terça-feira, 27 de setembro de 2011
Sete cartas
“IV
Meu caro Amigo:
Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.
A réplica, como você já está vendo, também é fácil; se o meu desejo é sempre de que se não conformem, se quero neles a mesma força que existe ou desejaria que existisse em mim, sou tão inquisitorial como qualquer outro. Todo o mestre (deixe-me pôr o caso como que impessoalmente e sem de modo algum me pretender mestre), todo o mestre quer seus discípulos iguais a ele, mesmo quando parece dar-lhes a maior liberdade. Dirá o Luís que seria talvez o modelo de mestre o que, por exemplo, não sendo do tipo conformado os reconhecesse e quisesse a todos, de qualquer tipo que eles fossem; agora ponho eu objecções: querer tudo, tudo aceitar, mas de dentro, sinceramente, não apenas em palavras ou em atitudes de superfície é não ser nem conformado nem o contrário. Não é não ser nada: é ser tudo, como Deus. Claro está que Deus é o grande mestre: chove sobre o justo e o injusto. Mas nos mestres da terra, se os não alargarmos às proporções divinas, isto é, se os não fazemos desaparecer, há sempre uma semente de tirania. Se sou mestre, não posso fugir à fatalidade.
Simplesmente, a tirania do contra agrada-me mais do que a tirania do seguir. Oponha-se sempre que possa. Dar-lhe-ei o conselho de se opor, mesmo quando lhe parece que eu tenho razão? Não me parece mau como exercício. Mas as melhores ginásticas deformam se são um vício ao contrário. Não andar pouco, não andar muito. Toda a vida bem vivida, harmoniosamente vivida, vivida sem faltas, sem manchas, com felicidade, com serenidade, é uma vida medíocre. Tudo o que passe do medíocre tem em si o excesso e o erro.
Feche, pois, os ouvidos ao que lhe ensino, se alguma coisa lhe ensino; faça a viagem por sua conta e risco, você mesmo ao leme; se tivermos naufrágio, far-lhe-emos uma Elegia marítima: duas páginas de versos todos cheios do ritmo das vagas e desse estranho soluçar do vento nos altos mastros dos navios.”
in: “Sete cartas a um jovem filosofo”, de Agostinho da Silva
Imagem: by me
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