua juventude, tradutora no decorrer dos Julgamentos de Nuremberg. E ainda acrescentou mais uns detalhes, como ter conseguido atravessar a infame cortina de ferro, perseguida que era pelos homens às ordens do então chefe de polícia secreta da cidade em que vivia, Dresden.
Claro que tudo isto me fez sentir pequenino, bem minúsculo. O que esta Senhora viveu, o que ela foi obrigada a ouvir e repetir, o que terá sofrido até conseguir ter uma vida medianamente estável… Queixamo-nos nós das nossas pequeno-burguesas existências!
Foi-me ainda dito que repartia a sua vida entre Portugal, Inglaterra e Alemanha, pelo que não tenho estranhado não a ver. Tanto mais que o projecto “Old Fashion” terminou.
Qual não foi o meu espanto e alegria tê-la encontrado, um destes dias. E, estava ao balcão do café do Jardim da Estrela, entornei a bica. Acidentes. Procurando eu por um guardanapo, eis que esta senhora idosa se aproxima com um na mão. Reconheci-a de imediato e saudei-a com efusão. Olhou para mim, do alto do seu metro e sessenta, e perguntou se nos conhecíamos.
Falei-lhe da câmara de madeira e nada recordou. Acrescentei uma prótese que então usava e, aí sim, recordou o ano, mas não o episódio ou a fotografia.
“Sabe”, acrescentou, “estou a perder a memória e há muita, mas muita coisa mesmo que já não recordo. É da idade!”
E regressou à sua mesa, de onde se tinha levantado para me oferecer o guardanapo de papel.
Fiquei a olhar para ela. Tinha eu prometido a mim mesmo que, em a tornando a encontrar, haveria de criar condições para que me contasse um pouco da sua riquíssima vida e das atribulações por que tinha vivido.
Mas agora, vendo-a queixar-se, mas não muito, da perda de memória e da quantidade de coisas de que já não se recorda, perguntei-me se não seria melhor deixar as coisas naquele pé.
Talvez que a natureza, através da idade, lhe esteja a fazer um favor e, gradualmente, retirar-lhe do fresco da memória as coisas terríveis que viveu e assistiu. Talvez que esteja, finalmente, a encontrar uma paz de espírito que o seu semblante simpático e cativante parece merecer.
A menos que estivesse estado a ser julgado em Nuremberg. Ou que fosse um esbirro, chefe ou não, da polícia secreta em Dresden. Curiosamente o chefe máximo então dava pelo nome de Vladimir Putin.
Fico contente por o olvido chegar, finalmente, a esta simpática velhinha. O pessoal. Que o colectivo, esse, convém que nunca chegue. Que as atrocidades cometidas em nome de uma ditadura Nazi, de uma ditadura do proletariado ou de uma “democracia” ocidental, com ou sem estrelas na bandeira, dentro ou fora de fronteiras, é melhor que não as esqueçamos para que as possamos evitar no futuro.
Entretanto, fico com este fio de história, que me passou por perto e pela objectiva. Aqui mesmo, no Jardim da Estrela.

Texto e imagem: by me

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